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3. PERCURSO METODOLÓGICO

3.2 A cartografia como referencial metodológico

Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro. (Mia Couto)

No campo da geografia, a cartografia constitui a representação, por meio de um desenho, dos diferentes movimentos de reconfigurações, mudanças e transformações da superfície terrestre e de suas paisagens. Tendo como pressuposto tal definição, Deleuze e Guattari criam uma forma de analisar a subjetividade e as paisagens que a constituem (ANDRADE; ROMAGNOLI, 2010).

Guattari e Deleuze assumem uma compreensão de vida e de mundo bem distinta da forma tradicional de pensar a filosofia. A forma de pensar desses autores, tem como premissa de que o mundo é transformado mediante a produção desejante dos sujeitos. Assim, a vida traduz-se como autêntico desejo de produção e de forças que tem por intuito a inventividade, o novo, a criação. Nessa forma de pensar, a razão seria apenas mais uma das múltiplas dimensões de produção (AMADOR; FONSECA, 2009).

O entendimento de mundo de Deleuze e Guattari se sustenta em uma crítica ao modo cartesiano de compreender a realidade. Para os autores, a fragilidade do pensamento de

Descartes foi acreditar que a fragmentação em partes permite a separabilidade das coisas. Assim, a ideia de que se pode separar a matéria em sucessivas partes não é possível uma vez que a matéria, por natureza, é fluida, elástica e porosa. É a curvatura da matéria que faz com que sua natureza não se divida, mas se dobre sobre si mesma. Assim, a matéria não se constitui de partes, mas de molas que lhe conferem movimento (DELEUZE, 2012)

A subjetividade é entendida, na presente investigação, como processo inacabado e não como produto. Ademais, os sujeitos permanentemente reinventam seus modos de existência. Os autores reconfiguram a ideia de desejo presente na abordagem psicanalítica freudiana, compreendo-o como o transbordamento da existência, o excesso e sede por mais e variadas conexões. Assim, o método cartográfico é essencialmente processual, contemplando análises igualmente processuais. Significa dizer que não existe, na cartografia, um modelo de investigação a priori. A investigação ocorre mediante aproximações e dispositivos que constituem estratégias concretas (BARROS, KASTRUP, 2015).

A compreensão da produção de subjetividade tem como eixo analítico a processualidade, o movimento e a transformação. Por esta razão, quando se pretende investigar o fenômeno da subjetividade, há que se adotar métodos capazes de acompanhar o processo já em andamento. Neste ponto encontra-se um dos maiores desafios ao pesquisador que precisa aprender, ao mesmo tempo em que atua na investigação, a compreender um processo, já em curso. Significa desprender-se da busca pelos produtos provenientes dos processos e, ainda, compreender que o objeto de estudo se encontra em movimento, de modo que se torna inviável e incoerente tentar aprisioná-lo em categorias fixas (BARROS, KASTRUP, 2015).

A cartografia é um método que, por suas características, contribui para estudos que tem a subjetividade como objeto de análise. Sobre as características do método cartográfico, há que se esclarecer que por natureza, a cartografia não se apresenta como um método acabado, embora a literatura sinalize formas e caminhos sobre como praticá-lo. Barros e Kastrup (2015) afirmam tratar-se de um método que não é aplicável, mas praticável. Essa ideia traduz um dos maiores desafios da cartografia, qual seja a indissociabilidade entre a feitura do processo e a feitura de si mesmo, que ocorre ao fazer o processo. Assim, pesquisador e pesquisa são construídos e reconstruídos simultaneamente, distinguindo-se da ideia tradicional de pesquisa, na qual o pesquisador faz uso de um método, externo a ele, e o aplica em uma determinada realidade a fim de alcançar um produto. No método cartográfico não há separação entre método e, pesquisador e por esta razão, os autores afirmam que ocorre a prática cartográfica e neste processo, pesquisador e pesquisa nascem e renascem em um movimento permanente de

construção. Assume-se, pois, que, sendo permanente o movimento, não importa o produto, mas sim a compreensão do próprio movimento.

Dessa forma, considerando que os processos são singulares e historicamente influenciados, não existem regras universalizáveis a serem aplicadas em casos específicos. Ao contrário, a cartografia como método também se reconstrói a cada caso investigado. Existem, pois, cartografias praticadas em contextos particulares (KASTRUP, BARROS, 2015)

Os autores afirmam que a abordagem cartográfica de Deleuze e Guattari é geográfica e transversal, evidenciando a coerência com a processualidade dos processos de subjetivação os quais são produzidos mediante uma série de forças e elementos que, de modo concomitante, atuam. Assim, o processo de subjetivação não se produz apenas por influencias históricas uma vez que guarda em si uma processualidade que lhe confere potência de movimento (BARROS, KASTRUP, 2015). Além de processual, o método cartográfico é também um método transversal ao desconstruir os eixos cartesianos (horizontal/vertical) e suas categorias previamente definidas. Deste modo, sua natureza transversal confere ao método cartográfico a potência de captar movimentos que compõem as formas e não os produtos. Assim, o método vai se constituindo na medida em que acompanha a dinâmica de movimentos da subjetividade e dos territórios (BARROS, KASTRUP, 2015).

O método cartográfico impulsiona um processo de desmonte das certezas. Ao desestabilizar as certezas, convida o pesquisador a mover o olhar para os “entres” que estão inscritos nos processos em andamento bem como contemplar a indeterminação presente nas mudanças (ROMAGNOLI, 2009).

A dificuldade de viver o método cartográfico consiste em estar aberto para as transformações subjetivas que ele provoca no pesquisador ao mesmo tempo em que a pesquisa está em andamento. Significa que há um processo concomitante de produção do pensamento cientifico ao mesmo tempo em que uma reconstrução de si do pesquisador que se depara com a desconstrução dos modos de fazer pesquisa cristalizados e delineados à luz da perspectiva cartesiana hegemônica. Deste modo, “mais do que procedimentos metodológicos delimitados, a cartografia é um modo de conceber a pesquisa e o encontro do pesquisador com seu campo” (ROMAGNOLI, 2009, p. 169). Nesse sentido, a cartografia pode ser considerada como uma pesquisa-intervenção na medida em que sua produção é tecida ao mesmo tempo em que o pesquisador se produz a partir do encontro com o objeto de estudo . No encontro do pesquisador com seu objeto de estudo, muitas são as forças, os desejos e os afetos presentes, de tal modo que, pesquisador e objeto, já não são mais os mesmos depois do encontro.

Assim, a cartografia propõe, em sua forma de ser método, uma outra modalidade de o fazê-lo, uma vez que não busca se enquadrar nas formatações tradicionais acerca do método e da pesquisa, pautados no rigor sistemático e nas diretrizes instituídas sobre o que é ou não é ciência, moldadas pelo paradigma moderno

(Santo Antônio de Lisboa – Florianópolis)

“A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas. A atenção flutua, toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada.

Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do óbvio! ” (Rubem Alves)