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Representações da capital em Esaú e Jacó e Triste Fim de Policarpo Quaresma

Capítulo 2 |A capital e os seus estranhos: cidade e literatura no Rio de Janeiro

2.2. Representações da capital em Esaú e Jacó e Triste Fim de Policarpo Quaresma

Quaresma

Nos textos de Machado de Assis e Lima Barreto há um conjunto de imagens acerca do Rio de Janeiro que, conscientemente ou não, evocam experiências da modernidade. Todavia, antes de adentrar especificamente nesse terreno, vale assinalar a concepção de “capitalidade” como elemento que enquadra algumas imagens da cidade fluminense.

É preciso apontar que as representações da cidade moderna e as representações da capital não são necessariamente coincidentes – embora, na maioria das vezes, seja isso que ocorra. As imagens do poder político carregam um imaginário em muitos casos baseados na tradição, como contraparte as imagens do moderno se traduzem pelo apelo ao novo. Machado e Barreto não reproduzem acriticamente os atributos componentes daquele imaginário; conforme será mostrado ao longo desta seção eles operam a desconstrução de discursos. De qualquer forma, a cidade capital aparece como o centro da vida cívica, englobando atividades como a troca comercial e a dinâmica da vida cultural.

Nessa acepção, o Rio de Janeiro desempenha a função de coligar as demais partes do país. Nesse esquema, as informações sobre a política local afluem dos rincões para a capital, pois ali será discutida a matéria de interesse nacional. O Rio aparece

como a sede do império, disposto a civilizar as partes atrasadas. A citação abaixo aborda tal aspecto:

Além da matriz irradiadora da unidade e da ordem, a construção da capitalidade do Rio de Janeiro tinha ainda um outro pilar: o cosmopolitismo. A cidade era o principal elo com o mundo europeu, garantido sua própria inserção no chamado processo civilizacional e se tornando a fonte de irradiação dessa civilização no país. Pode-se creditar, em larga medida, ao potencial mercantil do Rio de Janeiro – que só fez crescer após a Independência – o lugar preeminente que essa cidade ocupou na economia imperial. (MOTTA, 2004, p.16)

A cidade capital, como objeto de interesse literário, foi um mote para os escritores interpelarem os sentidos do progresso. De fato, como o excerto acima sugere, o Rio transparecia como polo civilizacional e difusor da europeidade. Uma das funções da capital foi atualizar mecanismos da sociabilidade política, ajustando as mutações da formação social. A erradicação do sistema servil, por exemplo, se considerados os primeiros acordos do Brasil independente, durou mais que 50 anos. A capital envergou a feição diplomática para satisfazer e conciliar as demandas externas e internas.

Pois bem, a partir da leitura de Esaú e Jacó47 (1904) e Triste Fim de Policarpo

Quaresma48 (1911), compete pensar três dimensões da cidade fluminense, suas

condições como centro econômico, cultural e político. Os romances tematizam um período cronologicamente próximo, situado entre a década de 1870 e os primeiros anos da década de 1890. A análise dessas representações precisa considerar as contraposições

47 A narrativa Esaú e Jacó abarca o último quartel do século XIX, relatando a queda da monarquia e a

proclamação da república. A maior parte da história se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro. A narrativa aborda a indecisão de Flora, filha da família Batista, em relação aos pretendentes Pedro e Paulo, filhos da família Santos. O texto explora a dicotomia entre os dois rapazes, pois Pedro era monarquista, formando-se em medicina pela Faculdade do Rio; já Paulo era republicano, formando-se em direito pela Faculdade de São Paulo. Nenhum dos rapazes consegue conquistar a predileção definitiva da moça disputada. A tensão a qual ela se encontrava submetida foi de tal monta que termina por adoecer, falecendo durante o estado de sítio da cidade do Rio de Janeiro, na Revolta da Armada.

48 A narrativa Triste fim de Policarpo Quaresma abarca os primeiros anos da República, durante a

presidência de Floriano Peixoto, prolongando-se até 1893. A narrativa se desenvolve na cidade do Rio de Janeiro e em arredores. O texto acompanha a trajetória do funcionário público Policarpo Quaresma, patriota e entusiasta do Brasil. Ao longo da narrativa, o personagem oferece várias contribuições ao país, propondo reformas na língua, agricultura e legislação fiscal. Algumas de suas medidas não são bem aceitas e ele acaba internado em um hospício. Na terceira e última parte do romance, Policarpo decide combater as tropas sediciosas, colocando-se ao lado de Floriano. Porém, ao interceder pelos inimigos capitulados, Policarpo acaba tendo a mesma sorte destes.

campo-cidade e província-capital. De fato, os dois romances são permeados pela dúvida acerca da civilidade na vida cotidiana, já que a guerra civil no Rio de Janeiro – com a decretação do estado de sítio – erode a dimensão da capitalidade fluminense. A política acaba substituída pela simples violência e a cidade é engolida pelas disputas entre exército, marinha e caudilhos.

As representações do Rio de Janeiro como centro econômico e cultural são marcantes. De fato, na memória coletiva da cidade, permanece o assentimento quanto aos seus aspectos civilizacional e mercantil, isto é, sua função de zona portuária. O Rio de Janeiro, durante o período colonial, era um importante canal de escoamento das mercadorias para Portugal – característica que persiste ao longo do século XIX. A cidade do Rio de Janeiro era importadora, as novidades vinham da Europa se espalhavam a partir do Rio de Janeiro, nesse sentido a importância das vitrines da Rua do Ouvidor. Essas especificidades da memória urbana da cidade estarão presentes nos textos de Machado e Barreto, sobretudo porque alguns dos seus personagens seriam consumidores exemplares.

Certamente, alguns dos mais importantes personagens de Machado de Assis seriam capitalistas ou rentistas, ou seja, conhecedores da dimensão mercantil da urbe. Ainda que em alguns casos fossem provenientes de segmentos não classificados, conseguiram efetuar um enriquecimento. Mas a ascensão social não elimina o ressentimento pela ausência de berço, por isso a necessidade da compensação pelo dinheiro. Ou seja, só o acesso às mercadorias não é suficiente, faz-se necessário uma valorização oriunda das atividades políticas e do reconhecimento do Estado. Raymundo Faoro (1974) fala do constrangimento de uma burguesia que busca a nobilitação. Ele salienta que:

Invariavelmente, em todas as personagens de Machado de Assis, a história de sua ascensão traduz o sentimento de que alguma coisa falta

para completar-lhes a carreira. Daí, em simetria, as resistência ao dinheiro, que se justifica na vetusta origem social, para vencer o abismo dos casamentos desiguais, por um ou outro fundamento. (FAORO, 1974, p.14).

Ora, essa constatação se aplica perfeitamente a análise que o sociólogo fez das origens que o pai de Brás Cubas, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, atribuiu a família. Mas esta análise se presta igualmente a enquadrar a conduta de Santos, o pai dos gêmeos em Esaú e Jacó. Ele sai da província para tentar a sorte na capital, chega pobre, mas a sua habilidade com a especulação é ponto de partida para a construção de um patrimônio. A apresentação de Santos no romance sugestiona as maneiras nas quais deu-se sua inserção na cidade. Vale conferir o excerto:

Também êle foi pobre; também êle nasceu em Maricá. Vindo para o Rio de Janeiro, por ocasião da febre das ações (1855), dizem que revelou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo muito, e fê-lo perder a outros. [...] Anos depois tinham eles uma casa nobre, carruagem, cavalos e relações novas e distintas. (EJ, p.25).

O excerto acima confirma a análise de Raymundo Faoro sobre a ambição dos novos ricos. Santos não se contenta com a casa de Botafogo, sua cobiça alcança os palacetes: “Ao passar pelo palácio Nova Friburgo, levantou os olhos para êle com o desejo do costume, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o palácio viria ter na República...” (EJ, p.47). Pois bem, a origem provinciana não o impediu de triunfar na cidade, diferenciando sua trajetória daqueles derrotados e fadados a retornar para o interior. Aliás, esse seria o caso do parente de Santos, que não teve a mesma sorte e terminou escrivão em Maricá. Há um paralelo entre João de Melo, o inoportuno parente pobre (EJ) e o jovem estudante de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909). Ambos se dirigem à cidade, mas acabam por retornar ao interior para ocupar o ofício de escrivão.

Santos conseguiu prosperar no espaço urbano; em questão de tempo torna-se diretor do banco – portanto um “... credor da lavoura...” (EJ, p.47); assim, ele estreita a relação com as transações financeiras. O ápice de sua trajetória é a obtenção do título de barão (EJ, cap. XX), o despacho do imperador o integra à aristocracia local. A visão do mundanismo fluminense está impregnada neste personagem que espera consumir o melhor da cidade. Santos é um agente totalmente absorvido pela função financeira da cidade; sua irrelevância intelectual pode ser constada no distanciamento da educação dos filhos, pois até os conselhos quem os oferece é o aposentado diplomata Aires. Em compensação sabe especular como poucos, assim foi durante as febres das ações em 1855 e 1890. O trecho merece citação:

- Uma idéia sublime, disse ele ao pai de Flora; a que lancei hoje foi das melhores, e as ações valem já ouro. Trata-se de lã de carneiro, e começa pela criação deste mamífero nos campos do Paraná. Em cinco anos poderemos vestir a América e a Europa. Viu o programa nos jornais?

- Não, não leio jornais daqui desde que embarquei. - Pois verá!

No dia seguinte, antes de almoçar, mostrou ao hóspede o programa e os estatutos. As ações eram maços e maços, e Santos ia dizendo o valor de cada um. Batista somava mal, em regra; daquela vez, pior. Mas os algarismos cresciam à vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espaço, desde o chão até às janelas, e precipitavam-se por elas abaixo, com um rumor de ouro que ensurdecia. Batista saiu dali fascinado, e foi repetir tudo à mulher.

O cinismo de Santos se traduz em um efeito cômico, pois as ações lançadas no mercado eram de empresas fantasmas. O empreendedorismo do personagem é fachada, o verdadeiro objetivo explica-se nos maços das ações, os responsáveis pelo trapézio financeiro que confundiu a fraca inteligibilidade de Batista. Eis o contexto do encilhamento (1890-1891), quando a especulação na bolsa colocou em circulação uma riqueza irreal49. A capital era o centro dessa mistificação, vendendo a ilusão de uma

49 Segundo uma recente síntese historiográfica: “Na bolsa, a negociação desenfreada com títulos de

empresas fantasmas (socorridas pelo Estado quando quebravam) operando a juros altíssimos, e a falta de lastro nas operações minadas pela corrupção (as famosas „concessões‟), provocou grave crise

economia pujante com indústrias, minas e intenso comércio. Trata-se de outro patamar de descolamento dos agentes locais em relação à realidade agroexportadora. Não é demais repetir que tudo se tratava de um jogo e aqueles de boa-fé seriam as vítimas. No trecho abaixo há a representação do Rio como o centro da especulação:

A capital oferecia ainda aos recém-chegados um espetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquele deslumbramento e agitação, epopéia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das empresas e companhias de toda espécie. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de idéias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas, os títulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos. (EJ, p.289-290)

O capítulo do qual o excerto acima foi retirado intitula-se “Um Eldorado”, representação mítica da cidade de riquezas abundantes, a urbe sempre procurada e jamais achada. Conforme a citação, a falência de muitos seria a causa da riqueza de uma minoria; enquanto as crises sucediam-se, Santos se enriquecia. A visão da de uma cidade-vício, cheia de excessos está registrada. A “cascata de ideias” menciona a prodigalidade em lançar falsas empresas no mercado. Embora a promessa fosse de empreendimentos sólidos, quase nenhum o era, ao exemplo da produção lanífera de Santos. A riqueza circulante era materializada em carruagens, palacetes e outras

econômica, com fechamento de empresas, desemprego, falências. E, naturalmente, com o enriquecimento de um pequeno círculo de capitalistas.” (LOPEZ; MOTA, 2008, p.564).

ostentações da cultura burguesa. Assim, Machado de Assis descreve alguns dos traços da Belle Époque, sugerindo a sensação de uma época dourada da cidade (Eldorado).

Nóbrega, outrora um coletor de esmolas para a missa das almas, tem uma ascensão semelhante à trajetória de Santos. Nóbrega empregou-se em vários ofícios e acumulou pecúlios que se multiplicaram durante a fase do encilhamento. Mesmo sem ter a nobilitação de Santos, seu prestígio social se consolida ao longo da narrativa. A transformação de um irmão das almas em capitalista alude a vitória do sentido mercantil sobre o religioso. A atitude pia de Nóbrega no começo do romance se descaracterizou prontamente pela apropriação da nota de dois mil réis doada por Natividade às almas. Era a antecipação da disposição do personagem em tomar o bem alheio, valendo-se, inclusive, de justificativas plausíveis.

De fato, pensar o Rio de Janeiro como o centro econômico do país diz mais respeito à circulação e à especulação do que a produção. Tanto é assim que muitos personagens são rentistas ou latifundiários, e mesmo os designados como capitalistas, tem um envolvimento apenas marginal com a atividade industrial. Na narrativa de Esaú e Jacó não há distinção entre fraudes do império e da república, em ambas as conjunturas o Rio de Janeiro é um local de ganhos, lícitos ou não. Embora também seja verdade que a vigarice durante o período monárquico fosse mais dissimulada. Assim, a representação de centro-econômico-financeiro aciona o imaginário da vida urbana como um jogo. O sentido de indeterminação50 – caracterizado pelo entendimento da

imprevisibilidade nas operações cotidianas – aparece mais na política do que na economia.

Isto porque, independentemente dos resultados da bolsa e das complicações financeiras, haveria uma minoria apta a tirar proveito da situação – são os casos já

analisados de Santos e Nóbrega. Uma situação diferente seria a de Rubião, o mineiro rico de Quincas Borbas (1892). Rubião, ao contrário de outros personagens machadianos detinha um péssimo senso de negócios – em parte por sua obsessão amorosa, mas também por ser um matuto perdido na cidade grande. No romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, a inaptidão do Major Quaresma é facilmente identificável. A decisão em se tornar um médio produtor é quixotesca e cômica (não havia lugar para o médio produtor naquele sistema), equivalente a sua solicitação anterior, quando era funcionário público, para que o português fosse substituído pelo tupi-guarani.

A ingenuidade e o alheamento de Policarpo Quaresma se evidenciam na sua incompreensão da realidade social brasileira. A narrativa parece traduzir a perspectiva crítica de Lima Barreto: as fontes de riquezas se assentavam quase que exclusivamente na especulação e no latifúndio. A maioria dos capitalistas, nessa representação, eram os rentistas e os fazendeiros, assim, não haveria espaço para o produtor propriamente dito. O enriquecimento fácil e quase sempre desonesto só acontecia na cidade. A produção de riquezas não era democratizada e a matéria de interesse geral era a política e não a economia. Portanto, em termos de representação campo-cidade, Lima Barreto explora outros elementos para além daqueles apontados por Machado de Assis.

Inicialmente Policarpo Quaresma propõe um resgate da cultura nacional, o requerimento redigido em tupi lhe trouxe complicações, seguindo a internação no manicômio e a aposentadoria compulsória. Portanto, o major Quaresma é derrotado no ambiente da capital, já que é deposto das funções públicas. Nesse sentido, como um bom vencido caber-lhe-ia o decoro de se afastar da cidade. De fato, ele segue o caminho da roça, refugiando-se em um sítio denominado “Sossego”. A chegada ao campo não lhe trouxe nenhum apaziguamento, pois a intenção não era de repouso, mas da dedicação à agricultura. A dicotomia entre campo e cidade praticamente não aparece na

chave do romance, pois os problemas da capital são os mesmos da província. O desenvolvimento através do trabalho não é objetivo dos personagens, com a exceção do major.

De fato, as representações do ambiente rural são pessimistas, não há descrições de polos produtivos ou de paisagens idílicas. O sítio “Sossego” ficava a duas horas do Rio de Janeiro pela estrada de ferro, no entanto, ali já começava o sertão brasileiro, haja vista a pobreza geral. Na própria capital, a produção de bens era escassa, e o enriquecimento dava-se pela exploração, conforme se observa no trecho sobre a antiga casa de Policarpo: “Quase não teve saudades da sua velha casa em São Januário, agora propriedade de outras mãos, talvez destinada ao mercenário mister de lar de aluguel...” (TFPQ, p.71). As imagens que se sucedem nessa parte do romance levam a um profundo questionamento acerca da viabilidade econômica do Brasil, pois, fora o latifúndio, nada mais prosperaria.

A abordagem de Policarpo é idealista, pois ele vê no sertão uma fonte de cura para a capital: convicção de que o trabalho árduo poderia recuperar a licenciosidade fluminense. Todavia os embates com a natureza e o clima tropical, além de problemas políticos, vão solapando seu idealismo. Machado de Assis, antecipando Lima Barreto, já havia apresentado em seus romances a atividade política como a expressão mais valorizada daquela sociedade: “Natividade não quis confessar que a ciência não bastava. A glória científica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de gabinete, entendida de poucos. Política, não.” (EJ, p.435). A mania de ciência e o ultranacionalismo tornavam o personagem de Lima Barreto um estrangeiro, isto é, tão incompreendido ao ponto de ser tomado como lunático.

Policarpo Quaresma quer praticar ciência amadora – passando aos olhos dos demais a imagem de um excêntrico. Ele também não se envolve nas políticas locais do

município de Curuzu (onde estava o sítio “Sossego”), por fica mal visto pela situação e oposição. Perseguido pelo presidente da câmara, Policarpo recebe a intimação de roçar a estrada que confrontava seu sítio e dias depois é novamente intimado pela coletoria a pagar impostos sobre produtos agrícolas ao Rio de Janeiro. Quaresma constata a presença de leis arcaicas e contrárias ao espírito liberal de seu tempo.

Não vinha mais da municipalidade, mas da coletoria, cujo escrivão, Antonino Dutra, conforme estava no papel, intimava o Senhor Policarpo Quaresma a pagar quinhentos mil-réis de multa, por ter enviado produtos de sua lavoura sem pagamento dos respectivos impostos.

Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu pensamento voou logo para as coisas gerais, levado pelo seu patriotismo profundo.

A quarenta quilômetros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao mercado umas batatas? Depois de Turgot, da Revolução, ainda havia alfândegas interiores?

Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a remuneração consoladora? (TFPQ, p.109-110)

A noção da cidade capital como centro econômico é contrariada pela insubmissão da província, colocando obstáculos à livre circulação dos produtos. Mesmo o quixotesco Major Quaresma sabia que essas leis eram letras mortas, invocadas unicamente para perseguir os desafetos políticos. No entanto, no que se refere à relação entre a capital e as províncias, o autor sublinha os resquícios do Antigo Regime. As referências a Turgot e a Revolução Francesa não são despropositadas, pois referenciam a vitória do liberalismo na Europa51. O que Lima Barreto parece atenuar é o papel

civilizatório da capital em relação aos rincões, questionando a centralidade do Rio de Janeiro neste processo.

51 Paris era uma das principais cidades-capitais da Europa, um exemplo de circulação e interconexão das