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CAPÍTULO 2 OS GÊNEROS FÚNEBRES: motivações e usos

2.6 A certidão de óbito: certificação legal da morte

No Brasil, os registros de óbito eram realizados pela Igreja até os Oitocentos, no caso dos cristãos católicos e não católicos, nos Livros de óbitos de cada freguesia das cidades brasileiras, conforme os exemplos 35, 36, 37, 38, 39 e 40.

Felippe Lorenço Gonçalves – branco (1849)

Aos dezasseis de Setembro de mil oito centos e quarenta e nove nesta Freguezia de Nossa Senhora da Conceição da Cidade do Maranhão, na Rua da Madre de Deus caza N. 97 faleceu de moléstia interior Felippe Lorenço Gonçalves; branco de idade trinta annos natural de Portugal; Solteiro; fez testamento; foi com todos os sacramentos acompanhado pelo Pe. Coadjutor e Cruz e seis capellans ate o Cemitério da Mizericordia. Para constar fiz este assento.

No impedimento do [ilegível] Rdo. Cônego Encarregado da Freguezia José da Costa Araujo. Coadjuctor.

Ex.. 35 – Registro de óbito de Felippe Lorenço Gonçalves.

Fonte: LIVRO DE REGISTRO DE ÓBITOS DA FREGUESIA DE N. S. DA CONCEIÇÃO DA CAPITAL (1845-1851). n. 40, fl. 59. São Luís/MA.

Símplicio – escravo (1871)

Aos dezesseis dias do mez de Agosto de mil oitocentos e setenta e um annos, nesta cidade do Maranhão e freguezia de Nossa Senhora de Victoria da Catedral, falleceo da vida presente de febre perniciosa com trinta e seis annos de idade, sem receber os últimos Sacramentos o mulato Simplício, solteiro, natural desta cidade, escravo do

casal do fallecido Manoel Joze Martins, o qual envolto no habito da ordem de São Francisco foi enommendado e acompanhado por mim ao cemitério da Santa Casa de

Mizericórdia para ser inhumado1, do que para constar fis este assento em que me assigno. (Grifo nosso)

O Conego Maurício Fernando Alves – Cura collado. Ex.. 36 – Registro de óbito de Simplício.

Fonte: LIVRO DE REGISTRO DE ÓBITOS DA FREGUESIA N. S. DA VITÓRIA DA IGREJA CATEDRAL DA SÉ (1868-1886). n. 13. Fl. 70. São Luís/MA.

Marciana - livre pela ley. (1873)

Aos trez dias do mês de fevereiro de mil oitocentos e setenta e trez, nesta cidade do Maranhão, e freguesia de Nossa Senhora da Cathedral, falleceo da vida prezente, de

escorbuto, com vinte seis dias de nascida Marciana, livre em virtude da lei numero dois mil e quarenta de vinte e oito de setembro de mil oitocentos e setenta e trez annos,

digo, setenta e um, natural desta freguesia, filha natural de Lina, preta, escrava do casal de Luiz Pinheiro de Lourenço Siqueira, fallecida, a qual envolta no habito do menino Jesus, foi encommendada e acompanhada por mim ao cemitério da Santa casa da Misericórdia para ser inhumada; do que para constar fis este assento em que me assigno.

O Conego Maurício Fernando Alves – Cura collado.

Ex.. 37 – Registro de óbito de Marciana.

Fonte: LIVRO DE REGISTRO DE ÓBITOS DA FREGUESIA N. S. DA VITÓRIA DA IGREJA CATEDRAL DA SÉ (1868-1886). n. 13, fl. 99. São Luis/MA.

Thereza de Jesus Belfort – Liberta (1878)

Aos treze de janeiro de mil oitocentos e setenta e oito nesta cidade do Maranhão e freguezia de Nossa Senhora da Victoria, falleceu da vida presente de febre com sessenta annos de idade sem receber os últimos Sacramentos a preta liberta Thereza de Jesus Belfort, Africana, de filiação desconhecida, a qual envolta com o habito da

ordem de Nossa Senhora do Carmo foi encommendada e acompanhada por mim ao

Cemitério da Santa casa da Misericórdia para ser inhumada. Para constar mandei fazer este assento que assigno.

O Conego Maurício Fernando Alves – Cura collado.

Ex.. 38 – Registro de óbito de Thereza de Jesus Belfort.

Fonte: LIVRO DE REGISTRO DE ÓBITOS DA FREGUESIA N. S. DA VITÓRIA DA IGREJA CATEDRAL DA SÉ (1868-1886). n. 13, fl. 168. São Luis/MA, 1878.

Carmen Nazaré (1941)

No sábado 4 de outubro o P. Alfredo Oliveira acompanhou o enterro da operária da fábrica Camboa, Carmem Nazaré, solteira, doente havia já uns 10 meses, alem de ser

raquítica e defeituosa no seu desenvolvimento físico. Recebeu, tempo ante, a

Extrema Unção e na véspera o P. Superior da Residência, vigário dos Remédios, lhe deu a Sagrada Comunhão. R. I. P.

O Vigário – P. Joseph H. Foulquier.

Ex.. 39 – Registro de óbito de Carmen Nazaré.

Fonte: LIVRO DE REGISTRO DE ÓBITOS DA IGREJA DE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS. (1937-1962). n. 80, fl. 17, São Luís/MA.

Edgardo Carvalho de Oliveira (1942).

Edgardo Carvalho de Oliveira faleceu no domingo pela manhã, 14 de fevereiro [de 1942]. Foi enterrado no mesmo dia às 4h da tarde – Rua da Independência ou Barão de Itapary, ultima casa à direita – quem desce para Camboa. Não foi assistido nem chamaram o

Padre. Gente Espírita, segundo consta. O Vigário – P. Joseph H. Foulquier.

Ex.: 40 – Registro de óbito de Edgardo Carvalho de Oliveira.

Fonte: LIVRO DE REGISTRO DE ÓBITOS DA IGREJA DE NOSSA SENHORA DOS REMÉDIOS. (1937-1962). n. 80, fl. 25, São Luís/MA.

Nos registros produzidos pela igreja, havia uma discriminação étnica (exemplos 35, 36, 37 e 38), uma construção discursiva identitária, socioeconômica e cultural, pelo tipo de irmandade a que pertencia o falecido (exemplos 36 e 38), pela ênfase a algum defeito físico (exemplo 38), pela causa da morte (36, 37 e 38) e, algumas vezes até pela religião do falecido (exemplo 40).

Com a laicização, a secularização da vida cotidiana, a medicalização da morte, a Igreja desobriga-se da responsabilidade de ser a instituição que também reconhece oficialmente o óbito de seus fiéis. A partir de 1851, o Estado brasileiro regulamenta o registro de nascimentos, óbitos e casamentos, separando o que deveria ser registrado pelas certidões ou pelos atos religiosos celebrados por padres e pastores. Em 1870, tornou-se obrigatório em todo território nacional.

A prática do registro nos livros de óbitos das igrejas (exemplos 39 e 40), no século XX, caracteriza-se por um conteúdo estritamente religioso, cuja ênfase maior refere-se ao recebimento dos últimos sacramentos, da assistência espiritual ou não na hora da morte. Contudo, não há mais a influência desse registro nos demais setores da vida cotidiana.

No Brasil, o registro público de falecimento de um cidadão (conforme os exemplos 41, 42, 43 e 44) é expedido pelos cartórios de registro civil, definitivamente, no século XX. O Ministério da Justiça autoriza, por meio do Tribunal de Justiça dos estados brasileiros, os cartórios de registro civil do distrito onde o cidadão faleceu a proceder com a emissão da certidão. A elaboração de uma certidão de óbito, em nosso país, é regulada pela Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 que dispõe sobre os registros públicos (nascimento, casamento, óbito etc). O Decreto Presidencial nº 7.231, de 14 de

julho de 2010, determinou um novo modelo para as certidões de nascimento, casamento e óbito com a inclusão de sistemas semióticos possibilitados pela tecnologia a fim de evitar as fraudes recorrentes nesses tipos de documentos.

O registro do falecimento para produzir o efeito esperado nas esferas sociais é cercado por leis, outros tipos de registros e contextos que obrigam as pessoas a dar informações específicas, como o chefe de família que faz a declaração de óbito, o médico que atesta a causa da morte, a autoridade policial que registra o boletim de ocorrência de pessoas encontradas mortas ou o funcionário da agência funerária que encaminha os dados do falecido ao Cartório de Registro Civil para solicitar a Certidão de Óbito.

Ex.: 41– Registro de óbito do “Dr. Getúlio Dorneles Vargas”.

Fonte: Disponível em: <http://www. cpdoc.fgv.br/comum/htm/>. Acesso em: 30 nov. 2009. N. 2686 Informação intertextual: número do assento de óbito lavrado em um livro do Cartório de Registro Civil.

Informação intertextual retirada do atestado de óbito feito pelo médico.

Imagem (remete a permissão do governo para a atuação do cartório quanto ao registro civil da morte).

Tipografia (tamanhos, tipos de fontes, espacejamento como recursos semióticos que representam a importância das informação

Ex.. 42 – Registro de óbito de Tibúrcio Santana.

Carimbo de identificação do tabelião do cartório de registro público.

Ex.. 43 – Registro de óbito de Apolônia Lopes Pereira

Na produção de uma certidão de óbito, como gênero textual e prática discursiva, situamos aqui os processos da construção dialógica de significados influenciados por outros gêneros e sugeridos por Bazerman (2005, p. 68), a saber: o preenchimento do espaço com objetos, a tradução de outros sistemas

e discursos, a intertextualidade, a responsabilidade e as operações. O assento

de óbito é lavrado em um livro depositado aos cuidados dos cartórios a partir Selo de fiscalização do

Tribunal de Justiça. (Referência

das informações fornecidas pelo agente funerário. O preenchimento das categorias de objetos especificadas na certidão e realizado pelos cartórios civis é decorrente de fontes intertextuais tais como registro de nascimento, certidão de casamento (se for o caso), CPF, atestado de óbito, carteira de identidade do falecido, título de eleitor etc.18

Em decorrência da alteração proposta pelo Decreto Presidencial nº 7.231, de 14 de julho de 2010, novas categorias de objetos foram incluídos no documento como uma forma de impedir as fraudes que ocorriam com grande frequência, conforme exemplo 44. A nova certidão de óbito é impressa em papel moeda e traz mais de onze itens de segurança como marca d’água, microletras e o brasão da República. Além disso, a palavra “autêntico”, escrita no verso de cada papel, é visível apenas sob lâmpada ultravioleta com luminescência verde limão.

18 Segundo a Lei brasileira de registro civil, pelo menos uma das informações a seguir deve ser

arrolada no documento: número de inscrição do PIS/PASEP; número de inscrição no Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, se contribuinte individual; número de benefício previdenciário - NB, se a pessoa falecida for titular de qualquer benefício pago pelo INSS; número do CPF; número de registro da Carteira de Identidade e respectivo órgão emissor; número do título de eleitor; número do registro de nascimento, com informação do livro, da folha e do termo; número e série da Carteira de Trabalho. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.187-13, de 2001)

Ex.. 44 – Modelo dos novos registros de casamento e de óbito adotados a partir de Janeiro/2011

A certidão de óbito é um gênero necessário para os sobreviventes, uma vez que esse gênero textual assegura a realização de outras ações como, por exemplo, o sepultamento do falecido, a realização de inventário de bens móveis e imóveis, a abertura de testamento, a movimentação de contas financeiras, a solicitação de auxílio funeral (caso esteja ligado a alguma entidade profissional), requerimento de pensão, enfim, tudo que se relaciona ao morto e que passa a ser responsabilidade da família. Para isso, é preciso, primeiramente, que um médico declare ou ateste a causa da morte. Com esse atestado ou declaração, o cartório poderá produzir a certidão e dar a chamada fé pública para a oficialidade desse fato. A validade da ação representada por esse gênero só é efetivada se houver, afixado ao texto, um zelo expedido pelos Tribunais de Justiça de cada Estado brasileiro, como encontramos no exemplo 43.

Como prática social, a certidão de óbito, ao longo do tempo, sofreu várias mudanças socioculturais que remetem a interferências de aspectos interdiscursivos e intertextuais em sua construção. Nos exemplos 41, 42, 43 uma representação numérica (Nº 2686, nº 104, Óbito nº 8. 566) estabelece uma relação interdiscursiva e intertextual como o assento de óbito registrado em livro próprio. Da mesma forma que o selo de fiscalização do Tribunal de

Justiça do Maranhão, identificado no exemplo 43, estabelece uma relação interdiscursiva com o discurso proposto pelo Poder Judiciário quanto a emissão desse documento e seus precedentes e imposições legais. Na verdade, esse recurso semiótico reflete o controle do Poder Judiciário em relação aos cartórios de registros civis públicos. Outro interdiscurso que forja essa prática é o discurso médico que possibilita a produção efetiva dessa atividade discursiva e textual e seus efeitos sociais.