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Antes mesmo de escrever sobre a cidade de Lourdes, essa crítica quanto à tradição católica vai reaparecer em outro livro, o último da série Rougon-Macquart - Le Docteur Pascal. Nesse romance, Zola defende sua crença na possibilidade da ciência vencer a fé. Clotilde, sobrinha do Doutor Pascal (um dos filhos de Pierre), é filha de Aristide, o poderoso financista de La Curée. Com a morte da mãe de Clotilde, Aristide deixa a filha aos cuidados do irmão Pascal. Clotilde tem, então, sete anos, e o médico tem como intenção transformá-la em sua aprendiz, oferecendo-lhe uma educação que se baseia na ciência: “Il en a fait une savante, il s‟en est servi comme d‟aide. Elle a lu à peu près tout, très forte en histoire naturelle”190. Mas a luta contra a influência da religião surge na intriga através da personagem Martine, que cuida de Clotilde e começa a trabalhar na casa de Pascal aos 13 anos. Ocupado por suas pesquisas, Pascal se vê obrigado a dividir com Martine a educação de Clotilde : “… ce fut elle qui éleva l‟enfant, la menant à l‟église, lui communiquant un peu de la flamme dévote dont elle avait toujours brûlé; tandis que le docteur, d‟esprit large, les laissait aller à leur joie de croire, car il ne se sentait pas le droit d‟interdire à personne le bonheur de la foi”191. Assim como muitas outras jovens no século XIX, Clotilde vive praticamente encerrada em casa, onde recebe uma educação que se destina a desenvolver habilidades manuais e um caráter generoso e gentil.

A estrutura do personagem se inicia num formato que se assemelha ao de Angélique, prima de Clotilde. Dois dos traços comuns entre as duas são o pendor à arte e a atração pelo sagrado. Por influência de Pascal, descrito como um sábio e como “l‟homme digne et équilibré de l‟œuvre”192 (na verdade, o alter ego de Zola, aquele que conhece toda a árvore genealógica da

família), Clotilde vai aos poucos se diferenciando da prima. No mesmo espírito de criticar a influência nefasta da educação religiosa sobre as meninas, Zola vai adicionando novos embates ao conflito entre religião e ciência, mostrando que, dessa vez, é a segunda a que ganha o confronto.

Clotilde se sente verdadeiramente atraída pela religião e encontra na Igreja Católica o substitutivo para uma falta que ela não sabe bem definir. De início, Pascal aceita que Martine

190 ZOLA, Emile. B.N. Manuscrits, NAF 10290, folheto nº 53, citado por Colette Becker in Les Rougon- Macquart Ŕ Histoire naturelle et sociale d‟une famille sous le second Empire – t. 5, Op. Cit., p. 1100. 191 ZOLA, Emile. Le Docteur Pascal in Les Rougon-Macquart Ŕ Histoire naturelle et sociale d‟une famille sous le second Empire. Op. cit., p. 1102.

192

ZOLA, Emile. Arbre Généalogique in B.N . Manuscrits, NAF 10345, folheto nº 130 citado por Colette Becker, op. cit., t. I, p. 73.

120 possibiliteaClotildeo acesso a ensinamentos religiosos, mas, no decorrer da intriga, o médico se volta contra as demonstrações de fé que a menina expressa. Tal situação se agrava quando, sob influência de sua avó, Félicité, mãe de Pascal, Clotilde tenta destruir os papéis que documentam a história da família Rougon-Macquart. Félicité se aplica efetivamente a se apropriar desses documentos, que revelariam o passado vicioso da família. Mesmo mesmo conhecendo a importância científica dos trabalhos de seu tio, Clotilde é persuadida pela avó e por um padre amigo da família dos perigos das pesquisas de Pascal. Num momento de inconsciência, Clotilde decide roubar a chave do armário onde o tio preserva cuidadosamente a memória da família. Essa alteração de comportamento em Clotilde deve-se à influência negativa da religião, que coloca a jovem num estado de irracionalidade, levando-a a desejar “tout détruire dans un autodafé qui serait agréable à Dieu”193.Zolaaquidenunciaaignorância que a religião provoca nas personagens de Clotilde, Félicité e Martine – exemplos de pessoas que são obnubiladas por princípios anticientíficos que negam a razão. Dessa forma, ele enaltece a luta do pensamento racional contra os preconceitos, contra a hipocrisia católica e contra os limites do dogma. O Auto-de-fé fracassa e Pascal retoma o controle da situação. Clotilde reencontra seu lugar no projeto do tio, de torná-la uma jovem dedicada à ciência. A partir do capítulo VII, a relação entre os dois vai se transformar numa história de amor.

Zola narra em sua intriga não apenas o resgate de uma jovem que corria o risco de cair no fanatismo religioso; ele desenvolve também a história de amor entre um sábio, que já é então um homem maduro, e uma mulher muito mais jovem, com idade para gerar uma criança que daria continuidade à família. Nesse ponto, o personagem e o romancista se misturam. Zola teve, ele próprio, uma relação amorosa com uma mulher bem mais jovem: Jeanne Rozerot, amante do escritor até o fim da sua vida e mãe dos seus dois filhos. Quando iniciam seu relacionamento, Jeanne é 27 anos mais jovem que Zola – um pouco menos que a diferença de idade entre Pascal e sua sobrinha – que é de 34 anos. Em seu romance, Zola celebra, então, o encontro dessa jovem mulher com um homem mais velho. Este último, totalmente dedicado ao trabalho e que, tendo desistido da busca da felicidade, conhece o amor numa idade mais avançada. Ao concluir o romance, Zola o dedica a sua amante, associando-a à personagem de Clotilde e reverenciando-a por ter lhe trazido de volta a juventude:

193 ZOLA, Emile. Le Docteur Pascal.

121 “A ma bien-aimée Jeanne, Ŕ à ma Clotilde, qui m‟a donné le royal festin de sa jeunesse et qui m‟a rendu mes trente ans, en me faisant le cadeau de ma Denise et de mon Jacques, les deux chers enfants pour qui j‟ai écrit ce livre, afin qu‟ils sachent, en lisant un jour, combien j‟ai adoré leur mère et de quelle respectueuse tendresse ils devront lui payer plus tard le bonheur dont elle m‟a consolé, dans mes grands chagrins”194

.

Não é por acaso que Zola também dedica esse romance a seus dois filhos. Trata-se, de fato, de uma narrativa voltada à esperança no futuro. Tomando como base a árvore genealógica da família Rougon-Macquart, vê-se como três outros personagens da geração de Clotilde – Maxime (filho de Aristide), Claude (filho de Gervaise e Lantier) e Naná (filha de Gervaise e Coupeau)–têmfilhos,mastodosmorremprecocemente, deixando a família sem continuidade. O filho de Clotilde e Pascal, que nasce logo ao final da série, representa a perpetuação dos Rougon-Macquart. Sendo uma criança saudável, livre das “taras hereditárias” da família, representa, também, a possibilidade de redenção e de regeneração que Zola vai deixar como mensagem final, mostrando sua fé na humanidade. Essa abertura à superação da doença familiar já estaria, na verdade, esboçada desde o início da saga, pois Pascal é o único filho de Pierre que será poupado da influência hereditária negativa da avó Adélaïde, como mostra o resumo do personagem feito por Zola: “Pascal Rougon, né en 1813, a 38 ans en 1851 (Loi: Innéité, aucune ressemblance avec ses parents). Médecin. En dehors complètement des siens. L‟homme digne et équilibré de l‟œuvre”195. Pelo lado materno, o pequeno recém-nascido que

fecha o ciclo da família também escapa da doença familiar. Clotilde, educada longe dos pais, vai crescer num ambiente sadio e se beneficia dos cuidados da educação oferecida pelo tio, quese utiliza da ciência para prevenir qualquer tendência impulsiva que pudesse comprometer o desenvolvimento da menina. Aqui Zola coloca em prática sua teoria de que um meio adequado pode influenciar positivamente a educação da criança e, conseqüentemente, pode tambémneutralizarosefeitosperversosdasherançasbiológicas,comojáhaviasido sutilmente referido no romance Le Rêve. Se com Angélique a religião termina por inviabilizar essa evolução, em Clotilde é a ciência que fala mais alto e, através de uma educação rigorosa e cuidadosa, ela escapa dos riscos de dar continuidade ao fanatismo e à loucura presentes em outros membros da família.

194 ZOLA, Emile. Citado por Colette Becker in Les Rougon-Macquart Ŕ Histoire naturelle et sociale d‟une famille sous le second Empire, t. 5 . Op. cit., p. 1092.

122 Essa é uma vitória da razão, representada aqui por um personagem no qual a crença na ciência e no progresso se aliam a um senso agudo de observação, elementos que farão do doutor Pascal a peça fundamental capaz de evitar a decadência total da família. Sendo, então, fiel a uma parte do pensamento positivista que propunha a identificação das partes doentes da sociedade para que a ciência fosse capaz de intervir e curar, Zola encontra seu próprio sistema de realização desse projeto, prevendo, desde o esboço de sua obra, o personagem capaz de exercer o papel da ciência.

Ao final do romance, depois da morte de Pascal, os dossiês que registram o passado da família são queimados por Félicité, que nunca havia abandonado a idéia de apagar as “vilaines histoires” que poderiam comprometer seu projeto de preservar a lenda de glória e poder196 em torno da família Rougon. Mas esse incêndio não acaba com a obra de Pascal, visto que tudo o que o médico investira em Clotilde se propagaria positivamente, como mostra a paisagem seguinte:

“ … l‟enlevant à un milieu exécrable, il l‟avait prise avec lui, il avait sûrement cédé à son bon cœur, mais sans doute aussi était-il désireux de tenter sur elle l‟expérience de savoir comment elle pousserait dans un milieu autre, tout de vérité et de tendresse. C‟était, chez lui, une préoccupation constante, une théorie ancienne, qu‟il aurait voulu expérimenter en grand : la culture par le milieu, la guérison même, l‟être amélioré et sauvé, au physique et au moral. ”

Ao lembrar de Pascal, Clotilde se emociona enquanto vela seu filho, dando-se conta: “… du long travail qui s‟était opéré en elle. Pascal corrigeait son hérédité, et elle revivait la lente évolution…”197

.

Segura de que todo esse esforço afinal teve como resultado uma obra ainda maior – o filho do casal – Clotilde se mostra esperançosa diante do futuro da família Rougon-Macquart. Nas cenas finais do romance, Clotilde olha a árvore genealógica da família, único documento que sobrevive ao incêndio, e observa que essa representação da família é, de fato, a mistura “de l‟excellent et du pire, une humanité en raccourci, avec toutes ses tares et toutes ses luttes”198. Clotilde se pergunta, então, porque “après tant de Rougon terribles, après tant de Macquart

196 Zola, Emile. Le Docteur Pascal. Op. cit., p.1332. 197

Ibid., pp. 1337-1338.

123 abominables”199, ela resolve colocar mais uma criança no mundo. Mas logo esquece de seus temores ao ouvir um grito do filho e, ao colocá-lo no peito e ver sua boquinha tragar com voracidade o leite, mais uma vez Clotilde se enche de esperança, pois, como escreve Zola, “Une mère qui allaite, n‟est-ce pas l‟image du monde continué et sauvé?” 200

. O menino, que não tem ainda uma identidade precisa, mostra-se como uma brisa saudável do futuro e surge no final do romance como se representasse um apelo à vida, ou, quem sabe, talvez, como “une invocation […] au génie qui naissait peut-être, au messie que le prochain siècle attendait, qui tirerait les peuples de leur doute et de leur souffrance ”201!