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Para além da cenografia, a cidade como constructo social

Capítulo 3 | Aventura, sedução e perigo na cidade moderna – representações da

3.1. Para além da cenografia, a cidade como constructo social

Em minha primeira leitura, os contos de Machado de Assis não pareciam abordar aspectos da vida metropolitana e, desse modo, temia que as representações do urbano me conduzissem à análise de uma cidade cenográfica, tomada como simples pano de fundo. No entanto, tal perspectiva se revelou limitada e foi descartada, pois a dimensão cenográfica dos contos não compete com o destaque dado às representações das relações sociais. Portanto, a proposta deste capítulo é analisar as imagens da vida urbana em contos de Machado de Assis, ressaltando a análise social do autor acerca da cidade.

De certo, há um elemento cenográfico nessa ambientação urbana; trata-se da arquitetura colonial que ainda subsiste na cidade – ela está sutilmente delineada na epígrafe deste capítulo. As ruas estreitas, os becos, os antigos paços e as igrejas constituem lembrança da história do Rio. Do mesmo modo, sobrados, chafarizes e aquedutos vinculam passado ao presente, assegurando a continuidade entre os cenários colonial e imperial. Essa dimensão arquitetônica é incompleta, pois a literatura machadiana é um “estudo” das relações sociais no Rio de Janeiro. A escravidão é o principal legado da colonização, tratando-se de instituição sustentada por agentes

públicos e privados que asseguraram a unidade dos interesses agrários e à capitalidade e centralidade do Rio de Janeiro57.

Em uma perspectiva sociológica, é possível tomar a cidade de Machado como uma instância de causa e efeito. O fator decisivo para o sucesso político, financeiro e sentimental dos personagens será a capacidade de interpretar satisfatoriamente o contexto citadino. Conforme será analisado nos contos a seguir, aqueles que estivessem “aclimatados” seriam bons “sociógrafos”, isto é, capazes de realizar uma leitura sociológica. Acrescenta-se que as tramas de Machado estão localizadas no tempo e espaço, por isso a cronologia é tão importante quanto o mapeamento. Na maioria dos contos, os eventos desenvolvidos têm datação específica, com indicação dos anos e, às vezes, dos meses; da mesma forma, os acontecimentos se localizam em bairros e ruas58.

A cronologia utilizada por Machado de Assis confere historicidade aos seus contos. Ele parece transmitir ao leitor a lembrança de que política e sociedade transcorrem no tempo e no espaço. Rio de Janeiro, capital do Império e da República, é representada como uma cidade importante e complexa. Essas premissas podem ser derivadas da tese de John Gledson (1986) acerca da visão machadiana da história do Brasil. Segundo o pesquisador, Machado de Assis entendeu os segmentos anti- modernos em atuação:

As causas e os resultados deste fracasso estão presentes em todos os romances da maturidade de Machado, constituindo sua lição de História do Brasil. Um rígido sistema de classes, baseado na escravidão, que produz uma classe dominante incestuosa, incapaz de

57 É importante destacar a interpretação que toma a preservação da escravidão como uma das causas da

longevidade do Império Brasileiro e do poder centrado no Rio de Janeiro. Tratava-se de promover a continuidade da mão de obra escrava: “... o escravismo não se apresenta como uma herança colonial, como um vínculo com o passado que o presente oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, isto sim, como um compromisso para o futuro: o Império retoma e reconstrói a escravidão no quadro do direito moderno, dentro de um país independente, projetando-a sobre a contemporaneidade”. (ALENCASTRO, 1997, p.17). Algumas das principais teses sobre a crítica social machadiana (FAORO, 1974; SCHWARZ, 2000; GLEDSON, 1986; CHALHOUB; 2003) corroboram o sentido do excerto acima, na medida em que consideram a capacidade do escritor fluminense em reconhecer as contradições da escravidão e seus constrangidos vínculos com o liberalismo oitocentista.

58 O tempo das narrativas dos contos de Machado de Assis se passa durante o Segundo Reinado; portanto,

renovação procedente dos escalões inferiores (ver, especialmente,

Brás Cubas, Casa Velha, Dom casmurro) e um capitalismo superficial, explorador, com raízes no exterior, incapaz de beneficiar a nação em conjunto, em parte porque esse “conjunto” é uma ficção (ver, especialmente, Quincas Borba, Esaú e Jacó, Memorial de Aires): esses são dois dos aspectos menos encorajadores e, claro, interdependentes da visão que Machado tinha da História do Brasil. Enfocar 1871 é enfocar a repetida ilusão de que podem facilmente ser modificados. (GLEDSON, 1986, p.22)

De fato, a transcrição acima reconhece a criticidade de Machado quanto às contradições da sociedade brasileira. Para John Gledson (1986, p.22-23), a visão de história de Machado tem efeitos na própria estrutura de seus romances. O crítico percebeu o destaque conferido pelo bruxo de Cosme Velho às classes sociais, ao encadeamento das relações assimétricas (ricos e pobres) e ao recôndito desejo aristocrático da reprodução endogâmica, com forte repúdio à ascensão dos estratos médios. Em outro trabalho, Gledson (1991, p.11) mantém a interpretação sobre a influência moldadora das características da sociedade brasileira na narrativa. Propondo uma interpretação de Dom Casmurro, o pesquisador afirma que:

E é isto que quero dizer quando afirmo que Dom Casmurro está menos distante dos postulados do realismo do que se pensa: se entendermos por realismo a intenção do romancista de revelar, através da ficção, a verdadeira natureza da sociedade que está retratando, Dom

Casmurro é romance realista, não apenas em termos genéricos, mas em seus detalhes, tanto na forma como no conteúdo. (GLEDSON, 1991, p.12)

John Gledson argumenta que Machado de Assis desvela a realidade social através da ficção. Nesse sentido, há um diálogo com Roberto Schwarz (2000a; 2000b), pois seus estudos também assinalam o viés sociológico de Machado de Assis. Estes trabalhos fundamentam a interpretação de que os romances do escritor fluminense seriam uma representação59 da sociedade. Os protagonistas de Memórias Póstumas de

59 De fato, seja como alegoria ou redução estrutural, os dois críticos reconhecem a representação da

sociedade que a literatura de Machado de Assis comporta. Quanto à redução estrutural, Antonio Candido (2004, p.9) a define como: “... processo por cujo intermédio a realidade do mundo e do ser se torna, na

Brás Cubas e Dom Casmurro corporificam aspectos do liberalismo de fachada, são homens detentores de capital e de outros privilégios típicos de uma sociedade de Antigo Regime60. Ao redor de Brás e Bentinho circulam não apenas escravos, mas agregados e dependentes. Por isso, as aparentes contradições da cidade brasileira revelariam a especificidade da relação entre moderno e arcaico61.

Nesse sentido, pressupõe-se que Machado de Assis lidou com o problema da cidade do Rio de Janeiro, tomando-a como um desdobramento das contradições da modernidade brasileira. Naturalmente, os termos que ele emprega são outros, mas, segundo os já referidos críticos, suas observações sobre sociedade e política revelam um pensador consciente das especificidades do país face ao mundo europeu, que era então a grande referência de civilização. Em “Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio”, Raymundo Faoro (1974, p.23) destaca a análise urbana efetuada por Machado:

narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma, como algo autônomo.” (CANDIDO, 2004, p.9).

60 Veja a conhecida frase Brás Cubas “Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de

não comprar o pão com o suor do meu rosto” (MPBC, p.418). A desvalorização do trabalho manual e o cultivo de ócio se revelam um traço típico do Antigo Regime, constituindo-se, inclusive, em traço anacrônico, já que a burguesia europeia oitocentista (sobretudo inglesa) buscava a notoriedade pela realização material.

61 A noção de atraso é relacional, os aspectos arcaicos da sociedade brasileira seriam, nessa chave de

análise, plenamente funcionais, pois assegurariam a manutenção de uma determinada estrutura de classes. Discorrendo sobre a fundamentação teórica de sua interpretação, Schwarz (2000b, p.13) afirma que: “No que diz respeito à interpretação social, o raciocínio depende de argumentos desenvolvidos na Universidade de São Paulo pela geração de meus professores, em especial um grupo que se reunia para estudar O capital com vistas à compreensão do Brasil. O grupo chegara à audaciosa conclusão de que as marcas clássicas do atraso brasileiro não deviam ser consideradas como arcaísmo residual, e sim como parte integrante da reprodução da sociedade moderna, ou seja, como indicativo de uma forma perversa de progresso”. Esse tipo de explicação – ampla, generalizante e histórica-estrutural – deve ser apropriada com cautela, sob pena de transformar fenômenos complexos da sociedade e cultura em meros dispositivos causais. Todo modo, esse tipo de proposição evidencia as especificidades da coexistência entre liberalismo e escravidão. Segundo Luiz Carlos Bresser-Pereira (2015, p. 53): “O sistema escravista foi, assim, uma condição da estabilidade do Império, porque mantinha as elites latifundiárias solidárias com o Estado, mas foi também um obstáculo maior ao seu desenvolvimento na medida em que não criava, do lado da oferta, mão de obra educada, e, do lado da demanda, um mercado interno, as duas condições fundamentais para industrialização. O sistema escravista começou a ceder apenas em 1850, com a extinção do tráfico; e somente acabou em 1888, com a abolição da escravatura, em um momento em que esse sistema já perdera toda funcionalidade econômica, transformando-se em uma mácula moral insustentável para uma sociedade que pretendia ser liberal e moderna”. Com efeito, a explicação de Bresser-Pereira – dentro de um quadro teórico que mescla análise histórica-estrutural e novo desenvolvimentismo – considera, também, as implicações da conjunção entre escravidão e liberalismo no processo de formação e transformação de Estado e sociedade no Brasil.

Abandonado o clichê da sociedade do Segundo reinado como sociedade polar entre senhor rural e escravo, tenha-se em conta que Machado de Assis vive, na sua ficção, a sociedade urbana. Como ninguém antes dele, melhor do que Alencar e Macedo, soube ver e perceber-lhe os traços fundamentais, sem extravio rural.

Como sugere a citação acima, o mundo urbano é o suporte no qual se desenvolve a narrativa, de modo que romances e contos de Machado representam a passagem de tempo na sociedade fluminense. Portanto, os personagens estão reagindo à crescente complexidade da cidade. O consumo de produtos europeus (ALENCASTRO, 1997, p.46-49) exemplifica o avanço do urbanismo e das urbanidades, reproduzindo práticas do Velho Mundo. São muitas as alusões aos instrumentos típicos da modernidade e da cultura burguesa: pianos, relógios e paquetes fazem parte do universo machadiano. Na coletânea Várias Histórias (1896), por exemplo, há o conto “Mariana”, cuja história se desenrola entre a chegada e a partida de paquetes para o Velho Mundo. Evaristo, que vivia na Europa desde 1872, retorna ao Brasil para ver as transformações operadas pela mudança de regime em 1889.

Para aqueles que detivessem os recursos necessários, o país não estaria distante da Europa: “Indagou a data de uma primeira representação no Odéon, comédia de um amigo, calculou que, saindo no primeiro paquête e voltando três paquêtes depois, chegaria a tempo de comprar bilhete e entrar no teatro...”. (VH, p.192). Ora, o cálculo e a previsão efetuados pelo personagem indicam como o Brasil (leia-se Rio de Janeiro) estava alinhavado a uma ordem internacional, de modo a ter a pretensão do Rio de Janeiro fazer parte da Europa. Além do mais, nos textos de Machado, o principal obstáculo para ir a Europa não é a distância ou a condição das embarcações, mas sim a posse de recursos necessários. No caso do Evaristo, personagem do conto “Mariana”, o movimento é inverso, ele estava na Europa e retorna ao Brasil para averiguar o desenvolvimento da cidade e das questões políticas.

Evaristo retorna ao país para entender a passagem da monarquia para a república, seu interesse era verificar em que medida o Rio de Janeiro reconstituiu as condições de sua capitalidade, ao mesmo tempo, ele tenta rever um antigo romance de sua juventude. Ora, o desterrado que retorna à pátria tem o distanciamento necessário para compreender a realidade urbana e, por isso, assemelha-se Evaristo ao já mencionado conselheiro Aires. Ambos possuem qualidades de nacional e estrangeiro, indicando, portanto, a relação de proximidade e distância existente entre o Rio de Janeiro e a Europa.

Literariamente, o próprio Machado se aproxima da Europa, pois o que ele fez com o Rio de Janeiro não é diferente do que Victor Hugo e Balzac fizeram com Paris, Dickens com Londres e Tolstoi com São Petersburgo e Moscou. Em suma, as representações da cidade são um patrimônio da literatura oitocentista. Pode-se intuir um fascínio dos intelectuais pela vida moderna no decorrer dos séculos XIX e XX. Com efeito, os homens de letras têm abordado, direta ou indiretamente, o tema da grande metrópole. A cidade ocupa um lugar essencial na história ocidental, centro político e comercial, zona de convivência etc., por isso, não surpreende a atenção dos escritores ao mundo urbano. A literatura oitocentista buscou, efetivamente, compreender os fenômenos da modernidade – muitas vezes com pretensões de exatidão e verossimilhança62.

As representações da cidade e da vida urbana, em Machado, dividem-se em dois recortes: (1) sociabilidades e ambientes privados; (2) auto-organização e risco. Conforme mencionado na introdução, os contos integram às seguintes coletâneas Várias

62 É necessário esclarecer, desde já, que não cabe a este trabalho adentrar na questão das escolas literárias.

Vale lembrar, no entanto, que se tomarmos o realismo como uma postura e um método diante da realidade social (PELLEGRINI, 2014, p.118), paralelos com a sociologia serão facilmente formulados. Acrescenta- se, também, que em busca da perspectiva histórica, vale analisar as transformações sociais em curso no século XIX com o aparecimento de abordagens sistematizadas de interpretação do real. Machado de Assis, um intelectual em atuação no decorrer da segunda metade do século XIX, tem uma postura realista diante da vida urbana fluminense. Um realismo inglês, nos dizeres de Wilson Martins (1977, v.IV, p.114- 116), possuindo uma intenção de revelar as formas da vida social (GLEDSON, 1991, p.13).

Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1899), Relíquias da Casa Velha (1906). Essas narrativas transcorrem na segunda metade do século XIX, décadas de 1850, 1860, 1870 e 1880. Todavia, o argumento é que tais questões tratam de uma conjuntura mais ampla, referentes aos processos de modernização, mais evidentes no último quartel do século XIX. Desse modo, é possível apreciar as representações da cidade do Rio de Janeiro como expressão contraditória da modernidade tupiniquim.