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Os agenciamentos coletivos: contextos de mudança e novas implicações para o sujeito no

Inicialmente, é fundamental refletir sobre a conjuntura em discussão. Busca-se dar visibilidade à característica mutacional do contexto no qual o objeto se insere e se conforma, qual seja, de um contexto de mudanças políticas, culturais, paradigmáticas e organizacionais, representado nos campos externos da Figura 2.

A perspectiva do contexto aqui discutida, conflui com a ideia de agenciamento proposta por Guattari, que ultrapassa a compreensão de estrutura ou sistema. O agenciamento não se trata apenas do contexto a que se pertence, mas guarda relação com a trama variada que compõe a realidade, tanto de natureza biológica quanto imaginária, social, maquínica e gnosiológica. Esta realidade, embora coletiva e partilhada pelo conjunto da sociedade, é incorporada de forma singular por cada indivíduo que com ela se relaciona. Assim, os agenciamentos coletivos dizem respeito às modulações que afetam a subjetividade (GUATTARI; ROLNIK, 2005).

A subjetividade assume natureza mutável e sua produção, ou não produção, é mediada pelos agenciamentos de enunciação. Tais agenciamentos dizem respeito aos dispositivos coletivos que produzem, em larga escala, novas formas de subjetividade. Significa que a subjetividade individuada se revela como a superfície e, em uma camada mais profunda, estão os processos de subjetivação, o background da subjetividade individuada, o qual precisa ser reconhecido e compreendido. Como processo, a subjetivação diz respeito a um movimento permanente de rupturas de equilíbrios até então estabelecidos, sendo a força produtiva do desejo, a mola propulsora para fabricação dos objetos, bem como das formas de subjetivação referentes a estes objetos (GUATTARI, ROLNIK, 2005).

Para elucidar tal contexto, em que os agenciamentos se revelam, propõe-se o desenvolvimento de quatro bases de argumentação:

1. Da noção de flexibilidade como nova centralidade dos processos organizacionais e geradora de impactos na vivência do trabalho;

2. Do reconhecimento do caráter ético das relações contraditórias, entre a ordem flexível e a subjetividade, ou de sua produção em um cenário de conflito entre valores incompatíveis, tal como controle e liberdade e entre escolhas possíveis e determinações (SENNETTI, 2012);

3. Da noção de subjetivação apoiada pela compreensão da permanente reconfiguração dos modos de existência e do desejo como força produtiva, face aos múltiplos agenciamentos coletivos (DELEUZE; GUATTARI, 2015);

4. Da tessitura da prática profissional (CORTINA, 2005) no campo da saúde em meio ao contexto de transformações paradigmáticas, organizacionais e ideológicas mobilizadas pelo SUS.

Dentre as inúmeras mudanças que marcam o século XXI há que se destacar, no âmbito das organizações, os desdobramentos do paradigma da flexibilidade. A rigidez e a burocracia são alvos de críticas incessantes, bem como se ataca toda forma de rotina destituída de crítica. Nessa lógica, exige-se dos trabalhadores a agilidade e o desenvolvimento de competências e habilidades que os tornem aptos a aderirem às mudanças a curto prazo. Além disso, cumpre ao trabalhador sustentar sua prática de modo cada vez autônomo em relação às normas e aos procedimentos formais (SENNETTI, 2012).

Trazer a flexibilidade para a centralidade dos processos organizacionais confere novo significado ao trabalho e as palavras a ele correlatas. Diferentemente da noção que imperou por muitos anos, o trabalho não mais se traduz com a conotação de linearidade. Anteriormente, o indivíduo canalizaria sua inserção no mercado econômico durante toda sua vida, em que se imperava laços de identificação organizacional, apreendidos de forma inconsciente pelo trabalhador, sendo dificilmente rompidos, haja vista que se operavam no nível ideológico (SENNETTI, 2012).

A ideia de “capitalismo flexível” reconfigurou a trajetória do trabalhador a partir de um cenário em que ele passou a permutar em diferentes tipos de trabalho (SENNETTI, 2012, p.9). Daí que a flexibilidade confere ao trabalho a conotação do termo inglês job, como bloco passível de ser transportado ou de sujeitos que fazem blocos de trabalho ao longo da vida; o termo “emprego” é substituído pela palavra projeto, denotando sua natureza volátil e; a forma piramidal que delineava o desenho organizacional é substituída pelo modelo de redes. As redes pressupõem uma facilidade em sua decomposição e rearranjo, permitindo acompanhar e retroalimentar o ritmo veloz de produção (SENNETTI, 2012).

O paradigma da flexibilidade confere às pessoas maior liberdade para delinear suas vidas. A dinamicidade do mercado atribui um ritmo acelerado que impulsiona o desejo de retornos rápidos, além de uma mutação constante nos processos produtivos. Assim como é necessário desconstruir a burocracia rígida, ao indivíduo cabe a adoção de riscos. A singularidade e a potência da incerteza nos dias atuais é sua pulverização na vida cotidiana sem que seja necessária a presença de uma ameaça ou um desastre histórico, mas pertence às entranhas do capitalismo em vigor. Entretanto, isto não significa o afrouxamento do controle, mas a instauração de novos e, por vezes, camuflados e sutis dispositivos de controle. Por esta razão, o capitalismo flexível se apresenta na forma de um sistema de poder turvo, cuja leitura se torna mais difícil e enigmática (SENNETTI, 2012).

A capacidade de influenciar o caráter pessoal é o que confere à flexibilidade o seu tom enigmático. O caráter diz respeito ao “valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros” (SENNETTI, 2012, p. 10). Assim, o caráter diz da singularidade dos sujeitos, uma vez que faz referência aos desejos e aos sentimentos que os habitam, que nem sempre são revelados e que pertencem a uma dimensão muito íntima. O caráter está diretamente relacionado, a longo prazo, com a experiência emocional e com a eleição de valores a serem defendidos e que guiarão as posições quando situações conflituosas e emblemáticas se apresentarem. Assim, “caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (SENNETTI, 2012, p. 10). Na lógica do trabalho, cabe articular a noção de virtude como um valor que compõe o caráter pessoal, visto que se refere aos hábitos e às atitudes que os trabalhadores adotam para buscar a excelência no fazer (CORTINA, 2005).

As contradições entre a nova ordem flexível e a subjetividade emergem quando a escolha de valores duradouros, como a virtude, é incoerente com uma sociedade fortemente marcada pelo imediatismo, pelas relações fluídas e pela incapacidade de saber esperar. Quando aspirações por metas a longo prazo chocam com uma economia regida pela noção de curto prazo; ou quando desafiam indivíduos a cultivar valores de lealdade e de compromisso recíproco com organizações continuamente reconfiguradas, corriqueiramente, lidam com os trabalhadores como objetos de descarte e inviabilizam a criação de laços sociais sólidos (SENNETTI, 2012), o que destitui o profissional da busca pelo melhor no seu fazer, isto é, desvaloriza a virtude, haja vista que ele não possui tempo para realizar a atividade conforme ele desejava, a organização não possui um ambiente que favoreça a dedicação, sendo consequente à vivencia de sofrimento moral.

As modulações subjetivas do paradigma da flexibilidade possuem interfaces éticas importantes na medida em que a nova ordem impõe diferentes valores, os quais, de algum modo, influenciam as escolhas de caráter pessoal. Assim, o imperativo do curto prazo implica em certa corrosão da confiança, da lealdade e do compromisso mútuo que compõem a trama dos laços sociais. Significa, pois, que o valor que está sendo cultivado por essa nova ordem é da mudança fugaz, do descompromisso e do não sacrifício, que faz colocar a seguinte questão ética: Como defender valores que são construídos a longo prazo em uma sociedade ditada pela lógica do curto prazo? A corrosão do caráter, acontece quando se destrói “aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e dão a cada um deles, um senso de identidade sustentável” (SENNETTI, 2012, p.27)

No que tange os processos de subjetivação que se deflagram em amplos e complexos agenciamentos, chega-se ao pressuposto de Guattari sobre o modo como as transformações sociais afetam a configuração do inconsciente, não apenas como assimilador passivo, mas como inconsciente capaz de protestar e como local de produção dos territórios existenciais. Entretanto, a contradição se apresenta quando nossas experiências não conseguem acompanhar o ritmo das mudanças. A cartografia produzida pela força do desejo sofre também o processo de economia do desejo, de tal modo que, antes mesmo de ser possível delinear um jeito de viver dentro de um determinado contexto, esse modo de ser torna-se defasado em face da velocidade das transformações. Há, pois, um processo de “sucateamento de modos de existência promovido pelo mercado que faz e desfaz mundos: treinamos, dia após dia, nosso jogo de cintura para manter um mínimo de equilíbrio nisso tudo e adquirir agilidade na montagem de territórios” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 15).

Considerando a abordagem de Guattari e Deleuze, o território constitui a base sobre a qual os seres se organizam do ponto de vista subjetivo. Esses territórios delimitam a subjetividade em determinados modos de ser ao mesmo tempo em que se articulam com outras forças e seres existentes. Território significa, dessa forma, apropriação, pertença e uma forma de subjetividade fechada. Traduz o conjunto de representações e de projetos os quais mobilizam uma serie de escolhas, investimentos, comportamentos e definições sociais, culturais, estéticas e cognitivas

Já a desterritorialização diz respeito ao movimento de abertura do território a outras conformações possíveis, mediante as linhas de fuga. A reterritorialização compreende o processo de recomposição de um território transformado por um processo de desterritoralização (GUATTARI; ROLNIK, 2015).

Em meio às transformações nos processos organizacionais, há uma produtividade subjetividade no mundo do trabalho a qual impulsiona os trabalhadores a reconfigurarem seus modos de ser e suas práticas profissionais.