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A obra Emílio ou Da Educação, de Jean-Jacques Rousseau, norteou alguns dos princípios mais caros às idéias sobre a educação desenvolvidas no século XIX. Um deles está diretamente ligado à visão da infância como a idade da inocência, de ligação com a natureza, com o transcendente, com uma época fundadora, misteriosa e distante da compreensão adulta, à qual apenas as crianças teriam acesso. Tais associações, que em muito influenciaram a construção de personagens infantis na literatura, devem sua origem a idéias bem anteriores ao século XIX. Na filosofia e na literatura gregas, a infância é associada a uma época de desrazão e, contra o desvario da emoção sem freios, a educação era chamada a intervir. Embora ainda não existisse a noção de desenvolvimento em fases biológicas ou emocionais, houve entre os gregos um forte investimento na educação como um processo que viria a cumprir o ideal de homem, sendo os princípios educativos em parte inspirados pelos deuses e, em parte, estruturados de forma racional.

Em Rousseau, persiste a idéia de que é através da razão que se conseguirá educar uma criança, de forma a que ela consiga preservar o que de positivo existe em sua natureza, afastando-a da perversão que inevitavelmente surge do contato com a sociedade. No entanto, ele também argumenta a favor da emoção, defendendo que “a educação proposta seja conveniente ao homem e bem adaptada ao coração humano”101. Em suas análises sobre as emoções humanas, Rousseau criou um largo espaço em sua obra Emílio para a descoberta de um outro mundo – o da infância. Iniciando seu livro a partir da idéia de que “não se conhece a infância”102, ele defende que o conjunto de idéias acumuladas até então não seria suficiente para desvendar aquele novo universo. Nesse sentido, ele afirma que o indivíduo está sempre dividido entre diversos impulsos, pois somos arrastados a caminhos contrários: o da natureza (mais ligado ao universo das pulsões e emoções) e o da sociedade (organizada a partir de princípios civilizatórios e racionais).

Dessa contradição nasce o sofrimento e a infelicidade. Rousseau vai buscar uma forma de sistematizar princípios e máximas que contribuam para uma educação voltada para a vida:

101

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.5.

77 “Viver é o ofício que quero ensinar-lhe”103

, diz ele. O modelo criado por Rousseau é o da educação individualizada, com uma criança sendo acompanhada a partir de 2 anos de idade, sendo liberada para o convívio em sociedade aos 25 anos. A crença de que as instituições públicas teriam se corrompido é o que leva Rousseau a depositar nesse tipo de educação “doméstica” a esperança para formar indivíduos sábios e fortes:

“Emílio, esse personagem de ficção, simbolizará o indivíduo à margem. Posto desde o nascimento em contato íntimo com a natureza, tomando-a sempre como guia, ele será educado para conviver e suportar a vida em sua grande sociedade corrompida, onde já não há mais perspectiva de salvação global, porque já não há mais nem leis, nem pátria, nem corpo político”104.

Rousseau descreve, então, um acompanhamento minucioso das várias fases da infância, a partir de conselhos a um preceptor fictício. Esse adulto teria o papel de oferecer à criança experiências que tirassem proveito do estado natural em que esta se encontrava, fortalecendo- a para enfrentar mais tarde o mundo social. A natureza teria um papel formador, como se vê no trecho abaixo:

“Observai a natureza e segui a rota que ela vos traça. Ela exercita continuamente as crianças, enrijece seu temperamento com provas de toda espécie e cedo lhes ensina o que é sofrimento e dor”105.

Tal sistema de educação deveria também levar em conta as especificidades da infância. Para isso, o preceptor deveria estar aberto para perceber a criança no seu desejo de ludicidade, no prazer da descoberta, no riso, na ânsia por liberdade e demais impulsos naturais a essa fase de vida.Rousseautornou-se,então,o primeiro idealizador de uma pedagogia centrada na criança, estabelecendo como princípio de sucesso para a educação o vínculo generoso entre educador e aluno, que permitisse a este último se desenvolver longe dos modelos pedagógicos castradores que se impunham à época. As passagens citadas a seguir são exemplos dessa maneira

103

Ibid., p. 14.

104 FORTES, L.R.Salinas. “Fazer o Homem ou o Cidadão”. In Revista Perspectiva do Centro de Ciências da Educação da UFSC, Florianópolis: Editora da UFSC. 2001.Citado in CERIZARA, Ana Beatriz. Rousseau Ŕ A Educação na Infância. São Paulo: Editora Scipione, 2001, pp. 41-42.

78 inovadora deolharacriançanasuadimensãoespecífica,aqualpareceaindanortearmuitos dos princípios contemporâneos e mais avançados da educação:

“Nossa mania professoral e pedantesca é de sempre ensinar às crianças o que aprenderiam muito melhor por si mesmas, e esquecer o que só nós lhe poderíamos ensinar”106.

“Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não teve alguma vez saudade dessa época onde o riso está sempre nos lábios, e a alma está sempre em paz? Por que quereis retirar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão curto que se lhes foge, e de um bem tão precioso, de que não poderiam abusar? Por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão para vós”107.

Rousseau ajuda a pavimentar o caminho para uma visão racionalista do mundo, apesar de louvar a inocência da natureza. Ele parece, assim, nos dizer que, frente ao impulso destrutivo com que os homens vivem coletivamente, com ódios e ambições uns contra os outros, nada mais podemos fazer a não ser desenvolver instrumentos concretos de autoregulação. Em um capítulo posterior destacarei outros conselhos oferecidos por Rousseau àqueles interessados na educação de crianças. O objetivo de tal discussão será o de identificar a ressonância das idéias de Rousseau na obra de Machado de Assis. Sobretudo em Brás Cubas, observa-se a presençadeumarelaçãodeoposiçãodiretaentreotipodeeducação que o próprio personagem teria recebido e os princípios que Rousseau propagava como os de uma educação apropriada. Sutilmente, Machado de Assis assim critica o estilo dominante na educação das crianças da elite brasileira.