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II. O LIVRO DE MAURO

2.1 Imagens poéticas

2.1.1 A caixa d'água

O antigo reservatório da Sabesp na Vila Mariana e o largo que o rodeia é um dos vários espaços da cidade de São Paulo que são citados como cenário para os acontecimentos do romance. Mauro frequenta esse bairro sempre que vai ao bar do Marujo e, em determinado momento da narrativa, faz um passeio com Mundinho por ali. É nesse momento que a caixa d’ água "transbordou de lembranças adormecidas", trazendo à memória do narrador as suas visitas, durante a infância, à feira de pulgas que permitia a compra dos soldadinhos que originaram as suas primeiras histórias de ficção e a sua capacidade em "gerar duplos" (MUTARELLI, 2015, p. 48). Preocupado em narrar a origem e o significado da misteriosa entrega da moeda representando o grifo de Abdera, o narrador se limita a citar de passagem essas lembranças, apenas percebidas ao longo do passeio e da reveladora conversa com Mundinho.

Porém, assim que concluída uma parte dessa cena, a narrativa sofre um corte e uma digressão tem início, na qual a lembrança da caixa d’ água é retomada. Passado esse trecho, o narrador retoma a cena do diálogo com Mundinho, e a imagem da lanterna35 fica em suspenso, não sendo nunca mais retomada no romance.

Meu pai me disse, quando eu era pequeno, que aquela caixa-d’ água, que tem um formato realmente sugestivo, era uma lanterna. E ela parece uma lanterna apoiada na base. Na parte em que se colocam as pilhas. Segundo meu pai, era essa lanterna que toda a noite, quando era acesa, projetava a lua.

E eu acreditei.

E ainda quase acredito. (MUTARELLI, 2015, p. 53, grifos nossos)

                                                                                                               

35 Ainda que não tenha relação direta com a nossa análise, a lanterna que projeta a Lua parece remeter às antigas

lanternas mágicas, precursoras do cinema, como aquelas descritas pelo narrador de No caminho de Swann (PROUST, 2006). O interesse pelas imagens, o cruzamento da literatura com o cinema e mesmo o tema da memória infantil, trabalhados no livro Em busca do tempo perdido (1948), enriquecem a imagem poética da lanterna no interior do romance em questão.

O trecho surge de maneira despretensiosa, como mostra a sua brevidade e seu tom digressivo. Mas ele possui um certo brilho poético, associado à imaginação infantil e à relação do menino com seu pai, empenhado em transmitir uma noção encantada sobre o mundo: por trás da aparência fria e desinteressante de um reservatório de água, com a função muito prática de fornecer água para a cidade, subsistiria uma realidade mágica, a de que a Lua é apenas a projeção de uma lanterna gigante e disfarçada em meio à cidade.

O tom poético do trecho, porém, é de certa forma extrapolado no momento em que deixa-se de lado o teor imaginativo acerca da caixa d’água e cogita-se a possibilidade de isso ser verdade. Para uma criança, a indistinção entre imaginação e realidade é perfeitamente comum; mas, ao dizer que ainda hoje quase acredita no conto de seu pai, o narrador insere um elemento novo e, de certa forma, surpreendente, pois relativiza a noção de verossimilhança em um livro que afirma, o tempo todo, que conta apenas a verdade. Aqui o narrador se afirma como criador de ficção, por propor uma noção de realidade que, ao mesmo tempo, apresenta um fascínio ao que foge do que é comumente aceito.

O flerte com a inverossimilhança perceptível neste trecho pode ser vinculado a uma das noções possíveis de imagem. Veja-se como o narrador insiste na aparência do objeto, ressaltando o "formato realmente sugestivo" da caixa d'água e percebendo que ela "parece uma lanterna apoiada na base"; ao se pautar também pelo que vê e não só no seu conhecimento prévio, Mauro leva ao pé da letra a noção de verossimilhança (o que “parece verdadeiro”, segundo o Houaiss), colocando-a lado a lado com a realidade profunda, por trás da aparência.

Ao afirmar que ainda quase acredita no conto do pai, o narrador põe à mostra uma visão de mundo que carrega consigo desde a infância, ou seja, uma tendência em oscilar entre duas noções de verdade que são igualmente sedutoras. É a construção dessa ambiguidade que torna interessante e complexo o jogo da representação em O grifo de Abdera, algo que se observa nas questões formais que vimos anteriormente (através do ponto de vista do narrador, da especificidade que o romance dá para o problema do duplo e das intrusões de Oliver) mas que também está tematizado, exemplificado e inclusive transformado em problema psicológico, ligado através da imagem da caixa d’água aos temas da infância, da paternidade e da construção de uma visão de mundo. O interesse pelo inverossímil e pela criação imaginativa liga-se aqui, assim, ao desejo e à nostalgia, uma vez que o narrador almeja a permanência de um olhar encantado sobre a vida. De todo modo, este não chega a ser inteiramente abraçado, e a dúvida perceptível pela palavra “quase” reaparece na relação de

Mauro com a moeda do grifo, com o gravador de som, com a presença de Oliver e, em geral, com os elementos centrais do enredo.

Apesar de aparecer apenas de passagem, o trecho da caixa d’água ganha relevância dentro do contexto do livro, pois em outro momento o narrador conta como, quando criança, olhava para a Lua buscando São Jorge. A Lua e o Espaço são, neste romance, símbolos de realidades excepcionais, como também se vê na ficção científica Uma ocasião exterior36,

frequentemente citada pelo narrador, e na referência ao filme 2001: Uma odisseia no espaço, que veremos em breve. Assim, a aparência ou a imagem dos objetos serve como ponto de partida para despertar a imaginação do narrador, que tem uma tendência a encontrar coisas excepcionais, que fujam à frustração acerca da mediocridade da vida comum. E essa tendência de Mauro parece ter sido estimulada desde a sua infância, seja pelas brincadeiras com soldadinhos e o boneco de São Jorge, seja pelos passeios com o pai pelo bairro da Vila Mariana.