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I. O LIVRO DE OLIVER

1.4 A HQ de Oliver

1.4.1 Tentativa de uma leitura formal

A dificuldade para a leitura de XXX consiste seja nas características do desenho, seja em sua estrutura narrativa. Os traços carregados e aparentemente apressados, a sobreposição de imagens e a inserção de rabiscos torna difícil, por exemplo, que se identifiquem personagens ou espaços, o que põe em xeque a leitura em sequência e o estabelecimento de uma linha narrativa. A leitura das palavras também é árdua, pois a caligrafia é irregular e nem sempre respeita aos balões tradicionais das HQs. Na imagem abaixo, por exemplo, podem-se perceber algumas dessas características.

 

Figura 1. Fonte: Mutarelli (2015, p. 190)

 

Dentre os rostos distorcidos, é possível identificar dois personagens recorrentes: o professor de matemática, com rosto envelhecido e um farto bigode (conforme a imagem acima) e o aluno, de cabelos claros e uniforme escolar. Além deles, há um outro par de personagens: o astronauta e a sua filha. É de se notar que esses pares podem ser aproximados aos duplos Oliver-Mauro através da nossa interpretação de que existe entre eles uma relação não simétrica que traz à tona a questão da paternidade e da influência de um sobre o outro. Os

demais rostos que surgem não chegam a configurar personagens pelo fato de não se repetirem e se assemelharem a rostos em uma multidão – são anônimos na rua, mulheres nuas, seres mitológicos e demoníacos, rostos tirados do cinema e personagens da HQ A caixa de areia ou

eu era dois em meu quintal. Já os ambientes reconhecíveis de XXX são a casa do professor, o

metrô, a rua e uma escola. Os demais lugares, que compõem boa parte dos quadros, são confusos, indefinidos e muitas vezes situados em lugar nenhum, no branco do papel.

O principal guia nesse emaranhado de traços, rostos e espaços que percorrem as cerca de 80 páginas de XXX é um narrador, com voz em off, e a sua descrição do espaço se aproxima daquilo que está representado nos desenhos: “Não consigo entender o que está escrito nas placas. As ruas estão desertas e escuras. Uma neblina deixa tudo com uma aparência irreal” (MUTARELLI, 2015, p. 112). Trata-se de uma ambientação onírica, reforçada pelas palavras e frases cifradas presentes nas roupas, nas placas, nas rasuras que compõem estampas e preenchimentos dos objetos ou simplesmente no ar, pairando sobre os cenários. Pode-se dizer que a maior parte da HQ acontece em um lugar mental, em que se cruzam memórias, pensamentos obscuros e referências à cultura de massa que circulam no imaginário do personagem. Assim, as imagens e frases que surgem parecem sempre ter algum significado oculto e indecifrável, de teor psicológico.

A voz em off pertence ao aluno do protagonista, e a sua narração percorre momentos pontuais ao longo de toda a HQ, especialmente no início e no fim da obra, em que ele descreve as ações do professor durante as suas viagens mentais como forma de emoldurar a série de disparates que compõe essa vida mental perturbada. Por exemplo, descreve o momento em que o professor se esconde debaixo da cama para cantar uma canção de infância (MUTARELLI, 2015, p. 115-116). No entanto, em alguns momentos as vozes dos dois personagens se confundem e o tema do duplo se dá a ver: a voz em off se identifica como a do professor, e o desenho deste diz inúmeras frases como: “Sabe, garoto, quando eu tinha a sua idade eu era você” (MUTARELLI, 2015, p. 112) e “eu estou lembrando embora esteja acontecendo agora” (MUTARELLI, 2015, p. 128). O tema do duplo, ao ser tratado na HQ, permite a sobreposição de espaços e de tempos, e assim o aluno e o professor são representados como uma mesma pessoa em tempos diferentes.31

                                                                                                               

31 Quando professor e o aluno afirmam ser a mesma pessoa, o problema da cisão da identidade é trabalhado pelo

viés da memória: a perda da percepção de continuidade entre passado e presente faz com que, no limite, um indivíduo se veja fragmentado entre diferentes versões suas no passado. Essa abordagem do problema do duplo não é desenvolvida nas partes em prosa do livro e aparece apenas pontualmente na HQ; por esse motivo, ela não será estudada aqui. Para mais sobre o problema do duplo e da memória em Mutarelli, ver GALAS, Pedro. "Memórias fraturadas: passado, identidade e imaginação em Borges e Mutarelli". Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea [online]. 2011, n. 37, p.123-140.

É graças ao recurso, tradicional nos quadrinhos, da voz em off como entidade organizadora que podemos entender a sequência das 80 páginas que compõe a HQ como o mundo visto através dos olhos do professor: rostos no metrô se transformam em imagens demoníacas, cenas do dia a dia apresentam objetos bizarros (como a cabeça de papagaio com uma cartola no prato do professor), e as próprias estruturas mentais são ilustradas através de desenhos e gráficos, que justamente representam, pelo estilo de traço, pela sobreposição de imagens e pela falta de conexão entre quadros, o estado mental confuso deste homem. Trata- se de um artifício similar ao do uso da primeira pessoa no romance, que dá margem à distorção da realidade e à inserção de elementos sobrenaturais. No entanto, a voz em off não está presente a todo o tempo, e na maior parte de XXX as imagens e os diálogos dos personagens se dão a ver independentemente de uma organização externa. Deste modo, a narrativa de XXX como um todo não pode ser parafraseada, pois ela não é completamente organizada nem pela voz externa, nem pelos seus elementos internos. A própria falta de uma narrativa ou de um narrador íntegros se colocam, assim, como uma forma apropriada de tratar do problema da cisão do indivíduo.

As diversas frases e situações que se sucedem sem aparente coerência dificilmente poderiam ser organizadas sem o conhecimento dos livros I e III, narrados por Mauro. A leitura isolada da HQ só nos leva a uma linguagem nonsense e experimental, em que, aos desenhos indefinidos e carregados, se justapõem colagens e referências aos mais diversos elementos da cultura. A inserção de rótulos de bebida e bulas de remédio, por exemplo, faz referência direta ao estado mental perturbado do professor, ainda que não o explique. Fotos, manuais e propagandas permitem o reconhecimento de elementos da vida comum, misturados e indistintos da ficção. Enfim, a referência a músicas e filmes populares, além de configurar um repertório que pode ou não ser comum ao do leitor, aparece como uma forma de explicar o estado mental do professor através de exemplos: um deles, feito através do filme “2001: Uma odisseia no espaço”32, ilustra a peculiar sensação espaço-temporal do professor, que sente passado, presente e futuro como uma coisa só. No entanto, para compreender melhor essas incorporações, será necessário pensar a HQ como algo além de um apanhado de disparates, e isso só poderá ser feito através da leitura conjunta com o romance de Mauro.

                                                                                                               

32 2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO. Direção: Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick. Los Angeles:

Metro-Goldwyn-Mayer; Stanley Kubrick Productions, 1968. 2001: UMA ODISSÉIA espacial (2001: a space odyssey). Direção: Stanley Kubrick. Design de produção: Tony Masters, Harry Lange, Ernie Archer. EUA/Inglaterra, 1968. Warner Home Video - Brasil, 2000. 1 DVD (148 min.), widescreen, son., color., legendado.