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AS INFLUÊNCIAS RELIGIOSAS: OBSTÁCULOS PARA A CIDADANIA DAS

CAPÍTULO 1 – CRÍTICA FEMINISTA PARA A ANÁLISE SOCIOLÓGICA

1.3 AS INFLUÊNCIAS RELIGIOSAS: OBSTÁCULOS PARA A CIDADANIA DAS

A relação dos movimentos de mulheres com a religião, e com a Igreja Católica em particular, é marcada com tensões e ambigüidades. Para delinearmos melhor esta relação é oportuno que utilizemos a distinção entre movimentos populares de mulheres, ou movimentos sociais com participação de mulheres, e movimentos feministas. Apesar da existência de variações, pode-se dizer que o feminismo, diferentemente de outros movimentos de mulheres, tem “como objetivo central a transformação da situação da mulher na sociedade, de forma a superar a desigualdade presente nas relações entre homens e mulheres” (FARAH, 2004, p. 51). É este foco na “transformação da situação da mulher” que demarca os conflitos entre o feminismo e o catolicismo.

As abordagens cristãs tradicionais historicamente justificaram e reforçaram a família patriarcal, as desigualdades de gênero, a submissão feminina e, muitas vezes, a própria demonização da mulher, aquela que é a responsável pelo pecado original e pela expulsão do homem do paraíso. A mulher é vista nesta tradição como a encarnação do pecado. Sua imagem varia entre a representação pecaminosa de Eva e a representação santificada, e submissa, de Virgem Maria (MURARO, 2000). Como afirma Fabíola Rohden (1997), o peso da Igreja para a exclusão da mulher de certas esferas remonta ao início da era cristã.

É ilustrativo, neste caso, as citações bíblicas de Santo Agostinho e São Paulo. Segundo Santo Agostinho, “a mulher é um animal que não é firme, nem estável, odiável, nutridor de maldade... Ela é a fonte de todas as discussões, querelas e injustiças”. Já São Paulo nos dizia,

Que as mulheres sejam submissas a seu marido, como ao Senhor; com efeito, o marido é chefe de sua mulher, como Cristo é chefe da Igreja, ele, o Salvador do corpo. Ora, a Igreja se submete a Cristo; as mulheres devem, portanto, e da mesma maneira, submeter- se, em tudo, a seus maridos.

Essas orientações religiosas ainda exercem atualmente, de modo notório, forte influência entre os fiéis, incluindo-se as mulheres. Em grupos de discussão realizados durante a pesquisa em Londrina com mulheres atendidas pela assistência social, observamos que confrontadas com afirmações marcadas por estereótipos ou preconceitos contra as mulheres, quando formuladas por filósofos, médicos, advogados e outros, elas reagiam com indignação. Quando confrontadas com passagens bíblicas, como as de Santo Agostinho e São Paulo, elas tendiam à tolerância, buscavam justificativas ou ponderações, especialmente com relação a São Paulo.

Se a tolerância a orientações religiosas desta natureza é algo que se faz presente nos dias atuais e, se podemos identificar as influências da Igreja, dos padres ou de seus fiéis nas ações estatais, então devemos interpelar sobre a importância dessa influência na normatização dos papéis atribuídos a homens e mulheres, bem como sobre o diálogo entre Igreja e feminismo.

Questões sobre a família e os direitos sexuais e reprodutivos, por exemplo, são temas que opõem Igreja Católica e movimentos feministas, desde a origem destes até os dias atuais. No entanto, é no campo desses mesmos temas que recentemente registra-se uma aproximação entre feministas e católicas, com o surgimento de uma Teologia Feminista católica. Note-se, porém, que se trata de uma aproximação da parte das teólogas católicas, o que não significa uma mudança na hierarquia institucional da Igreja.

Ainda de acordo com Fabíola Rohden (1997, p. 55 e 60), essa aproximação caracteriza escolhas da parte das teólogas por “um determinado tipo de feminismo”. Trata-se da eleição pela corrente feminista que ficou conhecida como “feminismo da diferença” e que se destaca justamente pela valorização da mulher a partir da especificidade feminina. Esse tipo de feminismo possibilita às teólogas uma aproximação da mulher com a natureza, com a vida e com Deus.

Essa corrente do feminismo está em franca contradição com a abordagem por nós adotada, orientada pela defesa de radicalização da democracia e pela rejeição das identidades essenciais e do binarismo. Ao privilegiar “a singularidade feminina”, essa abordagem cede espaço para concepções conservadoras sobre as diferenças sexuais, cristalizando as posições

sociais de homens e mulheres. Tem a contribuição de “valorizar a mulher”, mas isto não implica em mudanças sociais nas relações de gênero, dado que tende a valorizar os papéis femininos tradicionais, como a associação entre mulher e esfera reprodutiva ou mulher e maternidade. Essa noção, por exemplo, resulta no que Nancy Fraser (2002) denomina “reconhecimento equivocado”.

Em um possível cenário no qual o “elogio da diferença” ganhe predominância, a efetivação da agenda de gênero, tal como a entendemos aqui – com vistas à redistribuição de poder, de autoridade e de recursos entre homens e mulheres, redefinindo-se desse modo as relações de gênero –, é difícil de ser implementada. Como alerta Chantal Mouffe já destacada anteriormente, nem sempre as diferenças são positivas. Isso coloca limites à apologia das diferenças, visto que estas podem reforçar posições de subordinação (MOUFFE, 2003). Por isso, de acordo com Nancy Fraser (2001, 2002, 2007), consideramos que um projeto feminista contra as formas de injustiça de gênero deve orientar-se pelo reconhecimento – e não pela diferença ou identidade – em combinação com a redistribuição, conforme desenvolveremos ao longo deste trabalho.

O processo de aproximação do catolicismo com um certo tipo de feminismo e a constituição desse campo denominado Teologia Feminista, são uma influência da Teologia da Libertação, de forma que a primeira geralmente apresenta-se como um ramo da segunda. A grande participação das mulheres no trabalho pastoral também foi determinante deste aspecto.

A Teologia da Libertação foi uma fonte que alimentou significativa parcela dos movimentos populares de mulheres, antes ainda do surgimento da Teologia Feminista ou Teologia da Mulher, por meio das CEBs e do trabalho pastoral. A retomada dos movimentos de mulheres, a partir de década de 70, contou com grande contribuição desse setor da Igreja Católica possibilitando ampla participação das mulheres nas CEBs e nas organizações próprias das mulheres, como, por exemplo, os clubes de mães (CHIRIAC e PADILHA, 1979; BARROSO, 1982 e SADER, 1988). Esta influência caracteriza também a história dos movimentos de mulheres em Londrina, conforme demonstra estudo sobre a trajetória dos movimentos de mulheres na cidade (MARIANO e GALVÃO, 2000).

No Brasil, essas organizações populares de base feminina representaram uma das principais faces do movimento de mulheres ao longo das décadas de 70 e 80. Sua importância como forma de organização das mulheres é polêmica na literatura, o que demonstra que esta é

uma realidade multifacetada, a depender das condicionantes de cada experiência. De qualquer forma, a presença do feminismo, com interlocutor dessas organizações de mulheres, tem um peso fundamental para o seu direcionamento político das mesmas quanto à problematização da questão de gênero.

As divergências quanto às experiências dos clubes de mães localizam-se no debate sobre a capacidade dessas organizações, atuando sob influência da Igreja Católica, ainda que progressista, contribuírem para a superação da condição de subordinação da mulher e politização das relações de gênero, ou, ao contrário, contribuírem para sua manutenção. Nas palavras de Elizabeth Jelin (1994, p.137), “essa saída pública a partir da dor privada transforma as mães em mulheres conscientes de suas reivindicações de gênero?, as predispõe a lutar por essas novas reivindicações?”

O grande risco dessas experiências é o reforço das tarefas reprodutivas como obrigações femininas. As tarefas reprodutivas – o cuidado com o outro – são privadas em dois sentidos. Seja no sentido de que são realizadas na esfera doméstica, seja no sentido de que são realizadas por instituições de assistência social privada, por meio das organizações da sociedade civil ou, de modo mais amplo, das organizações do terceiro setor. Nos dois sentidos são as mulheres, majoritariamente, as que executam as tarefas. Esta constatação coloca importantes questões para pensar sobre gênero e políticas públicas.

Portanto, pensar na reprodução social como tema de políticas públicas lança alguns desafios para os movimentos de mulheres e põe em cena inúmeros elementos para a realização de uma investigação sociológica. Um primeiro fator a se considerar diz respeito ao protagonismo pela reivindicação por políticas públicas com perspectiva de gênero. Ao longo da década de 90, como destaca Sonia Alvarez (2000a), houve uma multiplicação dos espaços e lugares de atuação das feministas e de circulação de seus discursos, assim como a absorção dos elementos dos discursos e agendas feministas por parte de outras instituições e organizações da sociedade civil – incluindo-se outras formas de movimentos de mulheres –, da sociedade política, do Estado e das organizações internacionais.

Embora o processo de difusão dos discursos feministas seja notório em muitos contextos, é fato que a reivindicação por políticas públicas com perspectiva de gênero é um tema de preocupação dos grupos feministas e tem menor apelo entre os movimentos populares de mulheres, sobretudo aqueles que ainda atuam sob influência religiosa. Entre estes movimentos a

tendência mais comum é a reivindicação por bens de consumo coletivo, diretamente relacionados à cotidianidade da população em questão, apresentando um caráter mais emergencial e pontual. Sendo assim, a presença do feminismo é um fator fundamental para a implantação de políticas que possam contemplar a agenda de gênero.

Ainda quanto a este fator, é importante notar que o processo de descentralização das políticas públicas joga mais peso na importância dos municípios e nas organizações de base local. Como os grupos feministas geralmente se concentram nos grandes centros urbanos, a tendência é que nas cidades de pequeno e médio porte, como é o caso de Londrina, o protagonismo dos movimentos de mulheres seja exercido pelos movimentos populares de mulheres e organizações de base feminina, tais como as associações de mulheres, herdeiras da tradição dos clubes de mães. Entre essas organizações a tendência é que haja maior influência da religião, com destaque para a Igreja Católica e as Igrejas Evangélicas. Havendo esta influência, o diálogo com o feminismo e a absorção dos elementos dos discursos e das agendas feministas passam a ser mediados também por valores e fundamentos morais religiosos. Em um cenário com esta característica, a adoção da agenda de gênero tende a apresentar significativas traduções, no sentido empregado por Sonia Alvarez (2000b).

Ao tratar da cidadania das mulheres na política de assistência social devemos ter em consideração também a forte influência religiosa, especialmente da Igreja Católica, junto a essa área de atuação, bem como sua presença aguda entre as profissionais do serviço social.

Os encontros e debates promovidos pelos movimentos de mulheres para avaliar os possíveis avanços no campo das políticas públicas, especialmente a partir de Beijing/95, têm sido consensuais quanto à importância da existência de pressões políticas feministas externas aos governos para que estes absorvam as demandas das mulheres e para fazer frente às ações de grupos contrários às concepções feministas. Estes grupos organizam-se dentro e fora do Estado (BLAY, 1999). Em muitas situações esta oposição às concepções feministas é exercida por membros da Igreja Católica, especialmente quando a política ou projeto em questão atinge de alguma forma a instituição “família”, considerada como “núcleo sagrado”;

A própria noção de família é um campo em disputa. Considerando-se que a atual política nacional de assistência social define como diretriz a “matricialidade familiar”, ou centralidade na família, o que significaria colocar o foco da política na família e, tomando-se esta como unidade de referência, identificar o sentido que é atribuído à família é de importância capital para os

questionamentos sobre gênero e políticas públicas, entendendo-se que tal sentido é resultado de disputas políticas e produzem efeitos para a cidadania das mulheres.

CAPÍTULO 2 – CIDADANIA SEXUADA E MEDIADA NA PROTEÇÃO SOCIAL