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II. O LIVRO DE MAURO

2.1 Imagens poéticas

2.1.3 O canto do sabiá

A terceira imagem poética do livro que olharemos aqui é provavelmente a mais interessante porque permite que se faça um paralelo entre as metáforas da arte e da imaginação, usadas nos exemplos anteriores, e o próprio romance. De fato, ela oferece uma chave de compreensão para a incompatibilidade, construída no enredo, entre a afirmação do narrador sobre a sua história ser real e todos os elementos fantásticos que nela aparecem. Além disso, ela possivelmente põe em evidência um projeto do autor, na medida em que podem ser traçados paralelos entre ele e o narrador do livro.

A imagem surge em uma nova digressão de Mauro, em um momento do livro em que ele passa por um bloqueio criativo. Mauro conta que, ao longo da escritura do romance, sofre de insônia por causa de um sabiá que canta em sua janela a partir das 3 horas da manhã. Em função desse incômodo, não consegue criar sua história e se limita a falar sobre o pássaro. Seguindo um fluxo de pensamento, o narrador faz um paralelo entre o sabiá e ele mesmo, e percebe que o pássaro canta pelo mesmo motivo que ele escreve, ou seja, não para atrair os seus semelhantes, e sim por manifestar a própria solidão. Por último, e sem conexão aparente, afirma: "Vai ver que é como aquela fábula do sábio chinês que o Raul Seixas cantou. Talvez tanto eu quanto Oliver sejamos apenas o sonho do sabiá. Ou a manifestação de seu canto" (MUTARELLI, 2015, p. 36, grifos nossos).

Percebam-se novamente as marcas de dúvida no movimento do narrador de oscilar entre noções conflitantes sobre o real. De certa forma, aqui ele formula de outra maneira a mesma inversão entre ficção e vida, assim como na fábula do sábio chinês que sonha com uma borboleta e se pergunta se é ela que sonha com ele.37 Essa hipótese – colocada sempre como uma dúvida, uma vez que a noção de verossimilhança também está lá – do narrador sobre uma noção invertida sobre o real medeia a sua relação com o mundo e com a sua própria literatura: é sedutor acreditar que o canto do sabiá criaria a existência de Mauro e de Oliver, que criariam, por sua vez, as histórias transmitidas pelo romance e pela HQ. O próprio sabiá poderia ser o sonho ou a manifestação do canto de algum outro ser, e assim ad

infinitum, sem que nunca fosse possível o acesso ao conhecimento originário ou "real". Da

mesma forma, cada uma das três imagens propõe uma explicação diferente para essa mesma noção de inversão: o modelo da caixa d’água é binário, linear e finito (pois a lanterna                                                                                                                

37  A letra da música de Raul Seixas é a seguinte: “Era uma vez/Um sábio chinês/Que um dia sonhou/Que era

uma borboleta/Voando nos campos/Pousando nas flores/Vivendo assim/Um lindo sonho...//Até que um dia acordou/E pro resto da vida/Uma dúvida/Lhe acompanhou...//Se ele era/Um sábio chinês/Que sonhou/Que era uma borboleta/Ou se era uma borboleta/Sonhando que era/Um sábio chinês...” (SEIXAS, Raul. O conto do sábio chinês. In: Abre-te Sésamo. Rio de Janeiro: CBS, 1980. 1 disco sonoro, 32 min).

projetaria a Lua); o modelo da bailarina tem diversos termos (crença, vida, silêncio música, etc.) e é circular, ou seja, termina e recomeça com o mesmo termo; e o modelo do sabiá, apesar de linear (o sabiá cantaria o escritor, que contaria a vida do seu personagem), poderia ter termos infinitos, inacessíveis à imaginação do narrador.

Aqui está em evidência o papel do escritor, capaz de criar o real assim como o pássaro, a bailarina ou o pai que conta histórias ao seu filho. No entanto, podem-se perceber algumas diferenças fundamentais entre as duas primeiras imagens analisadas e a terceira. A força da imagem da caixa d’água, como dissemos, está no tom encantado da imaginação infantil, o que relativiza o engajamento nessa crença se baseado somente no mundo “adulto” e “realista”. A segunda imagem, da bailarina de Nimbos, se enfraquece pelo tom esotérico, que soa até mesmo um pouco artificial e debochado. Ao contrário destas, a imagem do sabiá ressoa aos ouvidos do leitor porque pode ser resgatada a partir de um repertório comum. Neste momento, cabe analisar o que representa a escolha desse pássaro, que dialoga com a tradição brasileira e aparece como mais um momento do livro em que se flerta com a materialidade histórica e a nossa cultura letrada.

O sabiá, emblema brasileiro da terra natal, da natureza e das nossas especificidades históricas e culturais, está deslocado das matas originárias e torna-se um pássaro urbano, cujo canto “imita o alarme dos carros” e, curiosamente, canta à noite38. Seus traços característicos são a solidão e a melancolia, através do quê se faz um paralelo com a figura do narrador, que sofre de insônia por conta do canto que o desperta e o “mantém incomodado” (MUTARELLI, 2015, p. 36).

Alguns elementos nos permitem levar mais adiante o uso da imagem do sabiá como emblema do Brasil. Mauro admite ser um sujeito urbano, que não sabe reconhecer plantas ou pássaros da nossa natureza. Em seguida, afirma: “Quando perguntei a um vizinho, que jura nunca ter notado o tal canto, ele me disse que, pela descrição, tudo levava a crer que fosse um sabiá. Dada a minha ignorância, acabei aceitando isso.” (MUTARELLI, 2015, p. 36). É muito interessante perceber que, além de assumir o seu desconhecimento, é um vizinho de Mauro quem lhe indica o nome do pássaro – e esses dados nos levam a supor possíveis paralelos com a figura de Mutarelli como escritor e, especialmente, cabe a sua já levantada relação com a nossa tradição literária, que é de colocar-se à margem, com a bandeira da cultura

underground. De Mauro seria esperado o conhecimento sobre o canto do sabiá, uma vez que

seu vizinho o conhece; ele deseja adquirir esse conhecimento a partir da percepção de suas                                                                                                                

38 É de sabedoria popular que os sabiás, pássaros da manhã, cantam durante a noite na cidade em função das

próprias semelhanças com o pássaro e da influência que ele tem em sua rotina; além disso, por algum motivo o vizinho não escuta o pássaro, como se só o escritor estivesse atento a isso. Todos esses traços apontam para o sabiá como uma metáfora da tradição literária brasileira, a qual o narrador, identificado com o autor, não conhece totalmente mas passa a querer conhecer em função de seu bloqueio literário.39

Esse paralelo é desenvolvido em seguida. O sabiá, deslocado para o ambiente urbano, canta solidão e melancolia, como que em nostalgia à sua natureza e ao seu encanto perdidos. Ele se assemelha, assim, ao próprio Mauro, que tem dificuldade em contar a sua história seja pelo problema na expressão – da dificuldade em narrar um fato sobrenatural em um mundo desencantado do olhar infantil –, seja pelo som do canto do sabiá, que ele gostaria de poder silenciar mas com que precisa lidar.

O exemplo do canto do sabiá atesta, assim, a importância que o uso das imagens poéticas assume dentro do livro. Elas têm o poder de condensar conteúdos que estão ali como que formando uma história subterrânea, formulando as ideias que estão por trás do romance e, também, uma espécie de projeto literário do autor, que justifica seus pressupostos e seus caminhos.