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Capítulo 2 A matemática e o Cogito.

2.3. O cogito: fundamento primeiro do conhecimento.

A segunda meditação cartesiana inicia com uma (re)afirmação do exercício da dúvida e de como essa deixou, ao meditador, inúmeras questões. Porém, afirma Descartes que prosseguirá com esse mesmo modo de investigação, buscando duas coisas que são excludentes entre si: ou uma certeza inabalável para o conhecimento ou a certeza da impossibilidade do conhecimento. Descartes (re)capitula todas as incertezas que tomaram conta da meditação anterior, para prosseguir sua investigação a partir de seus últimos resultados. Apesar de sua busca por um conhecimento positivo, até o início da meditação segunda, Descartes opera com o método de desconstrução do conhecimento, o ―método negativo‖ de duvidar que o levou a colocar em dúvida todos os conteúdos eleitos a fundamento primeiro, que o fez cair ―em águas muito profundas‖(DESCARTES,1973.p.99); porém, é do âmago desse ―método negativo‖ que Descartes extrai sua primeira certeza indubitável.

Antes de analisar a passagem na qual essa certeza está localizada, é preciso analisar algumas informações que Descartes oferece antes de chegar ao cogito e que se referem à posição deste no projeto fundacionista cartesiano, a saber; no começo da segunda meditação, Descartes, a exemplo de Arquimedes, procura um ponto fixo para tirar o seu ―globo terrestre‖ do lugar, isto é, busca uma primeira certeza capaz de desencadear a (re)construção do edifício do conhecimento que foi dilacerado pela dúvida. Inspirado por esse fato, nosso meditador afirma que a descoberta de apenas uma coisa que seja certa e indubitável será o suficiente para que possa almejar os demais conhecimentos. Essa informação é importante, pois, Descartes se vê na eminência da impossibilidade de qualquer conhecimento que seja e, ao considerar que um único ponto será suficiente para que ele possa reconstruir a cadeia do conhecimento, mostra o lugar de fundamento, de modelo a ser seguido, que tal conhecimento carrega. Do mesmo modo que o alicerce sendo duvidoso é suficiente para que todas as opiniões fundamentadas nesse alicerce sejam duvidosas, assim também, o encontro e consolidação de um fundamento seguro é suficiente para que o conhecimento fundamentado neste alicerce seja certo. O desafio de Descartes, contudo, é instaurar um fundamento que seja amplo, completo, objetivo e seguro para todo o conhecimento.

Na passagem em que as considerações sobre a busca por um conhecimento seguro aparecem (Descartes, 1973. p.97), Descartes reforça que o eleito a fundamento primeiro tem

de ser algo que seja certo e indubitável, e que esse será o ponto fixo e seguro para o desenvolvimento do conhecimento. A nota de rodapé na obra que selecionamos é um tanto esclarecedora neste aspecto. Ela diz: ―A primeira certeza adquirida não será, pois, a mais alta; deve apenas inaugurar a cadeia de razões‖(Idem,.p.99-nota 24).Não será a mais alta, pois, se encontra na base de onde todo o conhecimento e desenvolverá, não pressupõe nada anterior que pudesse sustentá-la no patamar mais alto; no entanto, se encontra nas bases que erguerá todo o conhecimento. É da dúvida mesmo que irá brotar a certeza indubitável, ela servirá para acompanhar o meditador ao que de mais essencial se tem no conhecimento, isso porque, é no exercício da dúvida que Descartes localiza a sua existência enquanto sujeito que duvida, ou seja, a existência se torna imune à dúvida enquanto é condição dessa dúvida que está em exercício. Em outras palavras, a dúvida, enquanto um exercício que me pertence, enquanto existência pensante e sendo condição de possibilidade desta, todo o exercício da dúvida pressupõe o existente que duvida e assim, pressupõe a existência de algo necessariamente que duvida.

(...) eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou apenas pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em me enganar sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou se ele me engana; e por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisso e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito (DESCARTES,1973.p.100).

A passagem acima contempla o enunciado sobre a primeira verdade, fundamento primeiro de toda filosofia cartesiana, expressa no enunciado “eu sou, eu existo”.O desenrolar desse argumento carrega em seu interior sutilezas que, de maneira geral, permite a consolidação do cogito como verdade primeira e, como já dissemos, é notável o papel da dúvida nesse descobrimento, pois, ela permite a descoberta do cogito, por meio de um retorno a ela mesma. Em outras palavras é ao se questionar pelo ato de duvidar que é possível a postulação do cogito. Como nos alerta Marion, a dúvida, neste momento retorna a si mesma e se faz de objeto. Ele diz:

Porque a dúvida, exatamente porque não certifica nem se certifica em ―coisa‖ nenhuma, recorre a si mesmo para se fundar; ele toma assim como objeto ele próprio (... se) enquanto pensante, afirmado como fundamento enquanto condição formal de uma dúvida, (...)(MARION, 1975.p.70).

Outra questão que nos lembra Marion, é que a duvida aponta para o meditador que está em processo de dúvida. A dúvida, enquanto um modo de pensar, refere-se a um sujeito que pensa, expresso pelo ―eu‖ que cobre toda a primeira meditação e as demais19

. A dúvida carrega em seu interior a verdade indubitável que Descartes procurava, a possibilidade do seu exercício que culmina na existência do ―eu‖ que duvida.

O“eu sou, eu existo” afirmado aqui, aponta para a seguinte constatação imediata que,ao colocar em questão o mundo material isso não significa colocar em questão a própria realidade do sujeito da dúvida, pois, o próprio ato de colocar em questão o mundo material é que permite a constatação do sujeito da dúvida que, portanto, possui realidade independente do fato do mundo material não possuir no momento, como imposto pela dúvida natural. Contudo, é importante ressaltar que se trata de um único momento de percepção, não trata de primeiro duvidar do mundo e, em seguida, constatar que existe enquanto duvida, mas trata-se de uma única percepção, a saber, no momento mesmo que duvido do mundo percebo-me enquanto sujeito que duvida. Como explica Forlin:

Na verdade, trata-se de um único processo de descoberta em que a primeira constatação só se completa na segunda; a inexistência do mundo material não implica na inexistência do sujeito que dúvida do mundo material na medida mesma em que sua existência está subentendida no próprio ato de duvidar do mundo material, isto é, no próprio ato de pensar do qual a dúvida é uma expressão(FORLIN, 2005.p.100).

Isto é, em um único e mesmo ato que tenho a percepção da minha existência como serque duvida, sendo, deste modo, indubitável que existo enquanto penso (duvido).

Outro aspecto presente na passagem que, a primeira vista, é empecilho para consolidação do cogito como verdade primeira, mas que é desarmada – pelo menos no que diz respeito à verdade atual do sujeito que pensa – imediatamente pelo autor é a possibilidade do engano que reside na ideia (ainda não superada) do ser todo poderoso que pode me enganar. Mas, essa possibilidade é revertida na figura necessária do enganado. Isto é, ainda que exista esse ser que me engana, é insuperável a existência de algo que possa ser enganado.

Portanto, a existência do cogito enquanto ser pensante supera até mesmo o grau mais auto da dúvida, pois, a possibilidade desse grau implica a existência de algo que é enganado necessariamente. Pois, como o não-existente poderia ser enganado, ou o nada? Parece

19 É importante notar que as seis meditações estão expressas na primeira pessoa, ou seja, todas fazem referência a

improvável pensar que o nada possa ser enganado, mas, para além disso, o que o autor reforça com o argumento contra o engano é a relação do pensamento que envolve a existência do ser neste momento. Ou seja, ainda com a possibilidade do engano só é possível considerar uma existência vinculada ao ato de pensar, sendo que, somente o pensamento está imune a dúvida, isso porque, até que se prove ao contrario, o mundo, o corpo, as razões matemáticas são todas passiveis ao engano.

Descartes tem, com o “eu sou, eu existo” a primeira verdade necessária que servirá de ponto de partida de todo conhecimento e, apesar da necessidade de garantir a existência do Deus veraz (como veremos mais adiante), para (re)construção do conhecimento para além da existência do ser pensante, já é possível considerar aquele fundamento que cobre todo o conhecimento, tendo em vista que, o ato de pensar é necessário e primeiro em todo processo de conhecimento e, por isso, cobre todo o conhecimento possível. Além do mais, o “eu sou, eu existo”, diz-nos Landim, em uma nota, que essa primeira verdade, que é uma verdade sobre a existência, se apresenta, também, como uma refutação ao ceticismo, superando o mais radical uso da dúvida.

[sobre o primeiro princípio]Descartes define os sentidos principais da expressão ―primeiros princípios‖: primeiro princípio como regra da razão ou como princípio lógico (noção comum) e como realidade formal ou atual. É neste segundo sentido que o enunciado ―eu existo‖ é o primeiro princípio da filosofia ou a primeira verdade existencial, e, como tal, a sua descoberta se constitui numa refutação do cético(LANDIM, 1992.p.25).

A verdade primeira é uma verdade existencial na mediada em que de um só momento se postula a regra geral do que é a verdade (clara e distinta) e, postula conjuntamente a existência do ser que pensa. Dito isso, é importante agora, voltar a atenção para em que consiste essa “eu” que se vê existente em um meio as inúmeras características que foram consideradas incertas. Resta agora compreender, no limite, em que consiste esse pensamento sobre o qual se descobriu como verdade primeira e, no que diz respeito ao cogito é preciso considerar em que consiste esse pensamento aqui descoberto, ou o que lhe é próprio e o que não é. E, neste sentido, o autor prossegue em sua investigação e, agora na tentativa de compreender em que consiste essa verdade encontrada, ele percebe que o corpo não é composto dependente desse pensamento, pois, é possível concebê-lo sem um corpo.

Ainda no que diz respeito à descoberta do cogito por meio do pensamento, é preciso considerar que, como nos mostra Forlin, a afirmação do cogito está estritamente vinculada ao pensamento, ou seja, a descoberta do cogito, só é possível na medida em que se descobre

como ser pensante, isto é, na medida em que pensa. Isso porque, a dúvida enquanto modo de pensar demonstra que, ao duvidar, o sujeito se reconhece como sendo esse algo que duvida, logo, se percebendo enquanto pensamento que duvida. Em seguida, estabelecido o vinculo entre o pensamento e a existência, o que Descartes propõem na continuidade da passagem é uma retomada ao que já estava estabelecido, para poder compreender mais profundamente o que seria esse pensamento descoberto pela dúvida. Sobre isso, nos explica Forlin:

(...) quando Descartes afirma nesta passagem que <eu sou, eu existo por

todo tempo em que penso>, ele não está estabelecendo pela primeira vez

uma relação entre minha existência e o pensamento.(...)a existência, desde o instante em que foi afirmada como primeira verdade, única a escapar a dúvida hiperbólica, foi afirmada na estrita medida do pensar. Essa estrita relação entre existência e pensamento já estava firmada anteriormente, quando era dito eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas,

pensei alguma coisa e, principalmente, quando se afirmava não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa.(FORLIN, 2005.p.128).

Como nos mostra Forlin, as afirmações de Descartes sobre a existência possui um vinculo necessário com o pensamento e, sem o qual, a primeira verdade não teria seu alcance. Deste modo, na continuidade da passagem em que Descartes (re)afirma a relação entre o pensamento e a existência, o que o autor pretende ―uma retomada as considerações sobre o pensamento, mas agora, com o foco no pensamento‖ (FORLIN, 2005.p.128). Em outras palavras, o que o autor pretende é uma retomada dos passos que permitiram chegar ás atuais considerações, focando no pensamento que agora passa a ser o ponto de investigação do autor. Então, não é que seja necessário questionar em que consiste a natureza desta existência postulada, pois, esta existência está garantida no pensamento, o que é necessário é compreender o que é este pensamento e quais são seus atributos essenciais e, se esse ―eu‖ é somente pensamento ou se há outras características que compõem esta existência.

Além disso, é preciso considerar a necessidade implícita na verdade do cogito, isso por que, como vimos, aquilo que supera o grau mais elevado da dúvida, é uma certeza absoluta porque responde ao caráter de necessidade, isto é, só não tenho motivo nenhum para duvidar daquilo que for necessário e, portanto, absolutamente certo. A existência é absolutamente certa porque não há nenhum motivo de dúvida sobre ela e, não há motivos de dúvida porque tenho uma percepção evidente (porque se apresenta imediatamente clara e distinta ao espírito) de uma coisa que me aparece. E, tal como a verdade da existência está garantida pela

necessidade presente nos resultados da investigação à verdade do pensamento que a garante está igualmente garantida.

Dito isso, então, agora é necessário voltar o olhar para a essa substância imaterial, Descartes apresenta o cogito como um puro entendimento, isto é, ela é a própria razão sendo essencialmente uma coisa que pensa. E, por pensar, Descartes compreende um diverso de coisas como sentir, imaginar, querer etc. Ele diz; ―Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que dúvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente‖ (Descartes, 1973.p.103). Parece que para Descartes pensar implica um diversos de coisas entre as que são puramente inteligíveis como o conceber, o afirmar, o imaginar, mas, considera também, o sentir e o querer como modos do pensamento. Em outra momento das obras cartesianas, podemos ver está noção do que é pensar, como em uma passagem dos Princípios em que Descartes diz:

(...) todas as maneiras de pensar que experimentamos em nós podem reduzir- se a duas gerais: Uma consiste em apreender pelo entendimento e a outra em determinar-se pela vontade. Assim, sentir, imaginar e mesmo conceber coisas puramente inteligíveis são formas diferentes de apreender; mas desejar, ter aversão, confirmar , negar e duvidar são formas diferentes de querer. (DESCARTES, 1644).

Para Descartes, portanto, pensamento é definido como tudo aquilo que se é capaz de compreender, desde aquilo que são coisas unicamente inteligíveis, como as coisas que implicam o querer. E essa noção de pensamento que envolve também outros atos do sujeito unificados no ―querer‖ é imprescindível para a concepção de unidade do sujeito de diversos atos que pertencem a um único sujeito, como adverte Landim:

(...) o sujeito caracterizado pelo atributo Pensamento, é uma substância, pois é o mesmo sujeito que duvida, que compreende, que afirma, que nega. O Pensamento, como atributo principal do sujeito pensante, unifica a diversidade de atos do próprio sujeito, caracterizando-o assim como uma substância, isto é, como um sujeito que permanece idêntico a si mesmo na diversidade dos seus atos (LANDIM, 2009.p.38).

O pensamento, tal como mostra Landim, capta em seu intento tudo aquilo que o sujeito possui em si e que, ao mesmo tempo, são as coisas que necessariamente o pensamento deve se ocupar enquanto sítio de representação e, ao designar essas diversas coisas como sendo modos de pensar, Descartes imputa ao pensamento o lugar de todas as atividades conscientes do sujeito que conhece.Podemos conferir essa posição na noção de pensamento na

exposição geométrica do conceito que encontra-se nas repostas as segundas objeções, em que temos:

Pelo nome de pensamento, compreendo tudo quanto está de tal modo em nós que somos imediatamente seus conhecedores. Assim, todas as operações da vontade, do entendimento, da imaginação e dos sentidos são pensamentos (Descartes, 1973. p. 179).

Quando olhamos precisamente para essa definição de pensamento, percebemos uma certa semelhança entre aquela definição sobre a coisa que pensa na meditação segunda e na passagem dos Princípios, isso porque, ambas as definições fazem referencias as faculdades da vontade, do entendimento e da imaginação. Podemos compreender a noção de pensamento a luz do que comumente se entende por consciência, isto é, pensar é ter consciência de algo, seja ela uma ideia, uma vontade, ou mesmo uma sensação, isso por que, quando se tem uma vontade ou uma sensação se é ciente de algo que lhe é percebido, ou seja, no momento em que se tem uma vontade se é consciente de que tem uma vontade ainda que não seja possível distinguir precisamente de que se trata a vontade. Assim, pensamento é antes de tudo ―consciência de‖, como nos exemplifica Landim;

Se por exemplo, sentir é uma maneira de pensar é porque sentir não é analisado como um movimento corporal (1° grau dos sentidos, mas como consciência de que se sente; ter sensação do amarelo significa parecer ver o amarelo (ou ter o amarelo no ato consciente de ver) ou simplesmente ter consciência do amarelo. (...) eis o que, para Descartes, significa sentir, enquanto é apenas considerado como uma maneira de pensar. Assim, pensar é, de um modo geral, ter consciência de um aparecer. (LANDIM, 2009.p. 179).

A noção de pensamento, segundo Landim corresponde a percepção que temos de algo que nos aparece e a isso precisamente que podemos compreender como pensamento, contudo, esse modo de compreender o pensamento implica justamente uma noção de ideia, isso porque, se pensar é ser consciente de algo, isso de que se é consciente implica antes de tudo uma ideia. Em outras palavras, se tenho uma percepção do amarelo, para usar o exemplo da citação, tenho portanto, a percepção da ideia de amarelo. Assim tambémdeseja-se algo, esse algo que se deseja é no pensamento, antes de compor-se como algo que se deseja, uma ideia que está no pensamento. Nos explicaForlin;―para que eu possa desejar ou julgar a respeito de

alguma coisa, é preciso que eu conceba uma tal coisa”(FORLIN, 2005.p.267) e, conceber é precisamente a consciência que temos de algo por meio da ideia deste algo.

Deste modo, podemos dizer que todo pensamento implica uma ideia na medida em que a ideia corresponde ao conteúdo deste pensamento e, é exatamente ao compreender como uma ideia se apresenta como verdadeira ao espírito que é possível distinguir a ideia clara e distinta da matemática da ideia clara e distinta do cogito que faz desse ultimo primeiro no que diz respeito ao conhecimento.