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Valorizando a relação com a natureza propagada na pedagogia de Rousseau, alguns intelectuais europeus e norte-americanos criaram obras que partiam de uma idéia nova de infância para imaginar sociedades utópicas, baseadas na harmonia e na divisão de responsabilidades entre crianças e adultos. Essa retomada das idéias de Rousseau permite aos pedagogos modernos se defrontarem com problemáticas relacionadas ao conflito entre

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Ibid., p. 66.

79 natureza e cultura, assim como à relação do homem com seu meio social. Vale a pena destacar que esse antagonismo já estava colocado para aqueles que se preocupavam com a educação de crianças desde o início do século XIX, quando se publicam as memórias de Jean Itard sobre o menino selvagem Victor, encontrado na floresta francesa de Aveyron. Descortina-se um novo universo sobre a infância: suas emoções, seus comportamentos, sua capacidade de aprender. Os conhecimentos da psicologia infantil são ainda precários, assim como de suas manifestações cognitivas e intelectuais. No entanto, esses estudos serão o fundamento das explicações inéditas relativas ao ingresso do homem na sociedade.

A partir daí, outros conjuntos de teorias sobre o desenvolvimento infantil vão ganhar corpo, como os de Charles Fourier e de Robert Owen. O primeiro publica, em 1808, a Teoria dos Quatro Movimentos e, em 1829, O Novo Mundo Industrial e Societário, livros que divulgam a criação de um mundo utópico, no qual as crianças desempenhariam um papel importante. Divididas em faixas etárias, as crianças seguiriam um itinerário educativo longe da família com o objetivo de desenvolver as pulsões inatas, de forma a torná-las fonte de criatividade e de produção. A idéia seria uma inserção paulatina das crianças no mundo social, fazendo-as aprender a realizar atividades diversas: culinária, cerâmica, esportes e até organização política. Fourier cria, assim, a sociedade utópica de „Harmonia‟ que, apesar de inspirada em crianças imaginárias, produz uma visão coletiva dos comportamentos originários de uma “verdadeira” natureza do homem em sua passagem da infância à idade adulta.

Robert Owen cria outra visão de uma sociedade utópica, tomando como centro a criança. Também no início do século (entre 1801 e 1824), o autor publica suas idéias sobre uma coletividade de crianças onde “le travail, la productivité sans gaspillage, le bonheur seront garantis par um type particulier de rapport social, fruit d‟une pédagogie intense et fortement institutionnalisée”108. Nessa sociedade, assim como em “Harmonia”, a criança não é educada pela família. Criam-se de forma imaginária as instituições que deveriam se ocupar de sua educação, com pessoal especializado que ensinasse a falar, cantar, dançar, utilizar determinados objetos, sem jamais utilizar ameaças ou punições.

Ao lado dessas experiências que modelam a vida em sociedade, preserva-se também a compreensão romântica da infância como essência da humanidade, uma fase da vida onde

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BECCHI, Egli. Le XIXe Siècle in BECCHI, Egli e JULIA, Dominique. Histoire de l‟Enfance em Occident

80 somos capazes de tudo, onde está nossa origem perdida e corrompida pela vida adulta. Aceder a essa origem para melhor compreender a humanidade é uma experiência transcendental, reveladora, capaz de dar uma outra dimensão ao futuro. É a partir dessa visão paradisíaca que intelectuais e escritores do século XIX esforçam-se em preservar a infância da corrupção e da degenerescência. As crianças deveriam, então, ter acesso a uma educação idônea, iniciada na família e tendo continuidade na escola.

Para muitos estudiosos da história da infância, o século XIX é também a culminância de um processo no qual a ciência estuda a evolução humana, da infância à idade adulta, a fim de elaborar hipóteses sobre as relações do indivíduo com seu entorno social. Conceitualiza-se a infância de formas diversas e esses conceitos servem para consolidar a dominação da ciência diante da religião no que se refere às explicações sobre a origem da vida e o futuro da humanidade. Quais seriam, então, as idéias novas que permitiriam a redefinição da infância enquanto etapa da vida durante a qual se pretende preparar os indivíduos para se integrarem a um projeto de sociedade onde a razão e o progresso desempenhem importantes papéis?

Vimos que está na antiguidade a origem das utopias que colocam a criança como elemento a partir do qual se pretende traçar o destino da sociedade. No entanto, diferentemente do personagem mítico, sem papel social preciso, ou ainda do cidadão da República de Platão, educado com o propósito de criar uma sociedade perfeita, a criança que é alvo da pedagogia iluministaésupostamente“real”.Nessecontexto,a criança torna-se “l‟ être qu'il faut observer, définir, expliquer dans un cadre qui n'est pas exclusivement celui de l'humain”109

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O exercício rigoroso de observar as mudanças comportamentais infantis, anotando-as de maneira detalhada, é, no século XIX, a marca inaugural do tratamento que a psicologia científica oferece ao estudo do desenvolvimento humano. Em um texto onde analisa as mudanças de comportamento em seu próprio filho, A Biographical Sketch of an Infant110,

Darwin mostra-se interessado em estudar um caso específico de desenvolvimento infantil, a fim de estabelecer leis que ajudem a compreender o ser humano em suas distintas fases da vida. A partir da publicação das obras de Darwin e de outras teses evolucionistas, as teorias sobre a hereditariedade vão sendo reconhecidas enquanto instrumentos importantes à

109 BECCHI, Egli. Le XIXe siècle. In BECCHI, Egli e JULIA, Dominique. Histoire de l‟enfance en Occident.

Op. Cit, p.153.

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DARWIN , Charles. A Biographical Sketch of an Infant in Mind, n. 2, 1877, p. 285-294. Reeditado por P. H. Barrett, The Collected Papers of Charles Darwin, t. II, Chicago: Chicago University Press, 1997, pp. 191-200.

81 compreensão de comportamentos sociais que teriam origem na infância. Descrevem-se as crianças nos aspectos mais variados, individual e coletivamente, a partir de seu estado natural, atravessando o desenvolvimento biológico no decorrer de várias fases da vida, e até mesmo em cenas triviais do cotidiano, como brincadeiras infantis, festas e atividades em espaços públicos, dentre outras.