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O kairós cultural da ampliação dos gêneros escritos fúnebres

CAPÍTULO 3 A RETÓRICA LAUDATÓRIA DOS GÊNEROS

3.2 O caso dos epitáfios, dos obituários e dos memoriais virtuais: a

3.2.1 O kairós cultural da ampliação dos gêneros escritos fúnebres

O triunfo e a transformação do capitalismo, na forma historicamente específica de sociedade burguesa, fizeram surgir novas práticas mortuárias (ligadas ainda a uma tradição discursiva) que intensificaram a ideologia do catolicismo quanto ao caráter exemplar da morte, à gestão dos bens de salvação, por intermédio de notas de falecimento, publicação de agradecimento dos enlutados pela solidariedade recebida, de convite de missa, convocações dos membros das irmandades para preparação dos rituais fúnebres, além de obituários, que também ajudavam a legitimar as posições sociais ligadas à burguesia e que se diferenciavam dos que eram publicados para anunciar a morte de membros pertencentes a outras classes sociais.

O kairós dos gêneros fúnebres ligados à esfera jornalística emerge, especialmente, com o surgimento da circulação em massa de jornais no século XIX. O aparecimento de novos meios de comunicação de massa, no período oitocentista, afetou significativamente a organização social da vida cotidiana da burguesia e da sociedade de um modo geral, tornando possíveis novas formas de ação e interação no mundo social.

A forma econômica da ideologia ocidental da modernidade28: o capitalismo foi um aspecto crucial para a efervescência de novas práticas culturais. A economia capitalista incutiu na sociedade burguesa do século XIX uma cultura de consumo de bens econômicos e simbólicos em quase todas as situações da vida cotidiana. No esforço da burguesia em tornar a morte de seus entes queridos um importante acontecimento social e evidenciar o papel

28 Aqui adotamos a proposição de Thompson (1998, p. 18) acerca da idéia de modernidade quando nos diz que a modernidade não é apenas a mais pura mudança de acontecimentos; “ela é a difusão dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa. Por isso, ela implica a crescente diferenciação dos diversos setores da vida social: política, economia, vida familiar, religião e arte”. A ideia de modernidade, nessa perspectiva, apresenta- se como uma pré-história e o início de um desenvolvimento produzido pelo progresso técnico, a libertação das necessidades e o triunfo do Espírito. Está estreitamente associada à

social do morto e da família, além dos ritos mortuários de passagem, de preparação do corpo, vários gêneros textuais eram produzidos e difundidos pela família e pelas outras instituições as quais pertenciam o falecido. Essa produção institucionalizada e sua difusão generalizada, usando aqui os termos propostos por Thompson (1998), estão intrinsecamente relacionadas aos objetivos das instituições interessadas na mercantilização das formas simbólicas ligadas às práticas mortuárias.

A efervescência de gêneros textuais ligados às práticas de integração do morto ao seu novo lugar na memória social, no contexto sociocultural dos Oitocentos, emergiu historicamente como uma forma de fixar os papéis sociais ligados às classes economicamente destacadas e reproduzi-los por meio desses textos. Esse tipo de transmissão de formas simbólicas expandiu o conjunto de produtores envolvidos no contexto interacional das práticas mortuárias. Outras instituições, além do núcleo familiar base, passaram a integrar as práticas mortuárias e a compartilhar o luto, o que contribuiu para o surgimento de novos meios de representação da morte e dos mortos, e para uma intensificação daqueles já existentes.

Em relação aos memoriais virtuais, o kairós em que se insere está associado à efervescência e à inserção do avanço tecnológico na sociedade contemporânea no que diz respeito à intromissão dos meios de massa advindos da tecnologia digital, e à acentuação de interações comunicativas que são mediadas temporal e espacialmente pela tela de um computador. A exposição dos sentimentos, de interações humanas íntimas, ligadas às atitudes das pessoas diante da morte e dos mortos, na era da virtualização29 digital dos fatos sociais, intensificou-se. Sobre a prática da virtualização, Lévy (1996, p. 29) enfatiza que ela, de um modo geral, “é uma guerra contra a fragilidade, a dor, o desgaste”. O autor postula ainda que “em busca da segurança, e do controle, perseguimos o virtual por que nos leva para regiões ontológicas em que os perigos ordinários não mais atingem”.

29 Segundo Lévy (1996), a virtualização acarreta com frequência um processo de materialização. O autor explica ainda que “as linguagens humanas virtualizam o tempo real, as coisas materiais, os acontecimentos atuais e as situações em curso. Da desintegração do presente absoluto surgem, como as duas faces da mesma criação, o tempo e o fora do tempo, o anverso e reverso da existência”.

A partir da década de 1990, Calvet (apud MILLER, 2009, p. 67) identifica uma prática social que resultou da saturação da mídia em nossas relações com a informação e em nossas relações uns com os outros, chamada voyeurismo

mediado30. Ele também discute “as forças sociais que sustentam a contrapartida do voyeurismo mediado: o exicibicionismo mediado”. Esta prática, de acordo com o autor, consiste na psicologia social da autoexposição, que serve a quatro propósitos: ao autoesclarecimento, à validação social, ao desenvolvimento de relacionamentos e ao controle social.

O que nos interessa em relação ao que Calvet (apud MILLER, 2009, p. 70) destaca nessas funções, e que se encaixa perfeitamente em relação ao surgimento dos memoriais virtuais é que “quaisquer dessas funções – ou todas elas – podem constituir um fator de um desejo individual de supercompartilhar.” No caso dos memoriais fúnebres na web, não há apenas o propósito de se criar uma memória, mas também materializar, por meio do autoesclarecimento e da superexposição de sentimentos, tanto o impacto causado pela perda de um ente querido como a inconformação dos sobreviventes diante da morte.

No contexto virtual, há vários sites ou sítios da web, que funcionam como suporte para a criação de memoriais póstumos na esfera digital, destinando-se àqueles que queiram expressar a dor da saudade, o sentimento de luto, o impacto da morte de um ente querido causado nas vidas dos sobreviventes, relatando o quanto aquela pessoa tinha um papel importante para sua vida e algumas vezes para a vida de outras pessoas. Estes são ambientes, criados na cultura digital norte-americana, que oferecem as ferramentas para a criação desse gênero digital. Alguns exemplos desses

memorial websites que encontramos em pesquisa na web são: Virtual- memorials, Friends at rest, Gone too soon, e Lasting tribute (nos Estados

Unidos da América), Memorial vivo (no Brasil), Campa virtual (em Portugal). Mesmo se considerarmos o esvaziamento que assumiram as práticas ligadas à morte com sua medicalização ao longo do século XX, no qual se tornou tema tabu, e apesar de toda a permanência da tradição discursiva nas representações fúnebres, não podemos negar que, tal como observa

30 “(...) o consumo de imagens reveladoras e de informações sobre a vida aparentemente mostrada e desprotegida dos outros, frequentemente – mas nem sempre – com propósitos de entretenimento (...) através dos meios de comunicação de massa e da internet (Calvet 2002: 2 apud Miller 2009: 66).”

Marcuschi (2005, p. 13), “a internet é uma espécie de protótipo de novas formas de comportamento comunicativo.” A par disso, é que corroboramos da ideia de que o ambiente virtual é um contexto em que as mudanças e transformações em algumas práticas sociais tornam-se mais suscetíveis e perceptíveis. Além disso, se assumimos a noção de gênero textual como fenômeno situado social e historicamente31, fruto das contingências das atividades e das experiências humanas, uma forma de ação social, acreditamos que a virtualização de práticas sociais agrega uma possibilidade de mudança de atitude, de ação, de comportamento comunicativo.

No caso das atitudes diante da morte e dos mortos, acreditamos que a ideologia da superexposição do agir social no mundo contemporâneo da cultura digital, cultivada pelos meios de comunicação de massa, em especial pela web, tem influenciado as mudanças relacionadas às práticas fúnebres direcionando-as para uma espetacularização da morte. Isso se tornou possível no ambiente virtual pela ocorrência de novos modos de interação social. Antes a interatividade entre atores sociais integrantes das situações oriundas da morte esta circunscrita as relações no contexto da família e de outras instituições ou grupos os quais pertenciam o morto ou eram responsáveis por algum tipo de ação que integrasse o morto ao seu novo lugar social. Hoje, com a internet, as práticas fúnebres que estão se inserindo nesse contexto afetam uma audiência muito maior.

Marcuschi (2005) chama atenção para o fato de que o contexto do

discurso eletrônico é propício para “a criação de novas formas de organizar e

administrar os relacionamentos interpessoais em um novo enquadre participativo”. Em outras palavras: essas novas formas, mesmo que sejam baseadas em práticas já existentes, podem se transformar num novo gênero.

Com já enfatizamos outras vezes, a morte, apesar de ser um evento ligado ao ciclo natural da vida, desencadeia várias ações sociais nos mais diversos campos de ação, tais como: religioso, científico, policial, jurídico, médico, policial, midiático etc. Essa diversidade de campos de ações poderá se

31 Concordamos com Marcuschi (2005, p.14) quando adverte que “dizer que os gêneros são históricos equivale a admitir que eles surgem em determinados momentos na História da Humanidade. Contudo no geral, não temos a história da maioria dos gêneros.” Se surgem em um dado momento sócio-histórico, são oriundos de necessidades particulares relativas a uma situação específica, ou ainda, apresentam-se como uma nova exigência.

manifestar dependendo do contexto de situação em que ocorre o evento, dos atores sociais (das mais diversas posições sociais, com diferentes pontos de vista ou posicionamentos ideológicos), de todas as práticas semióticas resultantes das representações (gêneros textuais “responsáveis pela durabilidade dos atos linguísticos no tempo, pela objetificação das ações sociais”, como assevera Reisigl & Wodak, 2008, p. 5), da ordem do discurso (combinação particular de gêneros, discursos, estilos que constituem o aspecto discursivo da rede de práticas fúnebres). Essa retomada acerca da diversidade de campos em que se situam as práticas fúnebres e da multiplicidade de gêneros textuais que as realizam interessa-nos, visto que não podemos desconsiderar a interferência de outras práticas e discursos, ligados a novas tecnologias da informação, e o modo como elas podem influenciar os eventos sociais do nosso cotidiano.

No caso dos memoriais virtuais, o diferencial em relação às outras práticas fúnebres está em oferecer a possibilidade de uma ação responsiva por parte do leitor/interlocutor mais imediata, proporcionada por links como Sua

homenagem. Enquanto nos outros gêneros há uma defasagem temporal entre

produção e recepção, o memorial virtual mescla práticas textuais que pertencem a uma tradição discursiva fúnebre (epitáfio, obituário, condolências) e integra outras semioses (imagem, som, cor e movimento). Essa combinação distingue-se das demais, pois, oferece, como é próprio dos gêneros surgidos nesse ambiente, uma atualização de informações. Ao produtor e àqueles que se inserem no processo interativo, é permitido manifestar, a qualquer momento, as impressões, os sentimentos acerca do impacto provocado pela morte de um ente querido, ou simplesmente possibilitar ao outro uma expressão de solidariedade mais velada do que se fosse em um contato face a face.

Nas próximas seções, detalhamos caso a caso, a construção retórica dos gêneros que escolhemos para explicitar como se dá a intensificação de papéis sociais e da expressão do luto, a partir do modelo teórico-metodológico que optamos a fim de responder nossas questões de pesquisa e de verificar a validade de nossas hipóteses.