• Nenhum resultado encontrado

Apesar do investimento da ciência evolucionista em divulgar idéias sobre a importância da herança biológica para o desenvolvimento humano em sociedade, o imaginário social em torno da infância não se rendeu totalmente a uma conceituação determinista. A criança, de maneira geral, foi, ao longo do século XIX, vista muito mais como uma “natureza plástica e moldável” do que como um conjunto de caracteres hereditários definidos desde a concepção. É justo dizer que mesmo a ciência evolucionista não esteve interessada em traçar contornos rígidos para entender o desenvolvimento humano a partir de padrões fixos já definidos desde

120 TORT, Patrick (org). Pour Darwin. Op.cit., p. 13. 121

BEER, GILLIAN. Darwin‟s PLots Ŕ Evolutionary Narrative in Darwin, George Eliot and Nineteenth-

88 o nascimento. A partir da teoria evolucionista houve, sim, uma ampliação dos esforços dos cientistas em investigar formas de melhorar as condições de vida das crianças e sistematizar conhecimentos para ajudar as famílias a criar seus filhos.

A incidência de políticas higienistas no espaço familiar foi um dos movimentos empreendidos pela ciência interessada no desenvolvimento das crianças. Nesse momento da história, sobretudo na Europa, e com forte repercussão no Brasil, “Science, it was believed, could improve life chances for children; more than this, science could help to unlock the mysteries of how children‟s minds worked, could measure the intelligence of children, could tell mothers how to rear children, and could provide guidance for children whose development or behavior did not conform to standard norms”122.

A maneira como tais iniciativas foram concretizadas modula-se a filiações ideológicas e morais dos cientistas ou daqueles que fizeram uso das descobertas científicas para fins sociais. É certo que, em toda a Europa, investir na infância ganhava importância internacional, visto que os países queriam garantir seu poder econômico tendo cidadãos preparados para representar a nação. Como já foi dito, a infância, no contexto do século XIX, deixa de ser um assunto doméstico, “for childhood became caught up in the international rivalry of states; children were seen as the most valuable asset a nation had, one which, if not properly nurtured, would lead to a process of degeneration and to a loss of power and status relative to other countries. It was therefore almost inevitable that states should be drawn further into issues of child policy”123.

Diante de tais motivações, formou-se uma certa visão crítica sobre um provável (e extremado) racionalismo da ciência em suas investidas em políticas específicas para a infância. Segundo essas teorias, os governos, ao adotarem medidas visando ao planejamento familiar ou à alocação de recursos que subsidiassem a sobrevivência de famílias maiores, tinham interesses econômicos bastante óbvios:

“Governments‟ willingness to pay these families allowances was not entirely or even mainly due to their acceptance of the arguments of pressure groups who had campaigned for them

122 CUNNINGHAM, Hugh. Children & Childhood in Western Society since 1500. Londres e Nova Iorque:

Longman, 1995, p. 165.

89 from a child-centred perspective; rather governments saw in family allowances a means of stabilizing employer-labour relationships, or of controlling wage inflation, or of encouraging a higher birth rate. Children, however, did undoubtedly benefit from these moves which made it less likely that they would pass their childhoods in poverty” 124.

O que se evidenciava na infiltração da ciência na vida cotidiana era que vários assuntos antes considerados como exclusivamente pertencentes à vida íntima e ao mundo privado agora se tornavam assunto de interesse público. Os Estados se investiam do poder de controlar esferas da vida humana antes restritas ao âmbito privado.

Uma das conseqüências da disciplinarização das práticas cotidianas referentes ao cuidado com as crianças teve origem na interpretação de certos conhecimentos científicos acerca de “impulsos naturais”. Ao observar no ser humano a permanência de determinados traços instintivos dos animais, alguns cientistas estabeleceram diretrizes para o processo de socialização da criança. Nesse sentido, os comportamentos espontâneos típicos da infância foram sendo mais e mais sujeitos à repressão, de forma que “towards the end of the nineteenth century the idea of subjugating the everyday treatment of the child to exact, scientifically founded rules became more and more common. Making the life of the child a technically controlled science was completed by attempting to make the parent-child interaction into a science. What should be displaced is spontaneity, emotions, and individuality”125.

Alguns princípios evolucionistas ganharam mais publicidade que outros, na sua aplicação aos discursos e projetos sociais. Tampouco a vulgarização do discurso científico originário do evolucionismo gerou impactos imediatos no cotidiano das crianças, apesar da intensa divulgação de regras higienistas, de padrões científicos para uma melhoria da educação, e inclusive de recomendações de fundo eugenista, que buscavam definir práticas de procriação a partir de critérios de qualidade genética. Houve uma forte reação de representantes de diversos segmentos sociais, questionando as formas autoritárias que esses discursos estavam assumindo em sua dimensão pública e intervencionista.

124 Ibid., p. 173.

125

Ibid., p. 175, citando R. Spree Shaping the child‟s personality: medical advice on child-rearing from the late

90 Os avanços científicos lançam novas perspectivas para assegurar a sobrevivência de cidadãos que deveriam se juntar ao movimento de progresso que, no século XIX, toma conta do imaginário europeu – e que, como conseqüência, ecoa nas elites coloniais. Com relação à mortalidade infantil, tomam-se providências efetivas, o que traz um alento para uma problemática que, até o século XVIII, e ainda no século XIX, na Europa, atingiu veementemente, e sem distinção de classes, quase todas as famílias. Mesmo entre os cientistas da época essa tragédia se abatia com freqüência, como foi o caso da família de Charles Darwin, que perdeu duas filhas por problemas que seriam um pouco mais tarde facilmente solucionáveis. A morte de uma delas, a mais velha, Annie, deixou Darwin “tristemente sobrepujado e abalado”126.

Num século em que a fome, a depressão econômica e a crescente agitação dos desempregados geravam forte tensão social, os avanços da ciência eram vistos como fatores importantes para a construção de uma nova ordem social. A Inglaterra passava por agitações provocadas pelas contradições entre dois sistemas ideológicos: um que reforçava o Estado de Direitos e visava garantir o bem-estar da população, e outro que propunha intervenções cirúrgicas de controle populacional – tanto do ponto de vista demográfico, quanto no que se referia às manifestações coletivas de reivindicação social.

As teorias de Malthus, de Darwin e outros adeptos das idéias evolucionistas serviram de base para uma mudança na maneira de interpretar a sociedade européia do século XIX. Na década de 1830, “Malthus calculava que, sem controle, a humanidade poderia duplicar sua população em apenas vinte e cinco anos”127. Se isso acontecesse, o planeta seria devastado. Cabia, então, tomar providências para evitar o descompasso entre crescimento populacional e o volume de recursos naturais existentes, além da perspectiva da fome atingir milhões de pessoas. Nas ruas de Londres, era cada vez maior o número de mendigos vivendo do que encontravam no lixo ou recorrendo à criminalidade para conseguir o que comer. Essas eram expressões interpretadas pelos evolucionistas como “o combate das espécies”, do qual apenas os fortes sairiam vivos. “A vida não era um jardim paroquial em uma tarde de verão, mas uma batalha entre os derrotados nas dilapidadas ruas de Londres”128. A divulgação – e a ampla aceitação – das teses de Malthus sobre o descontrole do crescimento populacional

126 DESMOND, Adrian & MOORE, James. Darwin Ŕ a vida de um evolucionista atormentado. São Paulo:

Geração Editorial, 2001, p. 402.

127

Ibid., p. 284.

91 reforçaaidéiadequeaspolíticasimplantadas pelas nações européias com relação à natalidade tinham uma preocupação mais econômica que humanitária.

Essa linha cientificista e sistêmica terminou por influenciar muitos dos discursos e políticas voltados à infância. De maneira quase dogmática, a ciência propunha regras para o casamento e limites à educação dos filhos, elaborando teses que eram usadas nos materiais didáticos para crianças e nas propagandas destinadas ao controle de certas práticas sociais. Condenava-se, portanto, o hábito de beber, de deixar crianças participarem de festas de adultos, ou dormir no quarto dos pais. O higienismo incorporou ideais eugênicos e aplicou as pesquisas sobre hereditariedade a muitas das políticas voltadas à redefinição dos espaços de união das pessoas em coletividade: desde a família, até comunidades maiores, como os cortiços, por exemplo.

A família “vê sua autonomia ameaçada pela crescente intervenção do Estado, o qual, não podendo agir constantemente em nome dela, vem a ocupar seu lugar, especialmente na gestão da criança, o ser social e o capital mais precioso”129.

Já o fato de ter filhos ou planejar o tamanho da família passa a ser regulado pelo Estado na FrançaeemoutrospaísesdaEuropa.Se, por um lado, como já foi dito, as teorias malthusianas lançam uma sombra sobre a capacidade do planeta em equalizar os recursos disponíveis com o crescimento populacional, por outro lado os países também se preocupam em fazer da família o espaço onde a raça se reproduz de maneira numerosa, fecunda e saudável. Zola foi uma das principais vozes favoráveis a essa segunda posição e, nos seus escritos sobre a fertilidade das mulheres, ele analisa a reprodução a partir de propósitos nacionalistas, com o objetivo de se contrapor aos “fantasmas da redução da natalidade e ao medo da degenerescência”130.

As idéias científicas ligadas ao evolucionismo contribuíam com as bases deterministas dessas duas visões fatalistas sobre a demografia do século XIX. Com uma boa dose de arrogância, as políticas idealizadas nessa época expressavam a ambição dos cientistas por controlar os processos naturais. Ao contrário do que havia ocorrido no Iluminismo, quando se construiu

129

PERROT, Michelle Introdução ao capítulo Os Atores in História da Vida Privada. Op. cit., p.91

92 uma relação “respeitosa, mas de modo algum subserviente”131

com os deuses e a natureza; no século XIX a intenção é a de colocar as criações humanas em confronto com as forças naturais, de modo a criar as condições de vitória e controle das primeiras sobre as últimas.

131

SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público Ŕ As Tiranias da Intimidade (citando Frank Manuel). São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 119.

93

Capítulo 4 Ŕ A presença dos debates evolucionistas na literatura de Zola e de Machado

História e ficção se juntam na narrativa que incorpora os princípios evolucionistas. Alguns escritores fizeram uma transposição direta dos conceitos de tempo, de competição pela sobrevivênciaededestruição,todosindistintamenteoriginadosnasteoriasdeDarwin,Spencer e outros cientistas. Mas outros escritores, influenciados pela hermenêutica e pela filosofia de Schoppenhauer e de Nietzsche, sabiam selecionar a parte desse referencial que mais serviam a seus propósitos narrativos. É exatamente nessa encruzilhada que se separam Zola e Machado frente às referências científicas e filosóficas aqui debatidas. O que se quer nesta tese é ver em que medida o debate evolucionista foi tematizado nas obras de Machado de Assis e de Émile Zola. Defende-sequeessaseriaabasepara entender não apenas as concepções próprias a cada um dos escritores sobre as discussões decorrentes da ciência que chegaram ao campo social, mas também para entender cada uma das sociedades: a brasileira e a francesa, em seus esforços para transformar esses conceitos em práticas de inserção social dos indivíduos, da infância à idade adulta. Pelo que foi apresentado até aqui, percebe-se que cada um dos escritores baseou sua interpretação das teorias evolucionistas em princípios, ideologias e conceitos totalmente distintos.

O que preponderava na visão dominante que trouxe para o campo social as conquistas do evolucionismo eram percepções por demais parametrizadas pelos padrões morais e culturais da época. Percebe-se uma filiação quase acrítica de Zola a essa forma de conceber a relação entre biologia e sociedade, enquanto que Machado a tratava com ironia e se mostrava moralmente menos comprometido no confronto com tal conjunto de idéias. Vejamos, agora, como cada um dos dois escritores deixou transparecer em seus escritos suas posições acerca dos desdobramentos da investida evolucionista nas questões relacionadas com o desenvolvimento do indivíduo em seu meio social.