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No campo da saúde, a partir da inscrição das premissas ideológicas e filosóficas do novo modelo de atenção à saúde, o objeto é a produção do cuidado por meio do qual se espera efetivar promoção da saúde, prevenção de agravos, recuperação, reabilitação, tratamento, cura e, mesmo que não haja cura, formas de morrer com dignidade. Assim, do ponto de vista teórico e jurídico, o arcabouço institucional do SUS diz de um modelo de atenção comprometido com a produção do cuidado (MERHY, 2006).

O cotidiano de trabalho do enfermeiro na saúde da família é permeado por múltiplos desafios decorrentes das lacunas estruturais, legais, simbólicas e culturais que separam o SUS constitucional do SUS que se materializa no cotidiano dos serviços (CAÇADOR et. al, 2015). No âmbito do SUS, as práticas profissionais são desenvolvidas mediante desafios paradigmáticos que tencionam as disputas macropolítcas e micropolíticas. Assim, entre os embates financeiros, ideológicos e políticos da compreensão de saúde como direito de cidadania e saúde como mercadoria a ser consumida, são desenhadas as condições estruturais e simbólicas de exercício das práticas profissionais no sistema público brasileiro (FEUERWERKER, 2014). Em meio às disputas ideológicas, o SUS impele a uma mudança substantiva na natureza das práticas profissionais que precisam produzir cuidado e não mais apenas procedimentos. No que tange aos processos indenitários, os profissionais são convocados a ressignificarem seu papel sendo necessário, portanto, repensar todo processo formativo historicamente implicado com uma produção fragmentada e descontextualizada de atos de saúde, sustentados no paradigma flexneriano (CAÇADOR et. al 2015). Segundo Feuerwerker (2014), os saberes profissionais encontram-se territorializados em seu campo profissional de ação. Entretanto, a partir do SUS, há a necessidade de uma sobreposição por um território que marca a dimensão cuidadora das práticas de saúde a qual possui natureza transversal sobre qualquer ação profissional.

A compreensão da saúde da família como dispositivo de transformação das prática profissional significa que urge, na atualidade, a necessidade de repensar os valores e conhecimentos de todas as pessoas envolvidas no processo de produção social da saúde. Isto porque há um deslocamento do centro de produção das práticas de uma lógica que visa acúmulo de procedimentos para outra que tem o cuidado como finalidade. Amplia-se, pois, a complexidade das ações a serem desenvolvidas pelos profissionais de saúde e aumenta-se seus

limites e suas possibilidades de atuação, mobilizando, nesses atores, novas habilidades bem como o (re) pensar de suas identidades (CAMPOS; GUERRERO, 2008) e dos processos de subjetivação a ela relacionados.

Analisando este contexto sob a perspectiva de Guattari sobre subjetivação, significa dizer que o SUS instiga o desenvolvimento de processos de desterritorialização abrindo possibilidades para que novos territórios existenciais aconteçam a partir de processos de reterritorialização. Isto porque há um movimento de transformação das práticas profissionais e também de seu sentido.

Ocorre que, na Enfermagem, diferente de outras profissões da saúde, do ponto de vista teórico, a dimensão cuidadora já é ontológica na prática deste profissional. O cuidado é considerado na literatura como objeto e essência da enfermagem (ACIOLI et al., 2014) antes mesmo da criação do SUS. O cuidado é compreendido como objeto epistemológico da Enfermagem (SOUZA et al., 2005). Significa que, enquanto o debate sobre produção de cuidado pode ter causado estranhamento e desconforto em certas práticas profissionais, para a Enfermagem o debate vem reforçar o que historicamente tem sido delineado como bem interno da profissão: a produção de cuidado.

Tal ressonância evidencia um contexto político e institucional mobilizado pelo SUS que, teoricamente, reforça um paradigma que encontra eco na prática profissional do enfermeiro. Por esta razão, a saúde da família é reconhecida na literatura (GOMES; OLIVEIRA, 2008) como o lugar em que o enfermeiro experimenta altos graus de autonomia de sua ação profissional, diferente do que ocorre nas instituições hospitalares, onde o formato das práticas instituídas de saúde são hegemônicas e reproduzem formas de fazer saúde pautadas e centradas no saber médico, na cura e no tratamento.

Tem-se como pressuposto que a enfermagem já possui aproximações epistemológicas com a nova abordagem proposta, ainda que se reconheça que também são reproduzidos no cotidiano um modo fragmentado de pensar e fazer saúde, orientado pela dimensão técnica. Entretanto, há uma compreensão de que existe uma aproximação da enfermagem com a perspectiva do cuidado anterior ao advento do SUS, mesmo que sua forma de o concretizar reproduza as modulações maquínicas do modo produção em saúde tecnocentrado e fragmentado.

Essa aproximação da Enfermagem como o cuidado produz uma convergência autêntica com as primícias do SUS, delineando um potencial de transformação. Significa dizer que o contexto atual, do ponto de vista dos arranjos organizacionais e da prática discursiva, tem

enveredado esforços em defender um modelo e uma forma de agir que pertence aos valores internos da profissão do enfermeiro. Trata-se de uma potência de transformação pois a Enfermagem encontra no sistema público um terreno fértil para impulsionar a essência da profissão e o reencontro com sua natureza por vezes desviada pelas modulações que a desviam de seus bens internos.

Entretanto, a despeito de todas as possibilidades que se apresentam para o enfermeiro no contexto da saúde da família, há que se considerar que esse cotidiano é marcado por uma disputa entre modos instituídos e instituintes de fazer saúde. O instituinte trata-se de um processo produtivo-desejante tendo natureza dinâmica. O instiuinte constitui a crítica do que existe, seja para bem, seja para o mal (GUATTARI; ROLNIK, 2005). Já os modos instituídos constituem as práticas em saúde centradas na produção de procedimentos, na cura e no tratamento. Práticas estas descontextualizadas que trazem em seu bojo a concepção de sujeito como objeto (FEUERWERKER, 2014).

Merhy (2002) define tal disputa como tensão entre atos produtivos de modo que o trabalho vivo em ato busca se evidenciar no contexto das práticas em saúde, em detrimento ao modo predominante de fazer saúde, marcado pelo trabalho morto. Assim, de acordo com Franco (2006) o cotidiano com predominância do trabalho vivo em ato revela possibilidades de criação, inventividade e potência do initituinte e de sua possibilidade de governança sobre a produção do cuidado

Tendo em vista o conjunto de transformações paradigmáticas, políticas e institucionais nas formas de pensar e fazer saúde o Brasil e, considerando que a Enfermagem do ponto de vista histórico e epistemológico, já possui aproximação com o novo conceito de prática que emerge do SUS, questiona-se: Estariam os enfermeiros de saúde da família ressingificando seu lugar social a partir da construção de novos territórios existenciais? Como tem sido o processo de subjetivação de enfermeiros na saúde da família mediante a inserção de práticas profissionais coerentes com seu bem interno?