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Representações do Rio de Janeiro: capitalidade e controle

Capítulo 2 |A capital e os seus estranhos: cidade e literatura no Rio de Janeiro

2.1. Representações do Rio de Janeiro: capitalidade e controle

A aproximação entre o Rio de Janeiro e as cidades europeias era dificultada pelas condições concretas da vida social no Brasil. Desse modo, havia um distanciamento entre o ethos de civilização e a efetivação desse imaginário nos termos da época. Ao invés de aparentar-se a uma Paris tropical, o Rio parecia se associar às cidades distribuídas ao longo da costa atlântica da África, lugares nos quais os portugueses, elemento demográfico minoritário, erigiram feitorias e entrepostos durante a aventura ultramarina. A situação é arquetípica: uma elite estranha aos colonizados. Como forma de contornar essa não identificação, os portugueses reproduziam seus monumentos nas terras dominadas. Por isso, os colonizadores tentaram transformar as

faixas litorâneas do Brasil e do continente africano em simulacros da Europa num esforço de conversão do desconhecido em conhecido.

Durante o processo de construção do Estado nacional, no século XIX, o Brasil era pensado como herdeiro e representante da “civilização europeia”. Era a população eurodescendente – ou assim imputada como tal – que deveria civilizar o país, adotando um sistema político e social baseado na hierarquia, no autoritarismo, no patriarcalismo e no catolicismo37. No Rio de Janeiro, as políticas combinavam princípios do liberalismo

com valores do Antigo Regime38. Desse modo, o imaginário social coletivo não

descartava a vinculação do Rio com o mundo ocidental – de forma prática, isso implicava em considerar africanos e indígenas como estrangeiros. Em compensação, a representação do Rio de Janeiro como centro cultural e político do país ficava assegurada.

A transformação do Rio de Janeiro em capital reforçou no plano do imaginário as representações do tipo campo-cidade. Ao menos na literatura o Rio assemelhava-se a Europa, com carruagens, bailes e conversas de salão. O desenvolvimento da imprensa ampliou a circulação folhetins39 e a cidade fluminense passa a ser utilizada para

ambientar as narrativas. Todavia, as limitações urbanas inviabilizavam tematizações

37 Conforme mostra Ângela Alonso (2009), o ideário do império ecoava um liberalismo conservador:

“Esses três núcleos significativos – o liberalismo estamental, o catolicismo hierárquico e o indianismo romântico – compuseram a tradição imperial. Eram formas de legitimação que protegiam os pilares do status quo. Os conceitos atendiam, pois, a propósitos pragmáticos, não visavam à formulação de doutrinas autóctones ou à reprodução das estrangeiras. Sua formulação nutria-se e de aguçado realismo político e estavam a serviço da instituição e da conservação da ordem imperial. De maneira alguma andavam ao sabor de modas europeias.” (ALONSO, 2009, p. 95). Ver também: (PEREIRA, 2009).

38 A construção do Estado brasileiro assegurou vínculos reais e imaginários com a Europa, ao mesmo

tempo, as especificidades ameríndias do país eram ressaltadas. Nesse sentido, a cidade do Rio de Janeiro acumulou um conjunto de tensões nas quais a europeidade se contrapunha ao exotismo africano. Portanto, a apropriação do romantismo europeu conciliou o mítico e o histórico: “O eixo do romance oitocentista é pois o respeito inicial pela realidade, manifesto principalmente na verossimilhança que procura imprimir à narrativa” (CANDIDO, 2012, p.430).

39 Os folhetins eram romances publicados em periódicos. O tom novelesco dessas narrativas sugere

referenciais estéticos posteriores ao classicismo: “É que a vida intelectual e artística havia passado para o domínio do que poderemos denominar a estética do dramalhão. É um novo gosto que perpassa toda a vida social, do teatro à ficção e da poesia à política; o dramalhão é a grande evasão estética do período romântico.” (MARTINS, 1978, v.II, p.246).

mais complexas. Na primeira metade do século XIX, o Rio era provinciano, mas em relação a outras regiões despontava-se como um grande centro. Em O Juiz de Paz da Roça (1997 [1833]), de Martins Pena, o termo “roça” marca o contraponto com a capital. De uma maneira similar, Memórias de um sargento de milícias (1997 [1852- 1853]) de Manuel Antônio de Almeida instituiu o espaço urbano como um local de espertezas e velhacarias, tanto que Antonio Candido se refere à “dialética da malandragem” que subjaz no texto (CANDIDO, 2004).

Os imaginários sociais das grandes cidades não estavam ausentes no Brasil, mas há contradições nos usos sociais dessas imagens. Por exemplo: as zonas rurais eram criticadas pelo atraso, mesmo que a economia dependesse da produção nas fazendas; a presença dos africanos era deplorada, mesmo que o negro fosse indispensável como mão-de-obra; o indígena era idealizado como representante da nação, mas não impedia o assassinato dos nativos. Enfim, na literatura o país era representado sob dois prismas, de um lado, a descrição da paisagem (urbana, rural ou silvícola), do outro lado, a defesa de valores da civilização ocidental. O ideário liberal era entendido como um elemento modernizante, porém o fenômeno se restringiria a poucas cidades. Na prática, a cidadania seria benefício de um pequeno grupo, o restante estaria vinculado aos laços patrimonialistas remanescentes do ordenamento colonial (PEREIRA, 2009).

Portanto, a capital coordenaria a modernização do país ao se apropriar de alguns parâmetros europeus, dentre os quais, talvez o mais importante fosse a defesa da propriedade privada. Os trabalhos de Ilmar Rohloff Mattos (2004) e José Murilo de Carvalho (2008) são referências para balizar a condição do Rio-capital40, sede de poder

40 O liberalismo conservador predomina no Primeiro Reinado; já a descentralização ocorre durante as

Regências (1831-1840), com questionamento da hegemonia da corte fluminense. Movimentos com tendências separatistas eclodiram ao sul e ao norte; rebeliões escravas e insurreições populares desencadearam-se em várias cidades, inclusive no Rio de Janeiro, com a unidade do Império colocada à prova. O historiador Francisco Iglésias assinala os impactos da Regência na história política do Brasil, destacando o sentimento de unidade subsequente: “Começa a Regência, nova fase na vida nacional, a

com seus aparatos de controle e vigilância. Mattos se debruça sobre princípios e práticas dos saquaremas (liberais conservadores), defensores da centralização e da imposição do poder imperial (“governo”). Na perspectiva dos saquaremas, as elites locais estavam impossibilitadas de compreender o bem público. Portanto, o contraponto campo-cidade poderia ser traduzido como um embate entre a civilização e o Estado de natureza41. Mas

o que estava no horizonte era a preservação dos interesses agrários, fosse das lideranças locais ou nacionais. Segundo Mattos, em função da própria pressão inglesa contra o tráfico, apenas um governo unitário e fortalecido poderia empregar a diplomacia em área tão sensível.

Imaginar o Rio de Janeiro como cabeça da nação era se apropriar de elementos da tradição política Ocidental, remetendo à origem das capitais modernas no processo de formação das monarquias nacionais (MOTTA, 1993). O Rio de Janeiro, conforme já dito, foi o laboratório para o desenvolvimento de uma sociabilidade política. O litoral urbano representava o polo civilizador e cosmopolita, do mesmo modo, a cidade fluminense representava o Brasil perante o concerto internacional. A contraposição entre a corte e a roça sugere uma imaginação acerca da fraqueza provincial em conduzir os assuntos de relevância pública. A corte era o elemento coesão nacional, de tal forma que quanto mais próximo ao Rio, maior a possibilidade de influência na vida política nacional.

mais agitada e fascinante, quando se assistem a choques de todo tipo. Através deles, arma-se a estrutura da nação. Da luta entre os grupos ou facções surgem os partidos; das explosões populares, que chegam a assustar com o separatismo de algumas partes, sairá a verdadeira unidade, livre de perigos ou riscos. A ideologia política vai ganhar contornos nítidos, como definição de liberais e conservadores.” (IGLÉSIAS, 1993, p.145). A ascensão precoce de D. Pedro II ao trono, no entanto, assinalou o retorno ao centralismo e à ratificação da posição privilegiada do Rio de Janeiro.

41 A defesa da escravidão se contradizia com os valores da “civilização”, mas a políticas interna e externa

era marcada pelo interesse agrário. Os valores para a construção de um Estado e nação eram “... a manutenção da Ordem e a difusão de uma civilização: foram eles que ditaram o equilíbrio e a hierarquia, sempre mutável, entre os ministérios ou pastas que compunham o Executivo.” (MATTOS, 2004, p.212).

A relação entre liberalismo e urbanismo aponta para o sentido civilizacional atribuído à cidade do Rio de Janeiro. Na medida em que o litoral se apresentava como a civilização, recebia a função de ordenador jurídico, garantindo o controle social e a proteção da propriedade privada. O sertão, por sua vez, era representado como a terra sem lei, a barbárie que colocava em risco a unidade territorial (COSER, 2008, p.153). Um exemplo, o contraponto litoral X sertão foi um elemento muito utilizado nos textos de Visconde do Uruguai, um político conservador, centralista e membro do partido saquarema. Segundo Coser (2008, p.166):

O sertão foi descrito, por Uruguai e seus contemporâneos, como um mundo social no qual os homens viviam dispersos, sem laços para com a ordem social e política, ao sabor de paixões ferozes ou de caprichos, em síntese, uma esfera social na qual a força do interesse é inexistente ou fraca.

Para Uruguai, havia a necessidade do desenvolvimento do interior do país, com aumento populacional, maior presença do Estado e contenção das paixões, em proveito de comportamentos baseados no interesse racional (COSER, 2008, p.173-211). Mas se a imposição de uma civilização se confundia com o urbano, a base econômica agropastoril não estava em suspeição. Ora, a literatura de Machado de Assis preserva uma interpretação própria acerca dessas contradições. O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1953 [1880]) é uma importante leitura das contradições do século XIX brasileiro. O personagem-narrador do romance possui dois tipos de bens, a ilustração do iluminismo e as rendas de suas propriedades, permitindo-lhe viver confortavelmente, sem se ocupar com o trabalho.

Tal narrativa comporta um conjunto de representações sobre a cidade do Rio de Janeiro, assinalando, inclusive, o poder de atração e coesão da capital do império. A base para esta análise são os estudos de Roberto Schwarz (2000a; 2000b) sobre Machado de Assis, mostrando o descompasso entre o liberalismo e a formação social no

Brasil42. O autor mostrou o descompasso entre as ideias e práticas liberais, sugerindo as

restrições da modernidade no país, inclusive com efeitos na vida urbana, haja vista o quadro econômico marcado pelo latifúndio. Uma vez que o mercado de trabalho livre não estava consolidado, os homens livres pobres estavam vinculados aos potentados dos campos e das cidades, articulando uma sociabilidade em torno do favor:

O favor é a nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nela a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção.

O escravismo desmente as ideias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e desloca, originando um padrão particular. O elemento de arbítrio, o jogo fluido de estima e auto-estima a que o favor submete o interesse material, não podem ser integralmente racionalizados (SCHWARZ, 2000a, p.16-17).

Conforme mostra o excerto acima, o “favor” seria um arranjo entre os dependentes e os proprietários. Os descompassos entre o liberalismo e a escravidão seriam atenuados por vínculos entre dominado e dominador através da relação de apadrinhamento. Esse tipo de sociabilidade, como bem mostra Roberto Schwarz, está presente na literatura de Machado, sobretudo em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Na perspectiva machadiana, as representações da cidade incluem as imagens da dissimulação e da hipocrisia. Com efeito, para que a cidade transparecesse como liberal e moderna, fazia-se mister dissimular a violência cotidiana da urbe. O conto “Pai contra

42 A argumentação de Roberto Schwarz sofreu um rechaço talvez exageradamente contundente. O debate

travado entre Roberto Schwarz e Maria Sylvia de Carvalho Franco acerca da apropriação do liberalismo no Brasil resultou em uma ênfase na análise do primeiro capítulo do livro de Schwarz, Ao vencedor as batatas (2000a), dirimindo a importância do livro como um todo. A questão se polarizou em torno da autenticidade ou não das ideias liberais no Brasil. Carvalho Franco acentuou a funcionalidade das ideias, recusando atribuir-lhes um aspecto artificial ou descontextualizado. De qualquer forma, há uma convergência entre esses dois autores que poderia ser explorada. “A crítica mais conhecida da formulação das “idéias fora do lugar” é, provavelmente, a de Maria Sylvia de Carvalho Franco, ironicamente, a principal inspiradora para que Schwarz preste atenção ao papel do favor na sociedade brasileira do século XIX. Não obstante, a autora de Homens livres na ordem escravocrata defende, contra o argumento da inadequação de ideias à realidade, que nela está implícita uma relação de exterioridade entre as primeiras, originárias do centro capitalista, e o ambiente social brasileiro.” (RICUPERO, 2008, p.61).

mãe”, em Relíquias de Casa Velha (RCV, [1906]) representou a cidade do Rio de Janeiro a partir da escravidão. Ou seja, um dos principais aspectos da capital do Império era a instituição servil e não a cultura liberal.

O conto se inicia com a reflexão do narrador acerca da noção de Brasil civilizado, para isso, joga com metáforas de máscaras e faces. A revelação do conto é que o “atraso” seria resultado das ações das camadas dirigentes. Ou seja, a violência viria de “cima”, isto é, do próprio Estado. A contradição, portanto, é entre o discurso iluminista e uso da mão de obra escrava no país. O conto sugere textualmente a existência de vínculos entre a escravidão e o Estado brasileiro:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras (ASSIS, 1952, p.9, grifos meus).

De acordo com o trecho acima é possível interpretar a escravidão como um elemento estruturante da sociedade brasileira, conforme sugerem os termos “instituições sociais”. Desse modo, a existência de cativos não seria uma anomalia ou atipicidade, mas os fundamentos positivos da “ordem social”, ou seja, a propriedade. Machado de Assis “desmascara” o discurso humanista ao ironizar os efeitos benéficos dos instrumentos da tortura sobre os escravos. Daí a alusão à máscara de flandres, um grotesco com finalidade elevada: retirar o vício dos escravos e torná-los honestos. A narrativa brinca e provoca com a ideia de escravos honestos, pois se trata de evidente contrassenso. A verdadeira máscara, no entanto, seria a apropriação seletiva do

iluminismo e do liberalismo, pois as justificativas altivas nada mais fariam do que esconder as relações de opressão da escravidão.

Em suma, o verdadeiro grotesco era a escravidão e não os mecanismos que dissimulavam sua existência. Como se sabe, o Brasil foi o último país ocidental a extinguir formalmente a escravidão, situação que causava desconforto perante a comunidade internacional. Após a Lei Áurea (13/05/1888) houve um esquecimento proposital da questão escravista. Por isso, Machado denuncia o esquecimento: “Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício”. Também se desculpa perante o leitor pela sua decisão em descrever as torturas; faz isso com nova ironia, assinalando que ele recusa o nível das aparências, ou seja, a hipocrisia: “Mas não cuidemos de máscaras”. Conforme se vê, a visão de sociedade existente no conto “Pai contra mãe” é irônica, ela introduz a violência como um elemento cotidiano da capital do Império.

Em termos de criticidade, a visão de Lima Barreto sobre a capital desenvolve um teor parecido ao de Machado, ainda que Barreto enfatize aspectos como racismo e decadentismo. De qualquer forma, ambos não se esquivam de apresentar as contradições entre o liberalismo e as desigualdades estamentais. Nesse sentido, o Rio de Janeiro aparece como protetor (e não opositor) dos interesses agrários, pois independentemente das mudanças políticas – quedas de gabinetes e fim da monarquia – a influência dos fazendeiros persistia. Machado de Assis e Lima Barreto sabiam que os vínculos dos capitalistas com o campo eram estreitos. Essa constatação se articula à complementaridade da cidade e do campo nas representações literárias e no processo social:

Assim, não há um contraste simples entre cidade pervertida e campo inocente, pois o que acontece na cidade é gerado pelas necessidades da classe rural dominante. A ratificação moral desse teatro não é o matrimônio em oposição a uma intriga ou caso amoroso, nem tampouco a esperteza conta a tolice, ou a virtude conta o vício, mas

sim a necessidade de que a propriedade caia nas mãos devidas (WILLIANS, 1989, p.78).

Nas narrativas de Machado de Assis há rentistas e latifundiários, perfazendo a união entre campo e cidade. Em Memorial de Aires (1952 [1908]) a união entre Tristão e Fidélia é casamento de riquezas distintas: as rendas do Brasil sustentavam Tristão em Portugal; já o pai de Fidélia fora um latifundiário e escravocrata. Os dois se conheceram no Rio de Janeiro, mostrando a importância da capital para a costura das fortunas urbanas e rurais; esta era, enfim, um modelo de civilidade devido a sua vida cultural e política. Ali se preconizava um padrão de sociabilidade baseado no interesse racional, na defesa da propriedade privada e no apreço pela ordem e paz públicas. Através de um manejo competente do ideário liberal, escravidão e latifúndio eram mimetizados, permitindo associar o atraso ao campo e ao trabalhador escravo, mas sem nomear o modelo agroexportador.

Portanto, o Rio de Janeiro foi peça-chave no imaginário do progresso, de tal sorte que esteve delimitado como palco e personagem desde começos da literatura brasileira; Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Artur Azevedo, José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Luiz Edmundo são alguns dos muitos escritores que abordaram aspectos da cidade fluminense e que dialogaram com o ethos de um Rio-civilização. Tais representações, via de regra, trabalham com pares dicotômicos para valorizar ou negativizar a experiência urbana. O escritor Aluísio de Azevedo (1857-1913), por exemplo, abordou a cidade a partir de imagens conhecidas, como a da cidade-vício ou da cidade-perdição43.

43 Embora essa questão já tenha sido assinalada no primeiro capítulo, retomo a assertiva de que as

representações acionam imagens pré-existente no imaginário social. Assim, a representação da cidade- vício evoca o entendimento de que a vida urbana possui uma sedução que pode se tornar abjeta; seria o caso de Sodoma, lugar do excesso e do pecado.

Os romances de Aluísio Azevedo Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890) representam a cidade como problema. Sem entrar no mérito de sua vocação romântica- naturalista, o autor representou a cidade como ambiente de instintos primários. Há uma apropriação da noção de pecado, não pela moral, mas pela ciência. Segundo Werneck Sodré (SODRÉ, 1964, p. 391), as representações de O cortiço são pictóricas: “... existe um conjunto de personagens vivas e nelas está perfeitamente fotografada a sociedade do tempo, com as suas mazelas e as suas chagas; o autor não se propõe solucionar os problemas dessa sociedade, mas sabe colocá-los em suas verdadeiras dimensões”. De fato, a narrativa introduz a representação do subúrbio, mas ao contrário da visão compreensiva de Lima Barreto, não há empatia.

Segundo Alfredo Bosi (2015, p.198-200), Aluísio Azevedo foi um expoente da ficção urbana no Brasil, com influências visíveis de Emile Zola e Eça de Queirós. O anseio deliberado do escritor em dialogar com o naturalismo explicaria as descrições detalhadas das relações sociais. As representações acionam as contraposições e atraso- moderno, em algumas cenas, por exemplo, há menções a formas de sociabilidades típicas das camadas populares, que seriam combatidas pela modernização da cidade. O fragmento abaixo é um exemplo:

A república era muito no alto, sobre três andares, dominando uma grande extensão. Viam-se de cima as casas acavaladas uma pelas outras, formando ruas, contornando praças. As chaminés principiavam a fumar; deslizavam as carrocinhas multicores dos padeiros; as vacas de leite caminhavam com o seu passo vagaroso, parando à porta dos fregueses, tilintando o chocalho; os quiosques vendiam café a homens de jaqueta e chapéu desabado; cruzavam-se na rua os libertinos retardios com os operários que se levantavam para a obrigação; ouvia- se o ruído estalado dos carros d‟água, o rodar monótono dos bondes. Mais para além pressentiam-se cordilheiras, graduando planos. (AZEVEDO, 1989 [1890], p.22)

De fato, o quadro acima é prosaico e implica na revisão da imagem do Rio de