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Capítulo 2 A matemática e o Cogito.

2.1 A busca pelo fundamento primeiro do conhecimento

Após as considerações sobre a obra em que Descartes apresenta, os atos do entendimento que possibilitam o conhecimento da verdade e o método, passamos agora à análise da obra em que Descartes apresenta a primeira verdade, que fundamenta as demais verdades, e que demonstra a possibilidade de um conhecimento verdadeiro, a saber, a obra “Meditações concernentes à primeira filosofia nas quais a existência de Deus e a distinção real entre alma e o corpo do homem são demonstradas” (DESCARTES, 1973). Nesta obra, Descartes apresentará as suas considerações sobre a metafísica e, também neste texto, o autor pretende demonstrar o fundamento primeiro do conhecimento, isto é, Descartes propõe uma investigação sobre princípios, buscando demonstrar o fundamento primeiro para o conhecimento exigido por ele.

Podemos adiantar que este princípio metafísico, ou de filosofia primeira que Descartes visa, e que é contemplado na segunda meditação, é o cogito.No entanto, apesar dejá podermos afirmar, antes de entrar na análise do texto, o cogito como fundamento primeiro do conhecimento, é preciso retomar o fato que será a questão principal da nossa análise, isso porque, apesar de compreender que o cogito ocupa o lugar de fundamento primeiro do conhecimento, ainda fica a questão; porque a necessidade de fazer a passagem da matemática como fundamento para o cogito?Tendo em vista que as razões matemáticas parecem responder à necessidade de uma certeza indubitável, enquanto resultado de uma intuição12.

Como vimos, namatemática encontramos uma verdade que supera a dúvida e que garante a certeza necessária para um fundamento,considerando que se trata de uma verdade indubitável à primeira vista e, portanto umaverdade primeira tal como a necessária para ocupar o lugar de fundamento primeiro do conhecimento. Ainda assim, carregando todos os atributos para ocupar o lugar desse fundamento, Descartes aponta para um fundamento ainda mais primitivo, em que, somente nas Meditações Metafísicas ele apresenta de forma detalhada. Isto porque, independente dos apontamentos nas Regras,é somente nas Meditações Metafisicasque, ele demonstra o caminho até o cogito. Entrentanto, a questão é, porque a necessidade de passar do fundamento físico-matemático para o metafísico? Ou ainda, qual a necessidade da construção de um artifício, já tendo um princípio dado naturalmente pela

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dúvida natural? Para buscar compreender essa problematização, a análise da argumentação cartesiana até o cogito é imprecindível.

Como já dito, uma das pretensões de Descartes, na obra referida, é demonstrar a verdade primeira que será fundamento de todas as ciências, uma verdade absoluta que sirva de alicerce para o conhecimento. Não precisamos avançar muito na obra para já ver formulado o objetivo e as ferramentas que Descartes usará na sua investigação, pois, já no resumo, o autor enuncia sua pretensão, qual seja, uma investigação sobre fundamentos, e o instrumento que usará para se desfazer das antigas opiniões em busca deste fundamento, a dúvida metódica e, assim também inicia as suas meditações;

[sobre a primeira meditação] Na primeira, adianto as razões pelas quais podemos duvidar geralmente de todas as coisas, e particurlamente das coisas materiais, pelo menos, enquanto não tivermos outros fundamentos nas ciências além dos que tivemos até o presente(DESCARTES, 1973.p.87). Já nessa passagem do resumo referente a primeira meditação, Descartes apresenta a sua inquietação com relação às opiniões falsas tomadas como verdadeiras, opiniões fundadas em princípios duvidosos e incertos e, vendo a necessidade de um fundamento mais seguro, propõe uma investigação que buscará esse fundamento certo para as ciências. Para essa empreitada e para que encontre esse fundamento, Descartes afirma que, para a investigação sobre o princípio do conhecimento, seria necessário colocar essas opiniões que, até então, eram consideradas fontes do conhecimento em questão. A intenção era, a partir de uma investigação sistemática, encontrar aquilo de certo e constante que possa servir de base para as ciências. O que Descartes propõe é (re)pensar as estruturas de todo o conhecimento, tendo como objetivo central o seu fundamento.

(...) de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera credito, e começar tudo novamente desde os fundamentos(DESCARTES,1973.p.93). Na primeira meditação acima citada, o autor (re)afirma e sustenta aquilo que estava no resumo, a saber, que era necessário desfazer-se das opiniões que ele assumira como verdadeiras fontes do conhecimento e, começar a sua investigação desde os fundamentos. O que podemos observar é que as pretenções cartesianas estão, desde os primeiros parágrafos do texto, direcionadas a esses fundamentos que foram eleitos como princípios de conhecimento pela tradição, mas que lhe aparecem como sendo incertos e não servindo, então, como fundamento do conhecimento.

Entretanto, como bem considera Forlin, o caráter fundacionista de Descartes não é precisamente por requerer um fundamento para o conhecimento, mas, mais por fazer desse fundamento objeto de análise tal como as demais ideias do conhecimento, ou seja, ―A filosofia cartesiana não se distingue da filosofia da Escola pela exigência de um fundamento, mas é antes pela a exigência de um absoluto rigor quanto ao fundamento‖(FORLIN, 2005.p.28), fazendo de seu fundamento não só modelo que se adequa a um critério de verdade, mas atestar todas as verdades para fazer do seu fundamento o próprio critério de verdade. Isso por que, o critério de verdade em Descartes é dado na medida em que ele é circunscrito em uma demonstração, encontra-se o cogito como verdade indubitável e formaliza-se suas características (clareza e distinção) como critério para a verdade das coisas a serem conhecidas, isto é, diz Forlin;― (...) o critério da clareza e distinção é ele próprio formulado a partir da localização e determinação prévia de uma percepção clara e distinta, a saber, o cogito‖ (FORLIN,2005.p.218-219). Portanto, o fundamento primeiro é ele próprio critério de verdade para o conhecimento, o que faz seu estatuto ainda mais fundador, na medida em que seu alcance permitirá reconhecer nas demais razões aquilo que permite considerá-las verdadeiras, como veremos.

Demarcado o objeto de investigação, qual seja, o fundamento do conhecimento, o autor apresenta o meio pelo qual ele pretende desenvolver essa investigação, a saber, a dúvida metódica que consiste em tomar como falso tudo aquilo que implica o menor motivo de dúvida. Em outras palavras, o que o autor propõe é que todo conhecimento que não se apresentar como imune à dúvida deva ser rejeitado para seu propósito, ou seja, não podendo assumir o papel de princípio e fundamento das ciências. E, de maneira totalizante, a dúvida deverá cobrir todas as opiniões que até o momento eram consideradas fundamentos de conhecimento.

É importante, contudo, ressaltar que decidido que as opiniões devem ser investigadas, o autor faz a ressalva de que não seria necessário investigar opinião por opinião, mas que bastava que seus alicerces se apresentassem como duvidosos para que todo o grupo de opiniões que tivesse como base esse alicerce fossem abatidas e, tidas como falsas, pois, se aquilo que fundamenta a razão é falso, a opinião por ele fundamentada seria também falsa.

Resta-nos, portanto, analisar os passos argumentativos da obra, começando com o excercício do meio para analisar esses fundamentos e, como já dito, a ferramenta para essa empreitada será a dúvida métodica. No que diz respeito a dúvida, é importante frisar que a dúvida cartesiana é exercida de forma máxima, ou seja, tudo aquilo que apresentar o menor

motivo de dúvida será rejeitado, ou melhor, ainda que uma opinião se apresente com um grau de certeza consideravelmente alto, isso não será motivo para aceitá-la como fundamento, a não-rejeição dela depende da inexistência de qualquer motivo de dúvida, isto é, ela deve ser indubitável. Sobre esse momento do argumento, bem observa Gueroult, em sua obra “Descartes segundo a ordem das razões”.

Após definido o objetivo — um conhecimento ―certo e indubitável‖ —, ele indica o meio — a dúvida hiperbólica, que rejeita inteiramente tudo o que, por pouco que seja, não é seguro. Colocar em exercício essa dúvida consiste, não em censurar as diversas opiniões, mas em criticar seu princípio, o que ocasionará a ruína de tudo (GUEROULT, 1968.p.33-34).

A dúvida é posta como o método que vai buscar o princípio indubitável, um princípio que seja imune a ela e, esse processo é requerido pela própria razão que nos persuade a não tomar por verdadeiro princípio, aquilo que apresentar o menor motivo de dúvida.Vale lembrar ainda que, como já dito, não é necessária a análise de todas as opiniões, mas basta que o princípio dessas opiniões seja colocado à prova, pois, um único sinal de incerteza nesse princípio será o suficiente para rejeitá-lo e, com ele, todas as opiniões que nele estiverem fundadas. Assim, diz-nos Descartes, no ínicio da primeirameditação:

Ora, não será necessário, para o alcançar esse desígnio, provar que todas elas [opiniões] são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indubitaveis, do que as que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas(DESCARTES,1973.p.93).

A dúvida responde por uma parte importante na descoberta do cogito, isso porque, ela não é unicamente um processo cético13 que auxilia na superação da impossibilidade do conhecimento, mas - para além dessa face da dúvida cartesiana - ela consiste em uma espécie de ―método negativo‖, para dela (da dúvida) fazer emergir aquilo que possibilitará a descoberta do princípio primeiro para o conhecimento e o critério de verdade que será o regente do método para as ciências. A dúvida pode ser considerada um ―Método negativo‖, pois, na falta de verdades já demonstradas (por ser essa primeira verdade buscada o princípio) para demonstrar a legitimidade desta primeira verdade, a dúvida se apresenta como um

13 Vale ressaltar que não se trata de uma adoção de um método cético, por ser o autor um cético, mas é mais no

sentido de ―...um dogmático insatisfeito. Dessa forma se decide desfazer-se de todas as suas opiniões, é apenas para tentar começar tudo novamente‖ (FORLIN, 2005.p.31).

método de ―exclusão‖, que permite, com a rejeição das opiniões duvidosas que, até então eram assumidas como princípios, mostrar como o enunciado “Eu existo” assume a posição de fundamento primeiro do conhecimento. Isso acontece não por demonstrar sua verdade a partir de um critério de verdade14, mas por ser o “Eu existo” um enunciado necessário que resiste à impossibilidade do conhecimento. Essa característica faz deste enunciado a fonte da verdade e, é através desse enunciado que irá ascender o aspecto que, mais adiante veremos, será o critério de verdade.

Há outros aspectos que apresentam o método da dúvida como diferente das demosntrações e que possibilitam caracterizá-la como negativa, a saber, o método da dúvida difere, por exemplo, do método de demostração sintético, pois sua verdade independe de qualquer outra para ser demonstrada e a via sintética é uma demostração que necessita de ―uma longa cadeia de definições, postulados, axiomas, teoremas etc‖(LANDIM, 1992.p.29), para a demonstração de certas verdades. O método da dúvida é tambem diferente do método de demonstração analítico, apesar de ser análogo a este, como afima Landim:

O processo da dúvida não pode, obviamente ser assimilado a qualquer gênero de demostração; no entanto, ele tem algo de análogo com a ordem análitica: a primeira verdade da filosofia, pelo fato de ser primeira, não pode depender de outras verdades; ela, como toda verdade, só é verdade enquanto é evidente; mas não é uma noção comum, isto é, uma verdade eterna ou um princípio da razão; nem é apenas uma ideia considerada em si mesma, isto é, um modo do pensamento sem relação com as coisas das quais é uma representação (LANDIM, 1992.p.29).

As considerações feitas por Landim visam mostrar que a diferença entre a demonstração analítica e a dúvida cartesiana está no fato de que, a demostração analítica pressupõe como princípio, uma noção comum que não tem ligação direta com aquilo que representa, porque é o modo de se conceber o conhecimento. Esse modo de conceber é diferente do que acontece com o princípio cartesiano em que, o princípio instaurado possui uma relação com aquilo que representa, a saber, a “res cogitans”15; apesar de ser também apresentada como uma noção lógica (na categoria de existência), o seu estatuto ontológico faz com que ela se difira em larga medida dos príncipios que são objetos de uma demostração analítica.Isso porque, para além de análise de conceitos, o que está em jogo na demostração cartesiana é um princípio que faz referência a uma substância, e no limite, uma substância

14 Essa argumentação é uma reflexão longamente debatida pelos professores Raul Landim Filho em sua obra “Evidência e verdade no sistema cartesiano”.pp.29-30 e Enéias Forlin em sua obra “A teoria cartesiana da verdade”. Ambas as obras servirão de base para construção desse capítulo.

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ativa que corresponde a um ato, o de conhecer, ou mais precisamente, o de intuir e deduzir. Além disso, lembra-nos Forlin; ―Não se pode, todavia, esquecer que o cogito não é uma mera expressão mas é antes de tudo uma percepção que o pensamento tem de si mesmo‖(FORLIN, 2005.p.105). Ou seja, o cogito é a expressão de uma substância experimentada intelectualmente pelo sujeito que pensa, como veremos mais adianta, mais detalhadamente.

Contudo, ainda no registro da dúvida, é importante ressaltar que essa espécie de ―método negativo‖, usado na descoberta do cogito, difere ainda, do método análitico. Isso porque, como bem nota Landim, o método da dúvida não pretende justificar o porque e como16 determinado enunciado é verdadeiro, mas antes, mostrar como determinado enunciado é dubitável e, como tal, não pode responder como princípio. É a partir da constatação dos motivos de duvidar das opiniões, que Descartes pode abandoná-las enquanto fundamento do conhecimento e, buscar aquilo que seja imune à dúvida e que possa ser o princípio do conhecimento, isto é, o que Descartes faz é mostrar a imunidade do enunciado “Eu existo” – enquanto substância e ato – à dúvida17. E isso se dá por ser ele, ―uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente‖(DESCARTES,1973.p.102). Essa imunidade é o que garante que esse enunciado se sobressaia às demais opiniões e ocupe o lugar de fundamento primeiro do conhecimento. A questão que fica é: como pensar na dúvida como maneira legítima para a descoberta do cogito?

A dúvida como modo de demostração tem suas bases nas próprias leis da razão, sem a qual nenhuma investigação seria possível. A dúvida cartesiana responde ao rigor lógico da necessidade, como nos diz Forlin, em sua obra “A teoria cartesiana da verdade”. Na obra referida, Forlin apresenta os argumentos que possibilitam essa interpretação, a saber:

(...) é a razão que nos impede de dar crédito àquilo que apresenta a mínima dúvida; ou, inversamente falando, é a razão que nos constrange a dar crédito apenas ao indubitavel. Mas, o que é indubitável, ou seja, o que é aquilo que não é passível de nenhuma dúvida? Ora, do ponto de visa estritamente lógico, apenas não se pode duvidar do que é necessário(...)(FORLIN, 2005.p.33).

O que nos aponta Forlin é que a dúvida métodica é exercida segundo o preceito lógico que afirma que somente é indubitável aquilo que é necessário, pois, se necessário, não há

16 LANDIM FILHO, R, F. “Evidência e verdade no sistema cartesiano”.p. 29

17(...) Um enunciado que concerne a ―uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente‖ e que possibilita a

descoberta do critério de verdade, como engendrá-lo? Na ausência de verdades previamente demonstradas que se refiram à existência (...), na ausência de um critério prévio e inquestionável de verdade, a dúvida, (...) tem a função de mostrar como o enunciado ―Eu existo‖ pode ser descoberto e por que razões é impossível que ele seja falso, ou mesmo duvidoso, durante o tempo em que é pensado‖. LANDIM FILHO,1992. p. 29.

motivos de dúvida, tal como o princípio de identidade, A=A. Qualquer tentativa de duvidar de tal princípio necessário terminaria por incorrer em uma falácia.A dúvida tem papel essencial nas Meditações Metafísicas, sobretudo, no que diz respeito a busca por um fundamento que possua um aparato lógico, sem o qual, conduziria o cogito e qualquer outro conceito encontrado no registro do esgotamento da dúvida, em um resultado ilegítimo ou simples artifício.

Outra característica que dáa dúvida um dos pontos centrais de análise, no que diz respeito às Meditações Metafísicase que não pode ser negligenciada, é o fato de que a dúvida cartesiana é provisória. Essa característica da dúvida cartesiana tem um papel todo peculiar no debate da época que, entre outras coisas, questionava a possibilidade do conhecimento, e a dúvida se apresenta como auxiliar dos céticos para esse fim. Nesse sentido, o uso da dúvida por Descartes, contrariamente ao uso cético, não visa demonstrar a impossibilidade do conhecimento, mas ela é um instrumento que visa combater o dogmatismo das ciências em prol de um fundamento seguro para elas. Para usar as palavras de Gueroult:―(...). Pois, seu caráter metódico faz dela um simples instrumento que visa fundar a certeza do saber, isto é, o dogmatismo da ciência, resulta uma quarta característica: a dúvida cartesiana é provisória‖ (GUEROULT, 1968.p.33), ou seja, a dúvida cartesiana se esgota na medida em que se alcança um conhecimento indubitável, esgotando o exercicío cético na certeza indubitável.

Os graus que percorrem a dúvida, sempre cuminam em um fundamento referente a tradição, seja os sentidos em um primeiro momento, seja na matemática em outro momento. No entanto, a negação dos sentidos como forma de conhecimento certo é mais explicíta que a negação da matemática, pois, se levarmos em consideração que um dos projetos cartesianos é a fundamentação da física na matemática, amatemática enquanto princípio e então fundamento do conhecimento, parece satisfatória. Isso porque, como vimos na obra anterior, ela parececumprirboa parte dos requisitos necessários para ser uma certeza indubitável,que é o que o autor busca para ocupar o lugar de fundamento primeiro. Mas não é exatamente isso que Descartes apresenta nesta obra, ecomo veremos, o caracter hiperbólico da dúvida exige que até a certeza garantida na matemática seja refutada.