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Expansão do problema do duplo aos recursos formais da HQ

I. O LIVRO DE OLIVER

1.4 A HQ de Oliver

1.4.3 Expansão do problema do duplo aos recursos formais da HQ

Diante do interesse em investigar as contribuições da HQ à representação do problema do duplo, cabe observar alguns dos recursos que essa forma propicia.34 O primeiro deles, mais básico, é o uso dos balões de diálogo para que as frases dos personagens sejam associadas à sua caracterização física. No exemplo abaixo, o personagem duplicado do professor-aluno expande as suas vozes a todas as mulheres que estão ao seu redor. As palavras que seriam suas, assim, se difundem entre os outros, ilustrando a questão do duplo de maneira didática. Tratam-se de frases que trazem o problema da filiação literária (“o destino que ele inventou para mim” podendo ser pensado seja através da relação autor-personagem, seja a de professor-aluno, seja a de pai-filha) e da transformação do “ele” em “você” e em um “eu”.                                                                                                                

34  As histórias em quadrinhos são uma forma narrativa que se utiliza de uma sequência de imagens justapostas

espacialmente, que pode ou não conter texto. Elas “comunicam numa ‘linguagem’ que se vale da experiência visual comum ao criador e o público” (EISNER, 2010) e, segundo a definição de McCloud (2005, p. 9), é composta de “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”. Algumas de suas características gerais são: a predominância da imagem sobre o texto; a presença de uma narrativa através do uso das imagens de forma sequencial; o texto, que pode ser integrado à voz de um narrador ou à fala de um personagem, e neste caso é normalmente introduzida pelo uso de balões; a ligação íntima entre tempo e espaço; a presença do espaço que separa os quadros, chamado de sarjeta, como unidade de sentido que estabelece o tipo de transição entre as imagens (MCCLOUD, 2005).  

 

Figura 3. Fonte: Mutarelli (2015, p. 165)

 

Um segundo uso da imagem que contribui para a ilustração do problema está na criação de um efeito de metamorfose através da colocação em sequência de quadros parecidos, que trazem a impressão de que um personagem vai se transformando pouco a pouco em outro. Por mais que Mauro afirme ter uma aparência próxima à de Oliver, sentir-se ele e ver o mundo através de seus olhos, o recurso à imagem torna mais fácil imaginar como ele se sente. No exemplo abaixo, percebe-se visualmente, e não só através de palavras, que o professor se transforma em uma mulher.

 

Outro recurso que trabalha visualmente o problema literário do duplo, e que só poderia ser feito através de uma HQ, está na sobreposição de personagens e balões. Para que se perceba que um personagem fala através de outro, faz-se proveito do fato de que a imagem em duas dimensões da HQ pode abrir mão de representar o mundo com perspectiva e profundidade, de modo que a fala do aluno parece sair do peito do professor. Observe-se que a questão desdobra-se gradativamente na sequência de quatro quadros: à imagem solitária do aluno é acrescentada a imagem do professor e, em seguida, a imagem demoníaca. Enfim, no último quadro, as três figuras estão sobrepostas, e vemos somente o professor e os balões de diálogo.

 

Figura 5. Fonte: Mutarelli (2015, p. 150)

Na realidade, o recurso à imagem traz infinitas outras possibilidades de expressão, e a forma não convencional de XXX permite muita liberdade criativa. A última sequência de quadros, incluída abaixo, ajuda a perceber até que ponto essa liberdade pode levar. O passeio do professor no metrô e o encontro com o diabo é ilustrado como em um gráfico explicativo. O personagem se duplica e se transforma de maneiras dificilmente explicáveis através da escrita.

 

Figura 6. Fonte: Mutarelli (2015, p. 129)

A forma do quadrinho também permite, assim como em outras artes visuais ou em obras híbridas, a inserção de colagens e reproduções de referências visuais vindas de formas da arte (do cinema, das artes plásticas, de outros quadrinhos e assim por diante) e da nossa própria vida social, como fotografias, rótulos, embalagens, publicidades. Esse recurso, amplamente aproveitado em XXX, aparece sob a forma da colagem e sob a forma da reprodução, conforme os exemplos do pornô, do filme de Kubrick (1968), do manual de instruções de um fogão e da propaganda de um croissant, que veremos adiante.

Ao contrário dos desenhos desta HQ, o recurso à cópia permite um mais fácil reconhecimento para o leitor. Ele traz à tona novamente o tema da incomunicabilidade e o problema da representação literária, assim como vimos na parte em prosa do livro: o narrador simula uma dificuldade em se expressar através de sua própria mão, e por isso a utilização do suporte visual promove possibilidades supostamente mais palpáveis para o leitor. O uso das colagens de embalagens e de propagandas, por exemplo, permite o reconhecimento da história como algo “deste mundo”. Já o recurso à reprodução de frames de filmes deixa que se reconheçam os personagens do professor, do aluno, do pai e da filha – ressignificando as imagens que originalmente pertenciam a atores pornô e atores de Hollywood.

A utilização do caso específico de colagens também permite uma leitura que dê um passo adiante na questão da representação. Ela será desenvolvida no próximo capítulo, mas para este momento podemos nos deter em uma das frases que aparecem na HQ: “Isso não são as coisas, isso é só a aparência das coisas”. Quando associada às colagens de artigo do consumo, esta frase é reveladora para um dos sentidos que este recurso assume: publicidades, embalagens e manuais de instruções fazem parte de um repertório de imagens que encontramos dos objetos; são apenas aparências que podem ser reconhecidas com o fim do consumo. Por ser feita de imagens prontas, com significados intrínsecos, a colagem não serve como representação do real – elas são apenas imagens do real, resgatadas para substitui-lo.

A HQ de Oliver, portanto, permite que avancemos no estudo da problematização da categoria do romance de representação em O grifo de Abdera: as referências do mundo material que são resgatadas, na verdade, são, elas mesmas, representações cristalizadas e transformadas em objetos autônomos. O elo com o real é enfraquecido, e em determinados momentos o romance entra em uma espiral de fazer somente referências a referências.