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A capacidade de leitura: o ato de decodificação

FUNDAMENTOS DAS DISCIPLINAS QUE COMPÕEM O NÚCLEO LINGUÍSTICO DA FORMAÇÃO NA ÁREA

2 O ATO DE LER: UMA REFLEXÃO SOBRE COMPREENSÃO LEITORA E SOBRE O PAPEL DA INTERSUBJETIVIDADE NA

2.2 IMPLICAÇÕES COGNITIVAS DA COMPREENSÃO LEITORA A leitura, dependendo do enfoque sob o qual é estudada, pode ser

2.2.1 A capacidade de leitura: o ato de decodificação

O ato de decodificar tem, segundo Morais (1996), especificidades e corresponde à capacidade de leitura, entendida como “[...] aquela parte do conjunto dos recursos mentais que nós mobilizamos ao ler e

que é específica da atividade de leitura, ou seja, não é posta em jogo nas outras atividades” (MORAIS, 1996, grifos nossos). Essa forma de

conceber o ato de decodificar tem lugar atualmente no meio científico devido a estudos realizados pela psicologia cognitiva e pelas descobertas recentes das neurociências, que possibilitaram o conhecimento da natureza dos processos de leitura, especialmente no que se refere ao reconhecimento das letras e à identificação das palavras. Ainda que essas contribuições das neurociências não possam ser instrumento para a análise dos dados empíricos desta dissertação, entendemos que vale o registro em nome do estado da arte nos estudos de leitura.

Para Morais (1996, p. 153), “[...] o reconhecimento de palavras escritas [a decodificação] constitui a capacidade específica da leitura [...]”, a qual está diretamente relacionada à performance da leitura. Segundo Kintsch (1998), é certo que bons leitores são bons decodificadores; eles reconhecem palavras duas vezes mais rapidamente do que maus leitores. Para o autor, “[…] better decoders build more accurate and complete representations of text content. Their decoding capabilities feed the growth of vocabulary, they know more word meanings, and they tend to have richer representations of individual word meanings13”. (KINTSCH, 1998, p. 283)

Ser um bom decodificador torna o leitor menos dependente do contexto para poder reconhecer as palavras. Enquanto leitores que não são bons decodificadores muitas vezes baseiam-se nas informações contextuais para reconhecer com mais rapidez as palavras de um texto, bons leitores conseguem reconhecer as palavras rapidamente mesmo sem utilizar o contexto. Em relação ao processo de decodificação, Morais, Kolinski e Grimm-Cabral (2004), tratando das crianças, escrevem:

13

“[...] bons decodificadores constroem representações mais precisas e completas do conteúdo do texto. Suas capacidades de decodificação alimentam o vocabulário, eles sabem mais significados de palavras, e eles tendem a ter representações mais ricas dos significados individuais das palavras”.

Quanto mais a capacidade da criança para identificar as palavras escritas for automatizada, mais sua atenção poderá ser consagrada à compreensão do texto. O grau de domínio da habilidade de identificação lexical, embora seja independente dos processos de compreensão, constitui uma condição de sucesso desses últimos. [...]

Estudos sobre o processo leitor, por várias décadas, constituíam o que foi definido como processamento ascendente (botton-up) ou processamento descendente (top-down) da leitura. O primeiro “supõe que o leitor começará por fixar-se nos níveis inferiores do texto (os sinais gráficos, as palavras) para formar sucessivamente as diferentes unidades linguísticas até chegar aos níveis superiores da frase e do texto” (COLOMER; CAMPS, 2003, p.30); ou seja, acontece de baixo para cima, da letra ao texto. Segundo Pereira (2010, p. 1-2), “[...] esse processamento é utilizado nas seguintes situações: o leitor tem poucos conhecimentos prévios sobre o conteúdo ou a linguagem do texto; o objetivo da leitura exige uma abordagem minuciosa; o texto para ler é de grande densidade, exigindo cuidadosa atenção”. O processamento

descendente acontece de cima para baixo, isto é, da mente do leitor ao

texto, dos processamentos globais à letra, sendo formado por outros mecanismos que intervêm na compreensão de um texto escrito. Esse processamento, de acordo com Pereira (2010, p.2), é utilizado quando “[...] o leitor tem muitos conhecimentos prévios sobre o assunto ou a linguagem do texto; o objetivo da leitura exige uma leitura geral; o texto para ler é pouco denso, contando com uma leitura global”. Atualmente, as duas formas de proceder são reconhecidas como constitutivas da leitura, devido, principalmente, aos avanços da psicologia cognitiva e das neurociências.

Dehaene (2007), em seus estudos na área da neurocognição, vem tentando mostrar o que acontece no cérebro durante o ato da leitura, isto é, como ocorre o processo de decodificação por meio da descoberta dos circuitos nervosos. Apesar de esse processo parecer, a princípio, automatizado, constitui-se em um complexo circuito de conexões e atividades neuroniais.

As técnicas recentes de mapeamento da atividade cerebral possibilitam a compreensão do fluxo de atividade neuronial que constitui o processo de leitura. Para Dehaene (2007), todo esse processo é como uma pororoca cerebral, pois, em alguns instantes, dezenas de

fragmentos de sentidos são conduzidos desde as áreas visuais até a ativação em determinada região do cérebro. Uma determinada palavra “[...] entre en résonance avec les réseaux du lobe temporal, et il fait vibrer, comme une puissant déferlante, les millions de neurones qui lui sont associes, jusque dans les régions les plus distantes du córtex [...]”14 (DEHAENE, 2007, p. 159).

Segundo Dehaene (2007), o ato de ler começa no olho, mais especificamente na fóvea, área central da retina que ocupa 15° do campo visual e é responsável pela captação e reconstituição das palavras, antes de seu reconhecimento. A estreiteza da fóvea faz com que movimentemos os olhos no curso da leitura. O cérebro adapta a distância percorrida pelo olho ao tamanho dos caracteres, de modo a avançar em torno de sete a oito unidades15 por sacada, limitando a velocidade de leitura.

Uma vez que nosso olhar se desloca durante a leitura, o centro de nossa retina aterrissa, em geral, ligeiramente à esquerda do centro da palavra. Letras apresentadas na periferia do campo visual são mais difíceis de serem reconhecidas devido à perda da resolução. “Cependant, il ne se pose pas toujours exactement au même endroit. Si le mot n’est pas trop long, peu importe que notre regard se fixe sur sa première ou sur sa dernière lettre, cela ne nous empêche pas de le reconnaître”16 (DEHAENE, 2007, p. 44). Nosso olhar não incide aleatoriamente sobre qualquer palavra, mas naquelas com maior carga de significação (verbos, substantivos e advérbios, por exemplo), não incidindo, portanto, sobre morfemas puramente gramaticais (artigos e preposições). Tal descrição nos mostra que há um processamento global que recupera a palavra por meio de um processo de fragmentação de diversas palavras, que são analisadas muito rapidamente pelo cérebro.

Duas vias de reconhecimento das palavras causaram embate, durante algum tempo, entre pesquisadores e teóricos da área da leitura, tal qual mencionamos anteriormente. Alguns defendem que durante a leitura a passagem pela imagem acústica dos grafemas é fundamental antes de encontrar a significação da palavra – via fonológica. Por outro

14 “[...] entra em ressonância com os circuitos do lobo temporal e faz vibrar, como uma rebentação poderosa, milhões de neurônios que lhe são associados até as regiões mais distantes do córtex [...]”.

15 Essas unidades podem referir-se a letras, palavras, perífrases, sintagmas breves; a capacidade diz respeito a unidades de sentido, independentemente da natureza dessas unidades.

16 “Contudo, o olhar não pousa sempre no mesmo local. Se a palavra não for muito longa, pouco importa que nosso olhar se fixe sobre a primeira ou sobre a última letra: isso não nos impede de a reconhecer”.

lado, há os que acreditam na via lexical, isto é, que durante a leitura vai- se das letras diretamente à significação, sem necessidade de acoplamento aos fonemas ou da pronúncia mental. Dehaene (2007) acredita que, durante o ato da leitura, as duas vias de tratamento das palavras, a via lexical e a via fonológica, funcionam em paralelo, uma sustentando a outra. Ainda assim, acredita que a sonoridade das palavras, ou melhor, a conversão grafema-fonema, continue a ser utilizada em muitos casos, mesmo se não tivermos consciência disso. Da mesma forma, a significação pode ocorrer por uma via direta, das letras ao sentido, sem passar pela imagem acústica. Assim, conforme a palavra lida, a pororoca cerebral segue de preferência uma ou outra via de leitura, sendo que, em apenas um quarto de segundo, vamos da etapa visual às primeiras margens de sentido da palavra.

Lorsque nous lisons des mots rares, nouveaux, à l’orthographe régulière, voire des neologismes inventés de toutes pièces, notre lecture passe par une voie phonologique qui décrypte les lettres, en déduit une prononciation possible, puis tente d’accéder au sens. Inversement, lorsque nous sommes confrontés à des mots fréquents ou irréguliers, notre lecture emprunte une voie directe, qui récupère d’abord le mot et son sens, puis utilise ces informations pour en recouvrer la prononciation (DEHAENE, 2007, p.68)17. Há ainda outro aspecto com o qual nosso cérebro tem de se acostumar, ao longo do aprendizado da leitura: a invariância das letras. O sistema alfabético apresenta muitas letras parecidas, as quais se diferenciam apenas pela direção na articulação dos traços que as compõem, como as letras “b” e “d”, ou “p” e “b”, por exemplo. Durante o aprendizado da leitura, esse espelhamento das letras é um problema para as crianças, dificultando a aprendizagem, uma vez que, segundo Dehaene (2007, p. 47), “[...] cette capacité d’attention aux détails pertinents résulte d’annés d’apprentissage18”.

17 Quando lemos palavras raras, com ortografia regular, nossa leitura passa por uma via fonológica que decodifica os grafemas e deduz uma pronúncia possível e depois tenta acessar a significação. Inversamente, quando somos confrontados com palavras frequentes ou irregulares, nossa leitura assume uma via direta, que recupera desde o início a palavra e seu sentido e depois utiliza essas informações para recuperar a pronúncia (DEHAENE, 2007, p.68). 18 “[...] esta capacidade de atenção aos detalhes pertinentes resulta de anos de aprendizagem” (DEHAENE, 2007, p. 47).

Sobre a correspondência grafêmico-fonêmica, Dehaene (2007) a comprova por meio do efeito priming, que ocorre em dois níveis distintos, um nível ortográfico e outro fonológico, sendo que ambos interagem entre si. Segundo ele, a leitura de uma palavra facilita o reconhecimento de palavras relacionadas (prime). As palavras “lido” e “lemos”, por exemplo, podem ser primes uma da outra, enquanto que “vinte” e “pinte” não, pois essas, apesar de partilharem alguns fonemas, não têm relação entre si.

O efeito priming em nível fonológico faz com que associemos, imediatamente, um grafema a seu fonema correspondente. Essa é uma tarefa fácil nos casos de correspondência biunívoca, nos quais para cada grafema há um fonema correspondente, e vice-versa, tal qual acontece com a letra “p” representando o fonema /p/. O número de grafemas da língua portuguesa não ultrapassa setenta e dois.

O processamento da leitura inicia-se, portanto, na região occípito- ventral esquerda, onde ocorre o reconhecimento das letras e de seus grafemas por meio de uma memória dos traços invariantes das letras. Em seguida, dá-se um link com a região occípito-temporal esquerda para a atribuição dos valores aos grafemas, pois essa região tem a memória da variedade sociolinguística do falante, permitindo o acesso à memória lexical fonológica – às imagens acústicas. Depois disso, há um direcionamento para o léxico mental da significação básica das palavras (DEHAENE, 2007).

O complexo processo de decodificação dos sinais gráficos, por meio do qual se processa cada letra, nem sempre foi reconhecido por alguns autores como necessário para a leitura e a compreensão de um texto em se tratando de leitores formados. Smith (2003 [1989]), por exemplo, defende que o leitor proficiente usa de forma restrita os indícios gráficos, buscando apenas alguns indícios que são imprescindíveis. Segundo o autor, o leitor usa todos os seus conhecimentos para fazer antecipações e formular hipóteses sobre o texto.

As habilidades de decodificação são básicas e fundamentais em qualquer atividade de leitura; no entanto, de acordo com Kintsch (1998), ser um bom decodificador, o que significa demorar de 114 a 135 milissegundos no reconhecimento de cada palavra, não garante ser um bom leitor, pois outras ações estão envolvidas na compreensão de um texto, algumas das quais vamos discutir nas seções que seguem. Uma questão, porém, é certa: a mecanização desse nível, isto é, a rapidez e a precisão na decodificação, permite operar mais livremente nos níveis superiores da informação (COLOMER; CAMPS, 2002).

2.2.2 A atividade de leitura: implicações cognitivas da compreensão