• Nenhum resultado encontrado

A CIDADANIA NA PERSPECTIVAS DA GESTÃO E DA EXECUÇÃO

CAPÍTULO 3 – CIDADANIA DAS MULHERES POBRES NA ASSISTÊNCIA

3.2 A CIDADANIA NA PERSPECTIVAS DA GESTÃO E DA EXECUÇÃO

A noção de que usuárias e usuários são sujeitos de direito já é bem cristalizada no nível discursivo dos órgãos gestores da assistência social, federal e municipal. Interessa-nos analisar o quanto esta noção está incorporada na prática da assistência social para pensar na possibilidade de conversão do “favor” e da “ajuda” em direito. Romper com a tradição do favor e da ajuda é um indicador de fundamental importância para a constituição de direito. No entanto, esta é a primeira questão de grande complexidade quando nos colocamos a analisar a situação brasileira e londrinense.

Nos diálogos e entrevistas com as assistentes sociais e demais profissionais que atuam no atendimento dos serviços e programas da assistência social é notável como as referências aos pleitos das usuárias e usuários são sempre tecidas tendo por base o verbo “pedir”. Nesses termos, fala-se de “pedir benefícios” e, por vezes, com ocorrências muito menos freqüentes, fala-se de

“pedir ajuda”. O histórico do uso do verbo “pedir”, tal como empregado na assistência social, remete-nos principalmente a uma tradição de “ajuda” e “favor”, não de “direito”. A assistente social Janaína reflete sobre a própria expressão “benefício”, suspeitando que ela seja inadequada para falar de direito. Assim se desenvolve a reflexão de Janaína:

(...) benefício... [essa] palavra é um resquício da antiga assistência social que tinha a assistência propriamente dita. Benefício vem de benéfico, benéfico vem de caridade... e se algo que é direito... não... não deveria ser benefício. Então precisa voltar a discutir qual vai ser a palavra melhor indicada pra isto. Porque você vê como a gente... como as mudanças acontecem. (...) Nós vamos ter que discutir qual vai ser a melhor. Porque melhor não é benefício. (...) Então a gente vai ter que, sabe... o próprio beneficiário, o usuário... e usuário também é uma palavra que vai ser modificada... vou falar público... nosso próprio público alvo. A gente tem assim sabe, uma dificuldade porque a mudança que teve, ela foi... ela foi tão rápida que a gente não conseguiu adequar as terminologias. Isto está em uma discussão, a nomenclatura... e qual vai ser o melhor termo? Nós estamos na fase ainda de adaptação e tal. (...) Então, a gente tem... tem se encontrado e tem feito estas reflexões e discussões. É benefício? Então, é direito? Mas como que nós estamos usando a palavra benefício? Então, são as contradições do nosso agir profissional, do nosso dia a dia (Janaína – trabalha no CRAS).

A fala desta assistente social, inclusive com seu ritmo intermitente, revela como a situação de entrevista não é tão somente um momento de exposições de informações, prática, idéias e pensamentos já internalizados, como pode ser também um momento de auto-reflexão sobre a prática profissional e os valores que orientam essa prática.

De modo mais direto, a reflexão da assistente social Janaína trata do fato de que lidamos com contradições que expõem o descompasso entre a mudança de concepção na legislação que caracteriza a assistência social como um direito - tal como preconiza a Constituição Federal de 1998 e a LOAS de 1993 – e o uso de terminologias que pertencem à tradição assistencial. Com relação a esses termos, o modo como devemos nos referir ao público da assistência social não é uma questão evidente, mas sim objeto de reflexão e análise. A escolha de terminologia que Janaína faz no momento da entrevista, “nosso público-alvo”, também não é desprovida de crítica. Correntes que defendem um enfoque participativo para as políticas públicas, concebendo a existência de sujeitos de direitos, criticam a definição de “público-alvo”, uma vez que pode conter a conotação de dirigir-se a objetos de intervenção da ação estatal.

Em meio a uma emaranhando de expressões e tendo em consideração que as palavras não são neutras, conforme Donna Haraway (2004), as expressões com as quais estamos habituadas/os a lidar devem ser retidas para análise. Estamos frontalmente em desacordo com a idéia segunda a qual “a linguagem é um instrumento empregado para denominar e para a transmissão do conhecimento. Ela apenas registra uma situação. Ela é, por definição neutra e se situa além do campo ideológico”

(SEMPRINI, 1999, 66). Ao contrário, entendemos a linguagem como parte constituinte dos sistemas de poder e de representação e assim sendo torna-se arena de luta. Por isso o empenho de estudiosas e estudiosos feministas por uma revolução na linguagem.

Por outro lado, as categorias analíticas da Sociologia são sempre tomadas de empréstimo da linguagem o que reforça a exigência de lhe atribuir sentidos específicos – que não são neutros – bem como historicidade. Neste caso, as categorias analíticas são a arena de luta. Se as expressões se inscrevem nessas arenas, logo, são processos históricos. Desse modo, vale atentarmos para o alerta de Ulrich Beck (2003) sobre o risco de usarmos “categorias zumbis”, ao nos referirmos ao uso de categorias que perdem seu potencial explicativo diante das mudanças sociais. Para uma pesquisa, em muitas ocasiões, o uso da linguagem, de expressões e de categorias são os mais reveladores da existência de um pêndulo entre a inovação e a persistência que configura os processos sociais. Esse movimento pendular está muito presente na política de assistência social.

A tradição do funcionamento da assistência social no Brasil, coexistindo com o padrão de baixos investimentos públicos para a área é um grande obstáculo para a consolidação da assistência social como direito, ainda que os textos legais tenham avançado significativamente neste terreno. Conforme sintetiza Márcia Pastor (2006, p. 47),

Tradicionalmente concebida como uma prática de benemerência e baseada numa cultura política que associava pobreza à marginalidade, a assistência social foi desempenhada majoritariamente por instituições de cunho filantrópico que atendiam aos necessitados na perspectiva do dever moral de ajuda ao próximo, já que as ações do poder público nesta área, quando existiam, eram residuais e seletivas.

Ao analisar a combinação da tradição vigente na assistência social com a tradição dominante na arena política, e os obstáculos postos para a igualdade e a emancipação, temas caros para a discussão sobre cidadania, Amélia Cohn (2005, p. 49) constata que “o primeiro problema é o da associação entre políticas de combate à pobreza e políticas de promoção da cidadania. O tema levanta a relação entre a lógica da igualdade e a da emancipação”. Implantar políticas que visem diminuir a desigualdade social e, ao mesmo tempo, visem à construção da cidadania, exige, segundo a autora, que as políticas sociais enfrentem a dupla tradição brasileira, por um lado o assistencialismo e, por outro, o clientelismo. O primeiro traço nega os direitos sociais, enquanto o segundo visa ao controle das pessoas pobres.

Como o problema ganha dimensões tão extraordinárias, as pesquisas que vêm sendo realizadas, especialmente as voltadas para o estudo de políticas públicas, têm sido divididas, conforme Amélia Cohn (2005, p. 50), em duas grandes linhas. A primeira voltada para a mensuração da pobreza e mecanismos precisos e eficientes de focalização das políticas. “A segunda enfatiza a dimensão da cidadania e da conquista dos direitos sociais por parte dos segmentos pobres da população, acentuando o caráter público de tais políticas e programas”.

Seguimos, neste estudo, colada às preocupações lançadas nessa segunda linha de pesquisa. Ao buscarmos a identificação de elementos que possam sinalizar mudanças em tradições tão arraigadas na assistência e no direito à cidadania, devemos, de partida, conceber a inevitabilidade da coexistência de traços tradicionais com traços inovadores, tanto no campo da assistência social, quanto no campo da ação política.

Segundo definição da LOAS, a assistência social é um direito do cidadão e dever do Estado e, enquanto tal, é parte constitutiva da Política de Seguridade Social. De acordo com a redação de seu artigo primeiro, a assistência social “provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. O problema de início presente nesta concepção é a grande dificuldade, senão impossibilidade, de definir quais são as “necessidades básicas”. E sem essa definição o exercício do direito ficará comprometido.

Poderíamos considerar, do modo mais restritivo possível, que ‘as necessidades básicas”

referem-se à alimentação. No relatório do MDS de setembro de 2006 diz-se que “em média as

famílias beneficiárias do programa (Bolsa Família) gastam R$ 144,60 (cento e quarenta e quatro reais e sessenta centavos) com alimentos e produtos para a casa” (MDS, 2006c, p. 28). Considerando-se que, em junho de 2006, o PBF transferia em média aproximadamente 62,00 (sessenta e dois reais) por família, constata-se então que esse benefício representa aproximadamente 43% da média familiar de gastos com alimentação e produtos para a casa. Portanto, esta necessidade básica não é garantida, por exemplo, com os valores transferidos pelo PBF.

De acordo com o MDS (MDS, 2006a, p. 5), com a ancoragem legal estabelecida pela Constituição Federal de 1998 e com a LOAS, “a assistência social foi ordenada política pública garantidora de direitos da cidadania”. Nesta perspectiva, “o SUAS, implantado a partir de 2005

em todo o território nacional, efetiva, na prática, a assistência social como política pública de Estado, fazendo a necessária ruptura com o clientelismo e as políticas de favor e de ocasião”.

Como tal ruptura não pode ser efetivada tão somente pela vontade do governo federal com a formulação de procedimentos burocráticos, sua efetivação deve ser tomada como objeto de investigação a partir da prática na execução dos serviços e programas.

A execução da política de assistência social, a partir da implantação do SUAS, passa pelos serviços dos CRAS, “uma unidade pública que concretiza o direito socioassistencial quanto à garantia de acessos a serviços de proteção social básica com matricialidade socio-familiar e ênfase no território de referência” (MDS, 2006a, p. 11). Neste documento, intitulado Proteção Básica do Sistema Único de Assistência Social – Orientações Técnicas para o Centro de Referência de Assistência Social, a expressão “direito” aparece com 53 (cinqüenta e três) ocorrências e “cidadania” aparece com 18 (dezoito) ocorrências. O CRAS representa, então, a “porta de entrada” para o acesso aos direitos assistenciais, a partir do qual se faz encaminhamentos e acompanhamentos para a rede de apoio, constituída por serviços governamentais e não-governamentais.

A constituição de uma rede sócio-assistencial de proteção à população em situação de risco e vulnerabilidade é um avanço e uma importante conquista no âmbito da proteção social, em contraste com a antiga tradição da filantropia, da caridade e da benemerência, que atuavam de forma esporádica, localizada e na condição de favor. Ao tipificar a assistência social como política pública, tenta-se vencer tal tradição, instituindo, ao contrário, a necessidade de serviços duradouros, a ampliação do público beneficiário, dentre outros aspectos, mas, fundamentalmente, a noção do direito, isto é, da assistência social como um direito, assim como o é a educação e a saúde, por exemplo. Entretanto, vencer tradições tão arraigadas não é um processo fácil e muito menos ágil, ao contrário tende a ser marcado por ambigüidades.

Maria Luiza Mestriner (2001, p. 13) chama a atenção para a confusão no Brasil entre a assistência social, a filantropia e a benemerência, “entendidas como expressões de altruísmo, solidariedade e ajuda ao outro”. Segundo a autora, a filantropia confunde-se com a solidariedade, porque se baseia em sentimentos de amor à humanidade, gestos voluntaristas e na preocupação com o bem-estar público. “No sentido mais restrito, constitui-se no sentimento, na preocupação do favorecido com o outro que nada tem” (MESTRINER, 2001, p. 14).

Já a benemerência pode ser praticada na forma de esmola, auxílio, asilos, orfanatos e abrigos, entre outros. Associa-se ao sentido de caridade. A diferença entre a filantropia e a benemerência parece ser o caráter racional, de acordo com as definições de Mestriner. “Enquanto a filantropia tem uma racionalidade que já chegou a conformar uma escola social positiva, a benemerência vai se constituir na ação do dom, da bondade, que se concretiza pela ajuda ao outro” (MESTRINER, 2001, p. 14).

Diferentemente, a assistência social, considerada como política pública de direito,

além de delimitar a ação a um campo, o social, institucionaliza uma prática, imprime uma racionalidade, constrói um conhecimento. Assim, ela compreende um conjunto de ações e atividades desenvolvidas nas áreas pública e privada, com o objetivo de suprir, sanar ou prevenir, por meio de métodos e técnicas próprias, deficiências e necessidades de indivíduos ou grupos quanto à sobrevivência, convivência e autonomia social (MESTRINER, 2001, p.16).

Onde a filantropia predomina não há base social e institucional para a efetivação do direito, enquanto princípio de cidadania e de justiça, e, por conseqüência, corrói-se a possibilidade de constituição de uma sociedade democrática, a qual tem como critério básico a participação cidadã. A participação subsidiada pela filantropia é a de subordinação e, conseqüentemente, (re)produz sujeitos reduzidos à sujeição, à subalternidade. Programas sociais que não estão consolidados como direito, como é o caso do PBF que não produz segurança, certeza e confiança na inclusão e na permanência do benefício, associa-se à filantropia.

Preocupada com os efeitos das ações filantrópicas para qualidade da esfera pública, Maria Célia Paoli entende que as ações de caráter filantrópico, públicas ou privadas, “rompem com a medida pública entre necessidades e direitos e, portanto, não criam seu outro pólo, o cidadão participativo que comparece no mundo para além da figura passiva do beneficiário, sombra de quem o beneficia” (PAOLI, 2002, p. 380).

Nesse sentido, a política de assistência social tem o desafio de instituir o direito em substituição às ações filantrópicas. O problema é saber como perseguir tal objetivo quando grande parte da execução das ações da assistência está destinada às entidades filantrópicas, que se vão convertendo em prestadoras de serviços ao poder público e que carregam consigo toda essa tradição do beneficiário e da beneficiária passivos, “sombras” das organizações assistenciais.

A filantropia e a disseminação desse modelo de intervenção na questão social, vincula-se a uma determinada concepção do Estado. A concepção de impotência ou incapacidade do Estado

para responder aos problemas sociais, muito presentes no Brasil, se, por um lado, reveste-se das qualidades de “consciência social”, por outro lado, serve perfeitamente aos objetivos de redução do Estado em vista dos ajustes das políticas neoliberais.

Estes dois fatores estão estreitamente ligados e interferem de forma significativa na reconfiguração da relação entre Estado e sociedade civil, afetando o desenho de políticas sociais que temos e a decorrente compreensão da sociedade e dos agentes políticos sobre os direitos sociais e as condições de acesso aos mesmos.

Para além das contradições no uso de expressões que configuram o universo discursivo da assistência social, por exemplo, quando conciliam a noção de “pedir” com a noção de “direito”, é perceptível que a defesa da assistência social como direito vem-se sedimentando no modo como se expressam as profissionais da área, assistentes sociais e outras trabalhadoras, tanto entre aquelas que são funcionárias do Município, quanto entre as que atuam em organizações conveniadas. O que ocorre, no entanto, é que as percepções dessas profissionais variam em grau.

No decorrer das entrevistas pedimos às profissionais da área que avaliassem o quanto é real falar da assistência social como direito. A semelhança das respostas aparece inicialmente na ênfase que as entrevistadas dão ao reconhecimento do significativo avanço obtido no terreno legal. A Constituição Federal de 1998 e a LOAS de 1993 aparecem claramente como conquista de elevada consideração. Em relação aos avanços mais recentes na assistência social, as falas das assistentes sociais avalizam os novos programas, como bem ilustram esses exemplos:

Eu acho que foi um grande avanço em partes, na medida em que aboliu a cesta básica. Isso é inegável. Entre cesta básica e [Programa] Bolsa Família, muito antes o [Programa] Bolsa Família...por quê? Cesta básica você não dava autonomia para família dizer o que ela ia fazer com aquele dinheiro. Vinha lá o arroz e o feijão, ninguém perguntava se ela queria aquele arroz naquele mês se ela não tinha ganhado de outra pessoa e não precisava do arroz. Então você dá autonomia pra essa pessoa fazer o que quiser com o dinheiro. Então porque, se a gente começa trabalhar a questão dela ter autonomia, como é que você vai entregar uma cesta básica. E, por outro lado, a cesta básica... eu não, mas eu ouço muitos relatos de profissionais mais velhos... que famílias ficavam gerações e gerações dependentes da cesta básica, passava do pai pro filho e ... na proposta do [Programa] Bolsa Família é pra se buscar uma mudança a longo prazo. Quando você coloca condicionalidade, você sabe que muitas crianças estão sendo mantidas no colégio porque a mãe não quer perder o [benefício do Programa] Bolsa Família. Você sabe que muitas mães estão fazendo o acompanhamento e estão fazendo a pesagem... o acompanhamento pré-natal, por conta do Bolsa Família. Então assim, a diferença é cabal, entre a cesta básica, o modelo antigo de assistência social e o novo modelo proposto. Sim. Mas a gente tem que ter muito cuidado para que isto não camufle quais são os verdadeiros direitos do cidadão, que é sim ter um trabalho, que é sim ter condições dignas de vida, e não precisar ficar dependendo de um benefício. Então assim, alguns grupos, algumas pessoas com quem eu trabalho, tem muito esta visão. Então eu

trabalhar autonomia, querer trabalhar desenvolvimento e isso e aquilo, porque a pessoa está passando fome. Então é uma urgência que você não pode negar. Você tem que correr em auxílio. Tem que ser feito alguma coisa. Mas não pode deixar de dizer, deixar de fazer com que eles pensem que isto é um paliativo, que o correto é ela ser qualificada, ela ter estudo adequado, é ela ter espaço no mercado profissional... (Flávia – trabalha em uma organização conveniada)

Eu acho que foi bem positivo, achei que foi uma melhora bem positiva, foi muito bom tá, a gente começou o atendimento com cesta básica só, então depois veio outros benefícios, que as pessoas podem escolher o que pode comprar no mercado, não vem a cesta pronta já, com aquilo que foi escolhido não por eles, mas por pessoas que compraram. E eles têm o direito de comprar até uma coisa diferente, que ele nunca coma...tá comprando lá. E eu acho que foi um avanço, assim, em termos de benefícios e também em termos de espaço físico (Vera – trabalha no CRAS).

Flávia e Vera colocam destaque na mudança de modelo da assistência social, mudança que se caracteriza com a substituição da cesta básica pela transferência condicionada de renda. Ao receber um benefício em dinheiro há indubitavelmente um ganho de autonomia por parte das pessoas beneficiadas. Algumas questões, no entanto, não são tão lineares quanto elas supõem.

Entre o recebimento de um benefício em dinheiro e a autonomia para seu uso não há uma relação necessária, antes, pode ser também um terreno de conflitos. O modo como se emprega o dinheiro recebido não é plenamente livre, uma vez que as assistentes sociais orientam seu uso e, principalmente, organizam um tipo de vigilância sobre sua aplicação. As responsáveis pela execução dos programas de transferência condicionada de renda orientam as mulheres para o que consideram “bom uso do dinheiro”. As orientações gerais são: a) usá-lo preferencialmente para alimentação; b) usá-lo para aquisição de itens que atendam às necessidades do grupo familiar coletivamente e não como apropriação de interesse individual; e, c) não adquirir produtos considerados supérfluos. Iogurte e tintura para o cabelo são exemplos dados pelas assistentes sociais sobre os produtos supérfluos.

Para o caso dos benefícios transferidos pelo governo federal geralmente a ação das assistentes sociais fica mais circunscrita à orientação e a eventuais casos de supervisão, mas mesmo essa supervisão pode ser considerada uma vigilância. No que tange aos benefícios municipais o controle é mais rigoroso, sobretudo com o cupom de alimentos que possibilita a fiscalização de cada caso. Os cupons são utilizados em estabelecimentos comerciais conveniados com o Município. Estes estabelecimentos encaminham cópia do cupom fiscal de compra correspondente a cada cupom de alimentos ao setor de controle do Município. Esse setor confere cada caso para averiguar possíveis “abusos” no uso do recurso. Ocorrem situações em que casos

considerados abusivos, quando identificados, são relatados nas reuniões em vários grupos como um método pedagógico no qual guardam sob sigilo o nome da pessoa envolvida. À semelhança dos ensinamentos de Èmile Durkheim (1991), a punição tem uma função social educativa, portanto, deve tornar-se de conhecimento geral. Mesmo que não se revele quem é a pessoa envolvida, dá-se uma comprovação de que a fiscalização está sendo exercida e é eficiente.

Por outro lado, existem por parte das assistentes sociais, a exemplo de Flávia, expectativas