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2 TEORIAS GERAIS SOBRE O BRINCAR

2.3 O BRINCAR NO CAMPO DE CONHECIMENTO DA PSICOLOGIA

2.3.3 A Visão Sócio-Histórica e o Brincar

A visão sócio-histórica enfatizará a relação do lúdico com o contexto social e cultural, associando forma e conteúdo, afeto e cognição na compreensão do brincar como ação humana (POLETTO, 2005). Esta visão tem como seus principais representantes Lev Semenovich Vygotsky, Alexei Nikolaievich Leontiev e Danii B. Elkonin, que teorizaram sobre o brincar dentro da perspectiva do materialismo histórico marxista, no contexto da psicologia soviética.

O principal pressuposto em comum aos três autores é justamente oriundo do materialismo histórico: para compreender o ser humano é preciso analisar os fatores culturais e as condições concretas da vida como condicionantes. Desta forma, verão como entraves todas as teorias que propuseram visões naturalísticas, inatistas, biológicas, metafísicas e universais acerca do brincar, as quais buscarão superar (ROCHA, 2000).

Vygotsky realizará sua análise do brincar, enfatizando as características da atividade lúdica e relacionando-o com outros processos psicológicos característicos do ser humano. Em sua análise dará ênfase às brincadeiras de faz-de-conta, ainda que aborde também outros tipos de brincadeiras (OLIVEIRA, 1997; ROCHA, 2000).

Em “A Formação Social da Mente”, Vygotsky (1998) defenderá a concepção de que a definição do brinquedo deve caminhar de sua relação com o prazer ou com teorias “intelectuais” para sua relação com necessidades da criança que a motivam para a ação, necessidades estas que mudarão de acordo com seu estágio de desenvolvimento.

A origem do jogo, segundo Vygotsky (1998), estaria na interconexão de dois fatores ligados pela necessidade. Em primeiro lugar, a criança muito nova apresentaria tendência em buscar satisfação imediata (ou em intervalo muito curto) de seus desejos (ou necessidades); Em segundo lugar, a partir da idade pré-escolar surgem em grande quantidade de desejos e necessidades que não podem ser satisfeitos pelo fato, justamente, de ser criança.

Neste momento de tensão entre estas duas forças conflitantes, o comportamento da criança muda, iniciando o processo de envolvimento no mundo imaginário em que tais desejos podem ser realizados, surgindo então o brincar (VYGOTSKY, 1998, p. 122). De forma sintética, em sua definição o grande critério para diferenciar o brincar da criança e outras atividades é justamente esta criação de uma situação imaginária.

Assim, a situação imaginária, comumente empregada como um tipo ou subcategoria de brincadeira, passa a ser vista como uma característica do brinquedo em geral, não havendo separação essencial entre jogos de faz-de-conta e jogos de regras. A evolução da atividade do brincar se daria a partir de brincadeiras nas quais há situações imaginárias às claras e regras ocultas (faz-de-conta) para brincadeiras onde há regras às claras e uma situação imaginária oculta (jogos de regras) (VYGOTSKY, 1998, p. 123).

Desta forma, ao brincar a criança estaria se apropriando, à sua maneira, do mundo e, paralelamente, desenvolvendo-se cognitivamente. Ao mesmo tempo em que o

brincar é uma situação imaginária que provê uma transição entre a ação da criança

com objetos concretos e suas ações com significados (mediada pela linguagem) é

também, com vimos acima, uma atividade regida por regras do brincar que permite à criança se comportar de maneira mais avançada do que o habitual para sua idade, ultrapassando os limites concretos de sua ação (“dirigir” um ônibus imaginário, cuidar de uma “família”, etc...) (OLIVEIRA, 1997, p. 66-67).

O brincar, então, seria um meio para o desenvolvimento do pensamento abstrato (já que desloca o campo do significado e o campo da percepção visual), um local de liberdade relativa, regida pelo significado que os objetos possuem, e que é base das regras no brincar e do desenvolvimento do autocontrole. Enfim, o brincar surge como a zona de desenvolvimento proximal por excelência. (VYGOTSKY, 1998; Rocha, 2000).

Segundo Rocha (2000), Leontiev analisa o jogo dentro do campo de sua teoria sobre as atividades humanas em geral com seus componentes – as ações e as operações. A particularidade da atividade lúdica estaria fundada na relação particular entre ação e operação no interior do brincar, bem como por sua relação com a motivação.

Para Leontiev, a atividade é uma forma complexa de relação entre o ser humano e o mundo, envolvendo finalidades conscientes e interações coletivas e cooperativas. Ao envolver-se em uma atividade somos motivados por um fim, um objetivo. Para efetivarmos esta atividade (e alcançarmos nossa meta), desenvolvemos ações específicas que se referem, portanto, ao “o que” deve ser feito para a realização da atividade como um todo. As operações, por sua vez, referem-se ao aspecto operacional da atividade, ou seja, ao “como” deve ser feito, sendo determinadas não pelo objetivo em si, mas pelas condições objetivas de sua realização (OLIVEIRA, 1997).

No brincar esta relação se organiza no sentido de um descolamento dos processos de ação e operação na relação com os objetos utilizados na atividade. A operação com os objetos concretos, substitutos dos objetos reais e suportes do brincar, obriga a criança a se adequar à suas características objetivas. A ação é justamente a

fantasia, o imaginário do objeto real, com suas características e regras (ROCHA, 2000).

Em “Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar”, Leontiev (1992) cita como exemplo desta relação a situação em que uma criança brinca de cavalgar com um cabo de vassoura. Neste caso, a ação se dá com relação ao cavalo em que se transformou o cabo de vassoura (o que deve ser feito), enquanto que a operação se dá com relação ao cabo da vassoura propriamente dito, com suas potencialidades e limitações como suporte da brincadeira.

Assim, ao contrário de várias teorias sobre o brincar, nem tudo com que a criança se relaciona é um brinquedo em potencial, tampouco toda situação sócio-cultural será deslocada para uma brincadeira, automaticamente.

Com relação à motivação, o principal diferencial da atividade lúdica e as demais atividades será a independência psicológica de seu resultado objetivo, sendo sua grande motivação o próprio processo do brincar. Este processo surgiria na interação entre a necessidade da criança em agir e o aumento de sua consciência em relação

ao mundo sócio-cultural dos objetos e das relações adultas.

Como a criança não poderia se apoderar diretamente deste mundo, ela o fará de maneira indireta pela atividade lúdica. A atividade lúdica será, então, colocada como a principal forma da criança interagir com a realidade, apropriando-se do mundo e como mecanismo pelo qual o mundo humano (sócio-cultural e histórico) penetra em seu processo de constituição como sujeito histórico (ROCHA, 2000, p. 69).

Resta abordar o pensamento de Elkonin, em seus estudos sobre o jogo na perspectiva filogenética, através dos estudos antropológicos e interculturais e a relação mais direta entre jogo e cultura.

Em “Psicologia do Jogo”, Elkonin (1998) apresenta sua teoria através de uma extensa análise das diversas concepções acerca dos jogos, em que tece diversas críticas às propostas naturalistas, metafísicas, etológicas, psicanalíticas e cognitivistas ao lado de uma revisão da psicologia soviética, sobretudo as teorias de

Vygotsky, a quem atribui a maior proximidade da descoberta da natureza psicológica do jogo, propondo-se a aprofundar e desenvolver suas hipóteses (p. 205).

Para Elkonin, a atividade lúdica se dá na relação entre as ações, os objetos e a

mediação social. Filogeneticamente, seu aparecimento estaria ligado às

transformações dos instrumentos e das relações de trabalho nas sociedades humanas que, paulatinamente foram afastando as crianças das atividades produtivas e adiando sua entrada no “mundo adulto” do trabalho. Tal processo teria imposto um período maior de desenvolvimento para os sujeitos, bem como maior investimento social na confecção de objetos e atividades específicas para este fim – os objetos e atividades lúdicas (ROCHA, 2000).

Seguindo esta linha de raciocínio, segundo Rocha (2000), Elkonin considera que este processo se daria de maneira ainda incipiente nas sociedades pré-modernas, consideradas primitivas (como, no nosso caso, seria o entendimento deste autor sobre a sociedade Guarani). Nestas sociedades os sujeitos participando desde muito novos nas atividades produtivas ligadas à subsistência do grupo, não poderiam desenvolver características maiores da atividade lúdica, não devendo ser registrada qualquer em que se identifique o faz-de-conta.

A origem ontogenética da atividade lúdica se dá na relação da criança com os objetos através mediação de seu contato com o mundo pelos adultos e outras crianças mais experientes, com o que Elkonin (1988) se declara contrário às teorias de Piaget (que pretensamente não considerariam o papel do adulto neste processo).

Este autor negará às atividades do bebê até o primeiro ano de vida (manipulações primárias de objetos) o status de jogos. Só a partir desta idade a comunicação emocional entre crianças e adultos se dará de forma indireta, através dos objetos. Este relacionamento entre criança e os objetos ocorre de duas maneiras distintas:

a) a criança apreende o esquema geral de ação social com o objeto, incorporando a significação do objeto;

b) lentamente, a criança também vai se apropriando de aspectos operacionais para a manipulação destes objetos.

A partir destas duas maneiras de relacionamento, surgem, paulatinamente, dois tipos de atividades distintas:

a) as práticas utilitárias, orientadas para as propriedades dos objetos e adaptações a elas;

b) as práticas lúdicas, orientadas para a significação dos objetos, sua natureza social e esquemas de utilização, advindo daí o jogo simbólico.

Assim, ao brincar a criança está assimilando de maneira ativa a significação dos objetos, seu aspecto social, cultural e histórico e não aprendendo a dominá-los o que será desenvolvido nas atividades utilitárias como o trabalho e a pesquisa. Elkonin distancia-se, então, das propostas que entendem o brincar como pré- exercício operatório, compreendendo-o como formativo do sujeito histórico (ROCHA, 2000).

Caminhamos bastante até aqui acerca das teorias sobre o brincar. Partimos das acepções genéricas, passamos pelas correntes naturalísticas e metafísicas, abordamos as visões etológicas e, enfim, alcançando as propostas psicológicas. Vimos como estas construíram enorme gama de conhecimentos sobre o brincar, cada qual enfatizando um aspecto relevante desta atividade em relação à sua proposta de entendimento acerca do ser humano e da criança.

Nesta última abordagem psicológica, a sócio-histórica, destacamos, conforme Oliveira (1997), três aspectos fundamentais que influenciaram sua abordagem da brincadeira, conforme exposto acima:

- o funcionamento cerebral como suporte biológico do funcionamento psicológico;

- a influência da cultura no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos;

- a atividade do homem no mundo, inserida num sistema de relações sociais como o principal foco de interesse de estudos em psicologia.

Acreditamos que, antes de caracterizar a superioridade desta visão sobre as outras até aqui expostas, tais pontos podem ser considerados como alicerces para

justamente relacionarmos as abordagens filosóficas, etológicas, psicológicas e sociais enfatizando a contribuição de cada uma delas na compreensão deste complexo fenômeno e sua relação com o conceito de cultura, importante aspecto a considerar no estudo do brincar em um grupo social de matriz cultural ameríndia.