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A capitalidade posta à prova: revoltas no Rio de Janeiro

Capítulo 2 |A capital e os seus estranhos: cidade e literatura no Rio de Janeiro

2.3. A capitalidade posta à prova: revoltas no Rio de Janeiro

As revoltas contra a presidência e a capital são subtemas que atravessam os dois romances (EJ e TFPQ) e embaraçam as representações da capital como um centro difusor da civilização. A vida urbana na capital dependia das imagens de uma polis capaz de conciliar as divergências das demais províncias. No entanto, no momento em que a própria cidade é ameaçada, o discurso de capitalidade se fragiliza. As dimensões econômica e cultural revelam tensões entre discursos e práticas, o mesmo se dá no âmbito da política. Não obstante o constructo liberal, fica patente o papel das oligarquias regionais em uma espécie de pacto nacional. A Revolta da Armada evidenciou uma inadequação entre a cidade do Rio de Janeiro e sua condição de capital. Por exemplo, sua vulnerabilidade era inclusive geográfica, por ser litorânea, a cidade estava exposta aos ataques de embarcações.

O desentendimento entre a marinha e o exército explica parcialmente a oposição de Custódio de Mello a Deodoro da Fonseca. O almirante Custódio queria ser presidente e por isso antagonizava o marechal empossado. Além disso, havia a rejeição da marinha (tradicionalmente ligada ao império) ao jacobinismo. Tais conflitos ficaram conhecidos como as duas Revoltas da Armada, sendo que o primeiro levante ocorreu em 1891 e o segundo, mais grave, em 1893. A capital federal foi ameaçada pelas embarcações insurgentes: “A Revolta da Armada assustou o Rio de Janeiro, pois tinha

lugar diante da cidade, cuja população se via sob a ameaça de bombardeios: dos navios para a cidade e das fortalezas e mais armas do litoral sobre os navios, colocando os habitantes em perigo.” (IGLÉSIAS, 1993, p.202).

A Revolta da Armada, a queda de Deodoro e a ascensão de Floriano são matérias exploradas e avaliadas por Machado de Assis e Lima Barreto. O bruxo de Cosme Velho reconheceu o aspecto trágico da Revolta, mas atenuou os riscos do levante para as camadas privilegiadas da cidade. Já Lima Barreto, carnavaliza os enfrentamentos diários entre as lanchas e as tropas, alternando das caracterizações trágicas para as burlescas. A Revolta é representada como o ápice do absurdo republicano, mas com consequências reais para azarados, desvalidos e derrotados. Enfim, o ethos de civilização europeia em torno do centro político se esvaneceu. Para Barreto, a violência e o fratricídio dissolveram a imagem dos brasileiros como um povo ameno, para Machado fica a sugestão de que o Brasil teria se tornado uma republiqueta.

Conforme o esperado, os personagens de Esaú e Jacó passam incólumes pelas crises – com exceção de Flora que padece por doença. Mas em Triste Fim de Policarpo Quaresma, os trucidamentos são mostrados em primeiro plano, tanto que o próprio Policarpo é encarcerado e pela maneira que encerra a narrativa não é possível saber se ele foi fuzilado ou anistiado. De qualquer forma, ambas as narrativas apresentam interpretações bem particulares da transição do império para a república, assinalando as continuidades e as rupturas em torno da capitalidade fluminense. A representação do Rio de Janeiro como capital comporta o reconhecimento de que a sociabilidade política do Brasil é violenta. Os embates entre as facções evidenciam o ponto de vista de Lima Barreto, mas Machado também aborda tal problemática.

A representação da queda da monarquia em Esaú e Jacó é conhecida. Trata-se do episódio das tabuletas da confeitaria do Custódio, um vizinho do conselheiro Aires.

A troca de regimes o colocou em um impasse, pois acabara de encomendar uma placa nova com a inscrição “Confeitaria do Império” – assim, temia ser associado aos monarquistas. A conversa entre Aires e Custódio é alegórica e disserta sobre a inesperada mudança de regime. Os dizeres do conselheiro expressam uma avaliação crítico-irônica da proclamação da república. Há uma perspectiva pessimista, ao identificar a continuidade dos mesmos grupos. Por isso, Aires apazigua, em outra ocasião, os temores de Santos, argumentando que não haveria maiores impasses para os capitalistas do Rio:

Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regime, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição. (EJ, p.259)

A perspectiva é que a cidade do Rio de Janeiro não sofreria alterações em função da proclamação da república conforme se observa na própria leitura de Aires, tomando a quartelada como uma troca a mais de gabinete. Os receios de Santos quanto aos fuzilamentos ou outras violências são prontamente descaracterizados pelo diplomata aposentado, pois ele toma o brasileiro por pacífico. Durante a manhã de 15 de novembro, antes de receber o vizinho Custódio e o amigo Santos, o conselheiro já tinha percebido algo incomum nas ruas da cidade. Na visão de Aires, tratavam-se de ajuntamentos de pessoas e conversas truncadas, nada que se assemelhasse a um golpe de Estado ou revolução.

Enfim, cansou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo, e passeou à toa, revivendo homens e coisas, até que se sentou em um banco. Notou que a pouca gente que havia ali não estava sentada, como de costume, olhando à toa, lendo gazetas ou cochilando a vigília de uma noite sem cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas palavras soltas, Deodoro, batalhões, campo, ministério, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para ele, a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha às notícias. Não juro que assim fosse, porque o dia vai longe, e as pessoas não eram conhecidas. O próprio Aires, se tal coisa suspeitou,

não a disse a ninguém; também não afiou o ouvido para alcançar o resto. Ao contrário, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lápis uma nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epíteto de louvor, uns ao governo, outros ao exército: podia ser amigo de um ou de outro. (EJ, p.241- 242)

De acordo com a narrativa, havia uma anormalidade na cidade manifestada em uma excitação dos transeuntes pelas novidades, mas não chegava a se tornar em efetivo envolvimento na conturbação. A presença de Aires desconcerta os confabuladores, pois a possibilidade de um vigia era o suficiente para a dispersão. Trata-se de uma interessante representação da vida urbana na capital: em um momento de crise política, o que não se tem na rua são as multidões! Os cochichos eram o extremo da mobilização política naquele contexto. A caminhada do conselheiro na manhã de 15 de novembro o transforma em uma testemunha da contradição da cidade do Rio de Janeiro como centro político – não havia uma participação da população nesse tipo de política institucional. Machado de Assis tematiza o distanciamento do povo com a vida política da cidade.

Em Os bestializados, José Murilo de Carvalho (2001) desconstrói o imaginário da apatia dos fluminenses. Segundo o historiador, os regimes de cidadania eram distintos. O povo não participava da política eleitoral e partidária, mas buscava outras formas de atuação. De qualquer forma, a ausência da população nas ruas no dia 15 de novembro contrasta com o 13 de maio de 1888. No romance de Machado Memorial de Aires há um relato (do mesmo personagem que aparece em Esaú e Jacó) acerca da euforia coletiva causada pela extinção da escravatura. Vale conferir o excerto:

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. (MA, p.63).

A comoção atinge a Rua do Ouvidor, sugerindo o “alívio” geral pela abolição. O conselheiro parece evitar utilizar a palavra escravidão, como se ela própria fosse

vergonhosa. A animação é crescente e o diplomata aposentado sente-se tentado em ir com o cortejo ao paço.

Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu- me lugar no seu carro, que estava na Rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da Rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fôsse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos. (MA, p.63).

De fato, os relatos das duas situações (13 de maio de 1888 e 15 de novembro de 1889) são distintos, mas convergem em uma mesma direção. O término da escravidão – no âmbito do imaginário – permitira associar o Rio de Janeiro às cidades europeias. Já a deposição do imperador, no entanto, parecia aproximar a cidade e o país às repúblicas latino-americanas, com a participação dos militares na política e as constantes quarteladas, por exemplo. Ou seja, a maneira como a república foi proclamada implicava certa ambiguidade com relação ao amadurecimento do Brasil como civilização. John Gledson observou que as alusões feitas por Aires (EJ) sobre Caracas poderiam sugerir a presença do arquétipo da República Hispano-Americana (GLEDSON, 1986, p.176).

Ao longo da narrativa, algumas suposições de Aires se revelam equivocadas. Por exemplo, a Revolta da Armada descaracterizaria a imagem de um Rio apto a liderar com pouca violência e muita persuasão. Nesse sentido, Pedro e Paulo representariam não apenas os regimes (GLEDSON, 1986, p.173), mas a própria capital; quer dizer, Pedro referenciaria à capital imperial e Paulo à republicana. Portanto, convencimento e violência seriam componentes da vida urbana fluminense e da política nacional. Toda a

questão é posta em termos da distribuição do poder pelo espaço geográfico da cidade, desconsiderando a participação das demais províncias.

Em Esaú e Jacó, Machado não esmiúça a violência florianista, embora fique subentendida. O núcleo principal dos personagens é preservado dos eventos posteriores à decretação de Estado de Sítio. Após a morte de Flora, ocorrida nesse intervalo, todos se deslocam para Petrópolis, cidade que representa o oposto da capital, dada a pretensão de neutralidade. Mas de qualquer forma, a capitalidade do Rio se fragiliza com a irrupção da violência – até então restrita as províncias – em seus arredores. Isto não quer dizer que a capital gozasse de paz e tranquilidade absolutas, muito pelo contrário, os enfrentamentos entre a população e as autoridades eram frequentes. Porém a ameaça de um bombardeamento pela marinha instala um clima de guerra que repercute não só na capitalidade, mas na imagem do país.

Em certo sentido, é como se a “barbárie” das províncias chegasse à capital. A perspectiva machadiana sugere a inexistência da civilidade, pois fora o verniz de civilização, restaria apenas uma brutalidade. Mesmo assim, há uma acomodação e as pessoas acabam se adaptando à guerra civil. Na verdade, toda a convulsão política é resumida com presteza pela narrativa: “No meio dos sucessos do tempo, entre os quais avultavam a rebelião da esquadra e os combates do Sul, a fuzilaria contra a cidade, os discursos inflamados, prisões, músicas e outros rumores...” (EJ, p.425). Durante o governo de Floriano Peixoto houve uma acentuação da violência política na cidade, no entanto, Machado aborda rapidamente essas questões. Não há menções aos excessos jacobinistas, aos conflitos e às balas perdidas.

Nesse sentido, trata-se de uma integração entre o caos e a desordem no cotidiano. Na verdade, o Rio não era pacífico ou estável, os confrontos nas ruas não eram acontecimentos extraordinários. O que altera com a Revolta da Armada é o

confronto da marinha contra a capital da república, expondo a população aos bombardeios. Em um sentido mais profundo, Machado de Assis intuiu como o ethos de uma sociabilidade política liberal era frágil. No entanto, os combates nas ruas do Rio não alteraram o mundanismo, mas ampliaram as faixas de risco.

O conto “Pílades e Orestes”, publicado na coletânea Relíquias de Casa Velha (1952 [1906]) menciona as balas e as vítimas dos combates no Rio: “Um dia, em que levando doces para os afilhados, atravessava a praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente.” (RCV, p.138). Esses incidentes, no entanto, não aparecem em Esaú e Jacó. O jacobinismo recebe apenas uma menção: “Santos folgava de se prolongar pela medicina e pela advocacia dos filhos. Só receava que Paulo, dada a inclinação partidária, buscasse noiva jacobina.” (EJ, p.426). A minha interpretação é que a representação do Rio de Janeiro como o centro político do país é submetida a uma desconstrução ao longo do romance, de modo que a cidade, para não enfrentar a perda da sua capitalidade, fechou-se sobre si mesma.

Ao ambientar a narrativa quase que exclusivamente no Rio de Janeiro, Esaú e Jacó aborda período crítico da história do Brasil. Os confrontos entre revoltosos e florianistas repercutiram na cidade, acentuando a violência política. A trama do romance se embaralha nas diatribes da política nacional. Mas a sociedade de Botafogo passa relativamente incólume por essa situação, refugiando-se em Petrópolis. A situação é diferente em Triste Fim de Policarpo Quaresma, pois nesta narrativa, os embates são representados como liberação de uma agressividade latente – legalistas e insurretos se batem com igual ferocidade. Assim, a Revolta da Armada é um evento extraordinário e que leva ao paroxismo as contradições republicanas, tanto que o ceticismo final de Policarpo é com a humanidade e não com o Brasil (FIGUEIREDO, 1998, p.92).

Há uma diferença de escala entre os dois romances, pois em Esaú e Jacó a Revolta da Armada é desfecho de um triângulo amoroso (Pedro, Flora, Paula), mesmo que os gêmeos não tenham participado dos conflitos. A morte da moça sela, provisoriamente, a aliança entre os rapazes, caso contrário eles poderiam ter se batido nos conflitos. Já em Triste Fim de Policarpo Quaresma, a guerra civil ocupa toda a terceira parte. Policarpo chega voluntariamente ao teatro de combates para resistir com Floriano Peixoto. Desse modo, o herói parte do campo (sítio Sossego) em direção à capital com a dupla missão de socorrer o presidente e auxiliar a lavoura. A crença no pulso firme do marechal esconde, de certa forma, orfandade em relação à monarquia. Quaresma, vendo em Floriano um aliado, pretendia convencer o Estadista a operar reformas fiscais, instaurando a livre circulação dos produtos agrícolas e incentivando o trabalhador rural.

No entanto, essas medidas foram recebidas com frieza por um marechal desinteressado por tais questões. Além disso, Floriano Peixoto é representado como um homem de fraca energia mental, sintetizando em si as características que Barreto atribuía a toda uma classe. Abaixo uma das caracterizações do presidente:

Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos. (TFPQ, p.125)

A narrativa questiona a frivolidade da Belle Époque e o desconhecimento geral em relação aos problemas do resto do país. O marechal, por exemplo, teria uma inépcia intelectual típica da classe no comando da república. Desse modo, a desconstrução do patriotismo revela um centro político destituído não só de civismo, como da compreensão do todo. É o que se vê no desinteresse de Floriano pela lavoura: “- Mas,

pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...” (TFPQ, p.143). Para o ditador (o termo é de Barreto) o patriotismo de Policarpo era um aborrecimento maior do que os pedidos interessados e mesquinhos dos seus subordinados.

Fica a dúvida se o Rio seria a “cabeça da nação” ou um ente parasitário. Isto porque a representação da cidade capital em Triste Fim de Policarpo Quaresma revela uma apreciação negativa não só do marechal, mas dos militares e do funcionalismo em geral. A narrativa não se furta em descrever a presença dessas categorias como um pathos na cidade. Apesar do apelo à ordem, os militares aparecem como elemento transgressor. A quantidade de oficiais e graduados de diferentes corporações altera a rotina da cidade e deixa os civis acuados:

Estava repleto, muitas fardas de oficiais; a avaliar por ali o Rio devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os militares parlavam alegres, e civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados. Se falavam, era cochichando, olhando com precaução para os bancos de trás. (TFPQ, p.114).

O fanatismo jacobino e o oportunismo dos carreiristas fazem parte do ambiente que Barreto caracterizou como inautêntico. Doutores, oficiais e políticos camuflavam interesses pessoais em discursos patrióticos – dada a convicção sincera de Policarpo, ele se torna, para todos os efeitos, um estranho. Além disso, denúncias e perseguições a dissidentes e inocentes (delatores pretendiam cair nas graças do poder) dissolvem a imagem da docilidade do brasileiro. Portanto, a capital é resultado de um falseamento constante, no qual a própria população precisa se adapta à rotina dos confrontos (FIGUEIREDO, 1998, p.85). A banalização da morte, por sua vez, acentua o arrivismo e a dissipação; e a revolta se transforma em espetáculo público, as escaramuças são tratadas como componentes de uma representação teatral:

Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de

teatro: "Queimou Santa Cruz! Agora é o 'Aquidabã'! Lá vai". E dessa maneira a revolta ia correndo familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade. (TFPQ, p.139).

O modo como os fluminenses lidam com o conflito mostra que nem mesmo a guerra civil interferiu no mundanismo da cidade. As atividades na Rua Ouvidor continuam, os tiros causam rebuliço, mas após poucos minutos, a rotina retorna. Crianças e adultos passam, inclusive, a colecionar as balas encontradas no chão. Elas se transformam em souvenirs, empregadas como efeitos de decoração, mostrando uma população ignorante da brutalidade em curso na cidade, refugiando-se no mundanismo para não deparar com o autoritarismo do governo ou o fanatismo dos positivistas. A suposta proeminência da capitalidade se perde em uma vida cívica incompleta. Nessa sociedade da Belle Époque, tudo passa a ser representado como um grande espetáculo, faltava uma gravidade que, ao menos para Machado de Assis, parecia existir no Segundo Império.

Após a derrota dos insurgentes, a repressão do governo é intensa, com prisões e execuções sumárias; a cidade – por medo ou consentimento – se cala diante dos expurgos. Nesse sentido, Policarpo Quaresma é uma testemunha do massacre republicano (DECCA, 1997). Sua intercessão pelos vencidos foi sua ruína, pois na lógica do florianismo positivista não haveria o reconhecimento do adversário como um cidadão. O desfecho do romance, em termos de representação literária da cidade, é perturbador, a capitalidade do Rio de Janeiro também se revela um falseamento. O governo recusa gerir divergências e opta pelo extermínio dos dissidentes, assim, a noção da urbe como centro cívico inexiste, pois enquanto Quaresma reclama o respeito aos derrotados, os demais se aferravam aos despojos do poder.

Os conflitos entre Custódio de Mello e Floriano Peixoto extrapolam a dimensão de uma luta entre marinha e exército ou de um oportunismo para chegar/manter a

presidência. Na verdade, é perceptível o atrofiamento da cidade em sua dimensão cívica. Em épocas de crise (ambiental ou política), os moradores mais abastados tinham a possibilidade de migrar para Petrópolis – a cidade protegida da febre amarela e dos fratricídios. Na narrativa de Machado de Assis, a cidade do Rio de Janeiro mantém a liderança, o mutismo de Floriano Peixoto (EJ, cap. LXXVIII), por exemplo, se não é digno ao menos não é patético. Lima Barreto é menos condescendente com a cidade e seus habitantes, a relação dos fluminenses com os combates revela uma inconsequência quanto às implicações da revolta.

Enfim, os dois romances lidam com representações da capital, mostrando aspectos econômicos, culturais e políticos. Se em Triste Fim de Policarpo Quaresma há uma desilusão quanto à dimensão cívica da capital, o romance Esaú e Jacó exprime a continuidade entre império e república, cabendo à cidade ser a ponte entre os dois regimes. Entender o Rio como “cabeça da nação” ou como “laboratório” para o restante do país estabelece a efetiva condição de sede imperial ou republicana. Escritores