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Considerando o campo externo da Figura 2 como o conjunto transformações políticas e éticas mobilizadas pela saúde coletiva no Brasil, entendida como campo de saberes e práticas, analisar-se-á os desdobramentos de tais transformações na produção das práticas profissionais. Aproximando-se dos campos internos da Figura 2, desvela-se a necessidade de reflexão sobre algumas especificidades dos agenciamentos produzidos para profissionais de saúde, os quais são desafiados a construção de territórios existenciais em circunstâncias históricas próprias. Neste aspecto, a principal base de argumentação recai na proposição de que reconfigurações paradigmáticas inscritas no capitalismo pós-moderno e no modelo de atenção à saúde no Brasil, com o SUS e a ESF como importantes dispositivos de mudança, se capilarizaram na vida dos sujeitos, em desdobramentos nos processos de viver, adoecer e cuidar e, especificamente, nos processos de subjetivação e construção identitária dos profissionais de saúde.

Guattari discute o processo de reconstrução coletiva do processo democrático instaurado no Brasil na década de 80, contexto em que o país se preparava para as primeiras eleições diretas, após duas décadas de regime militar. O autor acredita que o período de redemocratização do país foi marcado por um movimento de enfraquecimento de um processo de subjetivação alicerçado em quinhentos anos de história marcada por exclusão, marginalidade e segmentação, desenhando uma cartografia perversa de desigualdade social instituída. “No processo de redemocratização, revitaliza-se não só a consciência social e política da sociedade brasileira, mas também o seu inconsciente, de diferentes modos e em diferentes graus” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 15).

Além do processo de redemocratização que se estendia por diversos países da América Latina, ocorria também um movimento de transformação, em âmbito internacional, da lógica inscrita no regime capitalista. Guattari denomina essa reconfiguração do capitalismo de Capitalismo Mundial Integrado (CMI), o qual é marcado por intenso processo de instrumentalização das forças de desejo, de ação e de criação. Tal instrumentalização constitui- se como principal dispositivo de captação da mais-valia em detrimento da histórica extração da força mecânica do trabalhador.

Ainda na década de 80, o Brasil foi palco de grandes transformações políticas e estruturais no campo da saúde. Trata-se da deflagração do movimento da Reforma Sanitária brasileira que teve como conquista a criação do SUS como política pública. Além disso, propôs e defendeu um novo paradigma de saúde que ultrapassa questões organizacionais do modelo assistencial ao contemplar princípios de justiça social na sua constituição (MERHY, 2002).

Assim, a consolidação do SUS tem sua maior relevância no estabelecimento de uma reconfiguração ideológica, propondo um novo olhar sobre a saúde e suas determinações históricas e sociais. A concepção de saúde que emerge da Reforma Sanitária exige novas formas de organizar os processos de trabalho (FEUERWERKER, 2005; GOMES; OLIVEIRA; SÁ, 2007).

A saúde passa a ser compreendida como um componente do viver humano e da condição de sua existência e, por este motivo, abrange todas as esferas sociais. É reconhecido que as determinações históricas de vida e de trabalho criam condições diferenciadas de experimentar, sentir e viver a saúde de acordo com a classe social a que o indivíduo pertence. Significa dizer que o processo saúde-doença-cuidado envolve uma complexa teia de relações da qual fazem parte aspectos físicos, sociais, ambientais, psicológicos e espirituais das pessoas, bem como da atribuição de significados que elas conferem a todos os elementos envolvidos nesta construção (AYRES, 2007).

Segundo o Institute of Medicine Committee on the Future of Primary Care, o que caracteriza a APS é a prestação de cuidados de saúde acessíveis e realizados de forma integrada pelos serviços. A prática em saúde, no contexto da APS, tem como potencial ser capaz de lidar com a maioria das necessidades de cuidados de saúde individual e coletiva, bem como o desenvolvimento de uma sustentada e prolongada relação de vínculo com os usuários, tendo como foco a família (LAABS, 2005).

No contexto brasileiro, a APS é compreendida e assumida do ponto de vista político como o dispositivo para nortear a organização do sistema de saúde. Para que seja capaz de responder às necessidades de saúde da população e de construir práticas de saúde sustentadas em sua lógica, a APS exige o reconhecimento da saúde como direito social, bem como o enfrentamento da determinação social do processo saúde-doença-cuidado (GIOVANELLA et al., 2009). Na visão de Zoboli e Fortes (2004), há um chamamento para uma reviravolta ética na produção das práticas em saúde.

O chamamento feito a partir da implantação da saúde da família tem por intuito materializar as primícias ideológicas do SUS, configurando novos modos de fazer saúde e de

ser profissional. O conceito de território adquire, assim, novas conotações, passando a ser entendido em sua dinamicidade. Sendo vivo, o território convoca as equipes de saúde da família para implementar práticas de cuidado que dialoguem com o contexto histórico, social, cultural e simbólico das comunidades. Nesses moldes, o conceito ampliado de saúde ganha materialidade e a integralidade alcança o cotidiano dos serviços (BORGES, 2015).

Considerando que as reconfigurações paradigmáticas inscritas no capitalismo pós- moderno e no modelo de atenção à saúde no Brasil, compreendemos que, a partir do SUS, eclodiu um chamamento para uma reviravolta ética nas práticas de saúde. O cenário de atuação do enfermeiro na saúde da família é, portanto, marcado por desafios éticos que perpassam as reconfigurações políticas, sociais e paradigmáticas dos modelos de gestão de atenção à saúde no Brasil, os quais estabelecem interface com o processo de subjetivação desses profissionais e as vivencias de angustia/sofrimento moral experimentadas no cotidiano.