• Nenhum resultado encontrado

ESPECIFICIDADES E COMPARTILHAMENTOS DA/ENTRE A ORALIDADE E DA/A ESCRITA NA EAD

FUNDAMENTOS DAS DISCIPLINAS QUE COMPÕEM O NÚCLEO LINGUÍSTICO DA FORMAÇÃO NA ÁREA

3 APROPRIAÇÃO DE CONHECIMENTO E EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: MEDIAÇÃO POR MEIO DA MODALIDADE

3.2 ESPECIFICIDADES E COMPARTILHAMENTOS DA/ENTRE A ORALIDADE E DA/A ESCRITA NA EAD

A escrita atualmente é usada em contextos sociais básicos da vida cotidiana (na família, na escola, no dia a dia), em paralelo direto com a oralidade. Oralidade e escrita são hoje concebidas como atividades complementares, visão que só começou a ser difundida, segundo Marcuschi (2008), a partir dos anos 80. Antes disso, eram vistas de forma dicotômica, como opostas, tomadas a partir de propriedades intrínsecas como o entendimento de que a oralidade é presencial e circunscrita no instante, enquanto a escrita aposta na permanência ao longo do tempo, propriedades hoje colocadas em xeque sobretudo em razão de mídias digitais. De acordo com o autor, as “[...] relações entre fala e escrita não são óbvias nem lineares, pois elas refletem um constante dinamismo fundado no continuum que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da língua. Também não se pode postular polaridades estritas e dicotomias estanques.” (MARCUSCHI, 2008, p. 34)

Em uma concepção clássica e dicotômica das relações entre oralidade e escrita, Kato (1986) defende a tese de que, na fase inicial de letramento45, é a escrita que representa parcialmente a fala, havendo posteriormente a inversão desse processo. A autora esquematiza esse movimento da seguinte forma: fala 1 > escrita 1 > escrita 2 > fala 2, em que a fala 1 corresponde ao período de pré-letramento46; a escrita 1 é a que representa a fala da forma mais natural possível; a escrita 2 é a que se torna quase autônoma em relação à fala, e a fala 2 é a que resulta do letramento. Diferentemente de Kato (1986), Terzi (2008 [1995]) considera que o desenvolvimento da língua oral e o desenvolvimento da língua escrita se influenciam mutuamente. Segundo ela, “[...] as influências mútuas entre oralidade e escrita são mais bem representadas enquanto movimento dialético cujo esquema seria: fala 1 ↔ escrita 1 ↔ fala 2 ↔ escrita 2”, diagrama que representaria melhor a reflexividade entre o desenvolvimento das duas modalidades.

45 A concepção de letramento que subjaz às teorizações da autora corresponde ao que hoje entendemos por letramento escolar (CERUTTI-RIZZATTI, 2009).

Compartilhamos com Marcuschi (2008) a compreensão de que, sobretudo na contemporaneidade, fala e escrita não podem ser tomadas como dicotômicas tal qual se registra em estudos dessas modalidades (KATO, 1986). Vivemos em uma época em que tais modalidades compartilham espaços, aproximando-se em um continuum, como propõe Bortoni-Ricardo (2004). Importa, reconhecer, porém, que fala e escrita, mesmo que tomadas em um continuum, constituem duas modalidades de uso da língua e, como tal, a despeito de aproximações, têm características e especificidades que as distinguem. Nesse sentido, ainda que advoguemos em favor de uma relação dialética entre fala e escrita na atualidade, compartilhamos com concepções de Scliar-Cabral, segundo a qual os textos escritos, por exemplo, diferentemente dos textos orais

[...] precisam ser auto-referenciados, de modo a permitir a extração da informação do meio impresso; não existe a possibilidade de informação extra fornecida pelo redator, tais como retificações, expressão facial e corporal, apontar para os objetos [...] ou quaisquer outras pistas da entoação. (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 46) No que respeita, ainda, à natureza de tais distinções ou similaridades, segundo remissão que já fizemos a Gee (2004), a fala tende a ser concebida como um processo natural, biológico, inerente à espécie – adquirida desde que haja exposição e interação –, enquanto a escrita tende a ser concebida como um processo instrucional, de natureza “artificial”, “aprendida” por meio de um percurso intencional e sistemático de instrução, assim como o é a aprendizagem da Física. Gee (2004), no entanto, tal qual mencionamos anteriormente, apresenta uma visão alternativa para a compreensão da escrita no âmbito dessa dicotomia. Para ele, a apropriação da escrita é um processo cultural que não se caracteriza pela artificialidade da aprendizagem dos conhecimentos enciclopédicos; por outro lado, não pode ser concebida como um processo natural, por se tratar de uma invenção relativamente recente na história da humanidade. Ainda que sob uma perspectiva muito diferente da de Gee (2004), neurocientistas como Dehaene (2007), a quem também já fizemos alusão em capítulo anterior desta dissertação, registram que o aprendizado da escrita, dada a condição recente dessa modalidade na história da humanidade, necessita de

reciclagem dos neurônios, pois esses só são biologicamente especializados para a fala.

Assim, parece certo que há especificidades distintivas das/entre as modalidades, o que, no entanto, em nossa compreensão, não impede que concebamos suas relações como dialéticas e não como dicotômicas. A comunicação via internet, por exemplo, central na modalidade de educação a distância, é caracterizada, em grande medida, por usos que mesclam elementos dos universos oral e escrito.

De acordo com Ramal (2002), a informática instaurou um novo polo comunicacional – diferente daquele cuja principal forma de transmissão e aprendizagem dos saberes culturais era a oralidade, e distinto também do período em que a escrita se associou à oralidade, trazendo novas formas de contato com o conhecimento –, em relação ao qual se podem notar desestabilizações dos modos tradicionais de gestão. A autora afirma que “[...] a informática transforma o conhecimento em algo não material, variável, fluido e indefinido [...]” e que “[...] os suportes digitais, as redes, os hipertextos são, a partir de agora, as tecnologias intelectuais que a humanidade passará a utilizar para aprender, gerar informação, ler, interpretar a realidade e transformá-la.” Nas salas de bate-papo (chats), por exemplo, os diálogos, que são escritos, se parecem muito mais com textos falados. Não há, geralmente, preocupação com a forma; a rapidez da comunicação é colocada acima da correção ortográfica e gramatical; e há a possibilidade até de recurso a sinais, como os emoticons, criados para retratar expressões faciais, constituindo-se numa espécie de entonação que garante força ilocucionária aos textos, ou, pensando de outro modo, os emoticons são estratégias encontradas para vencer as limitações da linguagem escrita, que nunca é a transcrição completa da fala. De acordo com Machado Junior (2008, p. 179-180), “[...] o caráter interativo das ferramentas de comunicação [...] é potencializado quando a interface gráfica do AVA47 disponibiliza ferramentas que aproximam o diálogo escrito do diálogo face a face.”

Os sistemas de bate-papo permitem às pessoas interagirem digitando mensagens que são enviadas e recebidas. Um chat é como um diálogo entre diversas pessoas, porém, na forma de texto escrito; como um recurso síncrono, tem um importante papel, pois acontece em tempo real, constituindo-se como um texto misto, com características típicas da oralidade e da escrita. Lembra-nos Marcuschi (2008, p. 18), que “[...]

47 Ambiente Virtual de Aprendizagem, também definido por alguns autores como AVEA – Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem.

algumas das propriedades até há pouco atribuídas com exclusividade à fala, tal como a simultaneidade temporal, já são tecnologicamente possíveis na prática da escrita a distância, com o uso do computador”. Importa considerar, porém, que, embora em determinadas configurações (chat, fóruns, e-mails), a escrita esteja, hoje, muito próxima da fala, em outras (livro-texto, ensaios, obras literárias), a escrita mantém suas especificidades, exigindo capacidade de atenção para recuperação de informações que não estão dadas no contexto físico, concentração e habituação com textos longos, o que, implica, segundo Gee (2004), agenciamento de habilidades que o sujeito desenvolve em um processo cultural.

Dentro desse quadro, importa questionar como sujeitos que se valem da EaD lidam com a escrita e com leituras de relativa complexidade em usos intrinsecamente vinculados à erudição, a exemplo da leitura, na maioria das vezes solitária, de livros-texto e ensaios teóricos nas áreas de Fonética e Fonologia, Morfologia e afins, se muitos desses mesmos sujeitos têm, segundo sinalizam os indicadores, desenvolvidas apenas as habilidades de leitura requeridas em usos mais próximos do polo do continuum48 que estabelece maior interface com a oralidade (BORTONI-RICARDO, 2004), não estando habituados de todo ao uso da escrita em situações que impliquem maior grau de escolarização, com complexas abstrações teóricas.

Talvez isso explique por que, segundo dados gerados para esta pesquisa e que serão discutidos em capítulo à frente, a maioria dos estudantes considera que as videoaulas, as quais são pautadas na oralidade, contribuem para o entendimento do conteúdo pelo fato de eles poderem ver e ouvir o professor.