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A carnavalização como metáfora de transgressão

No documento mariaedithromanosiems (páginas 60-63)

3 TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E DIVERSIDADE

3.2 Bakhtin e a diversidade

3.2.3 A carnavalização como metáfora de transgressão

No estudo da prosa romanesca de Dostoievski, Bakhtin apaixonadamente explora, na análise da literatura produzida pelo autor, processos de autoria em que a consciência dos personagens se desenvolve em diálogo, na interlocução com o leitor, como consciências independentes em relação com outras consciências também autônomas e independentes: a polifonia. O papel do autor é acompanhar a voz desse personagem em sua complexidade própria, possibilitando que ela se expresse em “sua linguagem, seu estilo e sua ênfase [...] sujeito de seu próprio discurso e dono de sua própria maneira de exprimir-se”. Um processo de “autodesenvolvimento” do romance, que exorbita por vezes as tendências e vontades do autor: um diálogo entre a consciência criadora do autor e a consciência recriada de seus personagens em interlocução com outras vozes.

Neste conceito, Bakhtin estabelece uma metáfora de sua utopia de um mundo polifônico, em que várias vozes tenham a possibilidade de se colocar, em que os homens rompam a posição de seres “coisificados”, em que se abra a possibilidade de um mundo polifônico, radicalmente democrático, de vozes eqüipolentes, em que nenhuma consciência é convertida em objeto de outra, nenhuma voz social se impõe como a última e definitiva palavra, em que qualquer gesto centrípeto será corroído pelas forças vivas do riso, da carnavalização, da polêmica, da paródia, da ironia.

A exploração dessas “forças vivas do riso” está contemplada em outra belíssima metáfora, que encontramos na análise literária feita por Bakhtin da obra de Rabelais, a partir da qual é construído o conceito de carnavalização. Analisando a produção cultural das camadas populares, através da obra de Rabelais, Bakhtin estudou a importância das feiras, das festas populares, o significado do folclore e das tradições populares no período de transição da Idade Média para o Renascimento, dando ênfase à cultura carnavalesca, momento em que os homens são indiscriminadamente envolvidos em uma festa marcada pela ausência de medos e leis, pela ambivalência de todas as imagens; em que testemunhamos a lógica da inversão.

Na lógica da inversão, “os grandes são destronados, os inferiores são coroados”, testemunha-se a permutação do alto e do baixo. O carnaval como uma metáfora da suspensão e inversão temporária e sancionada da ordem, em que as categorias simbólicas de hierarquia e valor são invertidas. Nesta lógica da inversão proposta por Bakhtin, essa troca de posições,

não ocorre de maneira pontual, apenas como uma “inversão” binária. Na verdade, o que ocorre é uma transgressão dessa divisão binária:

O baixo invade o alto, ofuscando a imposição da ordem hierárquica; criando, não simplesmente o triunfo de uma estética sobre a outra, mas aquelas formas impuras e híbridas do “grotesco”, revelando a interdependência do baixo com o alto e vice-versa, a natureza inextricavelmente mista e ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade das formas, símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o exercício arbitrário do poder cultural, da simplificação e da exclusão, que são os mecanismos pelos quais se funda a construção de cada limite, tradição ou formação canônica, e o funcionamento de cada princípio hierárquico de clausura cultural (HALL, 2003, p. 226).

Stuart Hall na coletânea de textos: “Da Diáspora” (HALL, 2003) em que analisa vários aspectos vinculados aos estudos culturais, à cultura popular e à identidade, apresenta um artigo produzido em homenagem a Allon White, chamado “Metáforas da Transformação”. Nele destaca um texto produzido por Allon White e Peter Stallybrass denominado The Politics and Poetics of Transgression, em que é estabelecido um diálogo crítico com Freud e Bakhtin, não apenas recuperando ou apontando conceitos bakhtinianos, mas indo além, expandindo e re-trabalhando esses conceitos na interlocução com as metáforas da transformação26, “a interação entre os limites e transgressões nos processos culturais”, tendo como tema central “a natureza contraditória das hierarquias simbólicas”.

Trata-se de um exercício fiel aos princípios bakhtinianos, já que este entendia que os textos só têm sentido quando apropriados por outros, enriquecido com as contra-palavras próprias de cada contexto histórico-cultural, abrindo espaço a novas reflexões, gerando outros textos que lhes dão validade na grande temporalidade e, principalmente, sem macular os conceitos com categorizações e classificações pontuais, como tem sido feito por alguns autores.

Considero importante apontar aqui o destaque dado por Hall, acerca do texto de White e Stallybrass, de que o que eles “registram é o processo pelo qual essa prática de classificação cultural é constantemente transcodificada em uma variedade de domínio” (HALL, 2003, p. 242). O cerne de seu argumento é que:

26 As metáforas de transformação devem fazer pelo menos duas coisas: elas nos permitem imaginar o que aconteceria se os valores culturais predominantes fossem questionados e transformados, se as velhas hierarquias sociais fossem derrubadas, se os velhos padrões e normas desaparecessem ou fossem consumidos em um “festival de revolução, e novos significados e valores, novas configurações socioculturais começassem a surgir”. (HALL, 2003, p.19).

As categorias culturais do alto e baixo, do social e do estético e também aquelas do corpo físico e do espaço geográfico nunca são inteiramente separáveis. A classificação dos gêneros literários ou autores em uma hierarquia análoga às classes sociais é um exemplo particularmente claro de um processo cultural muito mais amplo e complexo, pelo qual o corpo humano, as formas psíquicas, o espaço geográfico e a formação social são construídos dentro de hierarquias de “alto” e “baixo” inter-relacionadas e interdependentes. (WHITE apud HALL, 2003, p. 242).

Em seu texto, apontam uma perspectiva que nos possibilitou refletir sobre a situação hoje vivida na educação de pessoas com deficiência que é o fato de que na atualidade não tem sido mais possível manter os estigmatizados em situação de absoluta segregação. No conjunto dos movimentos sociais, também os movimentos das pessoas com deficiência se fez presente, inicialmente através de representações dos pais, dos familiares, dos profissionais que atuavam no atendimento a estes indivíduos e atualmente com a emergência dos debates gerados pelas pessoas com deficiências que conseguiram transpor as fronteiras impostas pela segregação.

Em nível mundial, documentos históricos como o produzido em Salamanca na Espanha em 1994, apontam o compromisso ético fundamental de termos espaços de educação, convivência e interlocução abertos a todas as pessoas, inclusive aquelas que, pelas suas condições biológicas apresentem características que as coloquem em posição estigmatizada.

As discussões acerca da multiplicidade, do multiculturalismo, da interculturalidade avançam, na ótica dos Estudos Culturais, que Hall tão bem representa, seguido por tantos outros autores em todo o ocidente. No entanto, surpreende nesses estudos, a ausência das discussões acerca da deficiência, o que nos leva a supor que o estigma imposto pela diferença na constituição biológica ainda constitua, mesmo para pensadores de grande expressão um estigma em que ainda se admita que as pessoas com deficiência sejam mantidas em categorias à parte; no caso da Educação, a Educação Especial.

Considerando, como os autores aqui estudados, que a identidade é um ato de criação lingüística embebido em um mundo social e cultural, um mundo no qual somos sujeitos ativos, tendemos a nos irmanar à perspectiva utópica de Bakhtin que nos sinaliza com a emergência do Simpósio Universal: um vasto espaço de luta entre as vozes sociais, onde atuam forças centrípetas que buscam o domínio através das palavras e as forças centrífugas que corroem, que burlam as tendências centralizadoras através do riso e da criatividade no ver e no agir.

No documento mariaedithromanosiems (páginas 60-63)