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CAPÍTULO 2 – CIDADANIA SEXUADA E MEDIADA NA PROTEÇÃO SOCIAL

2.2 O DIRIETO NA ERA DA FOCALIZAÇÃO E DAS CONDICIONALIDADES

2.2.2 Condicionalidade: o direito alienado

Para as profissionais da assistência social cidadania significa ter direitos e deveres. Este é um princípio que embasa a PNAS e está presente também no PBF. Este princípio abre o espaço necessário para que se cobre das famílias participantes do PBF, especialmente das mulheres, alguns “compromissos” e “responsabilidades”. Assim nos diz a publicação do MDS intitulada Bolsa Família: agenda de compromissos da família:

As famílias que entram no Programa assumem alguns compromissos com a saúde e a educação de todos os seus membros. Principalmente de suas crianças, adolescentes e mulheres grávidas. Cumprir esses compromissos faz parte das regras para permanecer no Programa. Além disso, é preciso estar atento a chances de melhoria para todos (MDS, 2004, p. 17).

Direitos e deveres são idéias que se intercambiam na execução dos programas federais e municipais de assistência social, como na fala de uma assistente social ao dizer que “você tem o direito de entrar, de ser acolhido, de ser atendido, de ser recebido... mas você tem o direito também de aguardar, porque existem [muitas pessoas] ... você tem que aguardar um tempo pra você poder exercer esse direito”. Então, por vezes se faz uso da expressão direito para mascarar a idéia de dever e de restrições de acesso ao direito. Essa é a mesma lógica que impera com a condicionalidade e com ela vislumbra-se uma concepção de indivíduo que lhe atribui responsabilidades. A incorporação do conceito de vulnerabilidade ajuda-nos a melhor compreender as questões subjacentes desta discussão.

Vulnerabilidade tem-se apresentado como um conceito de largo uso na política de assistência social, conforme se constata em leituras dos diferentes documentos elaborados pelo MDS. Por exemplo, de acordo com as Orientações técnicas para o Centro de Referência de Assistência Social (MDS, 2006a) e as Orientações para o acompanhamento das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (MDS, 2006c), a proteção social básica, modalidade prioritária de atendimento da assistência social, define-se com o objetivo de oferecer serviços e benefícios às populações em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, com vistas à superação dessa situação.

Os documentos exemplificam como a noção de vulnerabilidade permeia as orientações da política de assistência social, porém sua definição fica apenas implícita. Este é um conceito que vem sendo empregado sobretudo por agências financiadoras internacionais e tem como objetivo

substituir o conceito de exclusão e dar maior complexidade ao conceito de pobreza, entendendo-o como estático e limitado à medição da renda. De acordo com Mary Garcia Castro e Miriam Abramovay (2002, p. 145) , “parte-se do conceito corrente de debilidades, ou fragilidades, para elaborações que fogem do sentido passivo que sugere tal uso”.

Implícita está neste conceito a preocupação em refutar teorias sociais que defendem a determinação das estruturas e das condições objetivas de vida sobre o futuro dos indivíduos. Retoma-se com o conceito de vulnerabilidade a clássica questão posta pela Sociologia sobre a relação entre estrutura e ação para explicar as condições de vida vigentes e as possibilidades de mudanças sociais.

De certo modo, o conceito de vulnerabilidade, ao lançar mão de fatores relacionados, por exemplo, à subjetividade e ao indivíduo, coloca maior acento sobre a ação, isto é, orienta-se pela compreensão do indivíduo como agente social. De acordo com a discussão tecida por Mary Garcia Castro e Mirian Abramovay, podemos inferir que vulnerabilidade ancora-se em teorias sociais que defendem não uma oposição, mas uma articulação entre estrutura e ação, de modo a remover a passividade dos indivíduos presente nas teorias estruturalistas e igualmente o voluntarismo por vezes presente nas teorias da ação. As tentativas de articular estrutura e ação podem ser encontradas, por exemplo, em estudos de Anthony Giddens, Pierre Bourdieu e Norbert Elias.

Ainda em conformidade com Mary Garcia Castro e Miriam Abramovay (2002, p. 146), o conceito de vulnerabilidade é empregado por vários autores para colocar ênfase na possibilidade de que os atores e atrizes possam acionar recursos e potencialidades para “enfrentar situações socialmente negativas”. Esta seria uma “vulnerabilidade positiva” que abre a possibilidade de criar formas de resistências às “vulnerabilidades negativas”, aquelas que apresentam riscos e obstáculos. As autoras tentam uma articulação do conceito de vulnerabilidade positiva com conceitos de Pierre Bourdieu.

Todavia, para fazer jus à teoria de Pierre Bourdieu (2007) e não atribuir demasiado peso à ação do agente social, seria oportuno arrolar seu conceito de habitus que permite pôr fim à antinomia indivíduo/sociedade na Sociologia. Segundo o autor, o habitus refere-se à incorporação da “condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe”. Combina, desse modo, objetivação e subjetivação.

De acordo com a abordagem de Pierre Bourdieu, esses agentes situados em condições homogêneas, entretanto, são também produtores de tais condições. Contudo, essa inter-relação entre indivíduo e sociedade, ou entre estrutura e ação, é difícil de ser mantida na operacionalização de serviços e programas assistenciais. O pensamento dicotômico tem uma adaptação mais facilitada nesse terreno.

As profissionais da assistência social incorporaram as noções de “vulnerabilidade negativa” e “vulnerabilidade positiva”, por isso a ênfase que aparece algumas vezes sobre a “conscientização” da população atendida. Assim, ao enfocar a “vulnerabilidade positiva”, ou seja, a possibilidade de superar as condições que geram debilidades, apesar dos limites e dos constrangimentos impostos pelas condições sociais, desemboca-se na atribuição de responsabilidades ao indivíduo. Neste momento, a sutileza teórica que articula estrutura e ação perde-se e é substituída tão somente pela ação individual. Na melhor das hipóteses, para evitar acusações por uma perspectiva centrada no indivíduo que o responsabiliza e o culpa, amplia-se a dimensão do indivíduo para a família e a comunidade. Família e comunidade desempenham, no discurso da assistência social, a função de mascarar a privatização da questão social.

Com o intuito de promover a superação de condições desfavoráveis, as assistentes sociais falam em suas palestras dirigidas às mulheres usuárias sobre a importância da família buscar meios de adquirir autonomia e desligar-se dos benefícios assistenciais, pois estes são, por definição, provisórios. As mulheres participantes dos programas põem-se de acordo com o princípio segundo o qual a “família tem que fazer a sua parte”, o que inclui o cumprimento das condicionalidades e a busca por trabalho.

A privatização da questão social e a difusão do conceito de vulnerabilidade ocorrem, portanto, na esteira de um processo de transformação nas relações de trabalho e de desintegração da proteção social oferecida pelo Estado. Esses processos estendem-se mundialmente com o avanço do domínio capitalista sob influências neoliberais.

Diante desse contexto, os indivíduos são lançados à sua própria sorte e agora depende deles o seu destino. Os indivíduos são transformados, segundo expressão de Ulrich Beck (2003), em “auto-empresários”, no sentido de que são os únicos responsáveis por seu destino. Como bem esclarece Zygmunt Bauman a respeito da privatização da questão social, a privatização não diz respeito tão somente aos “bens pessoais”, mas, principalmente, à redução das responsabilidades públicas para com a proteção dos indivíduos. Esta responsabilidade é descarregada sobre os

indivíduos privados. Ao recorrer a uma famosa afirmação de Margaret Thatcher, o autor lembra o imperativo segundo o qual “não existe essa coisa chamada sociedade” (BAUMAN, 2000, 75).

O contexto analisado por Zygmunt Bauman adquire diferentes intensidades nos vários países, a depender de sua estrutura econômica e de seu sistema público de proteção social. Uma ponderação deve ser feita ao tratarmos da privatização da questão social para a realidade brasileira. O histórico da proteção social, neste país, oferece-nos embasamento para usarmos a tipificação de que a questão social, a rigor, sempre foi privada, envolvendo redes familiares de solidariedade e obrigações e serviços de entidades beneficentes. O caráter público da questão social é algo que jamais se realizou plenamente no Brasil. Desse modo, a idéia de privatização ou “reprivatização” da questão social, de acordo com o seu uso por muitas/os autoras/es, deve ser relativizada, quando o objeto de análise é o caso brasileiro.

O que caracteriza esse contexto nacional e o diferencia dos muitos países europeus é a entrada em uma onda neoliberal, antes mesmo de se terem consolidado as garantias de direitos sociais sob responsabilidade pública e estatal. As idéias de cidadania passam, então, por revisões que antecedem sua efetivação e vão-se articulando com novas categorias, ou linguagens, a exemplo das vulnerabilidades e das condicionalidades.

A ênfase dada às vulnerabilidades positivas, o desejo de superação das condições desfavoráveis com base no esforço das próprias usuárias e usuários da assistência social, com sua conseqüente atribuição de responsabilidades aos indivíduos, conduz à defesa intransigente de uma determinada concepção de cidadania. Coerentes com esta perspectiva, as profissionais da assistência social, notadamente as assistentes sociais, sempre tratam da cidadania como a combinação de direitos e deveres, pois “todo direito implica num dever”, segundo elas. Esta concepção de cidadania está mais próxima do campo jurídico do que da filosofia política ou da Sociologia. Na mesma linha de abordagem, uma funcionária defende:

Então, eu tomo muito cuidado de colocar [a assistência social como um direito], porque todo direito implica em um dever correspondente. (...) Porque eles estão aí, é um direito... mas é como eu digo: você tem o direito de entrar, de ser acolhido, de ser atendido, de ser recebido... mas você tem o direito também de aguardar, porque existem (...) ... você tem que aguardar um tempo pra você poder exercer esse direito. E, como é um direito, ele tem deveres, e um dos deveres que foi colocado pras pessoas, é o compromisso de participar, é o compromisso de você se esforçar, é o compromisso de você fazer sua parte (Janaína – trabalha no CRAS).

Esse modo de pensar a cidadania e o modo de conceber o direito, sempre com a contrapartida do dever, sacrificam ainda mais a população beneficiária da assistência social levando-nos a considerar que seus deveres lhes são sempre cobrados, enquanto o direito é, na melhor das hipóteses, uma virtualidade, ou seja, algo que existe tão somente enquanto potencialidade. Entretanto, a política de assistência social vale-se dessa abordagem para cobrar o compromisso dessas pessoas que devem “fazer a sua parte”, quase que alimentando uma teoria voluntarista da ação. É essa mesma abordagem, portanto, que subsidia o estabelecimento das condicionalidades e a cobrança de seu cumprimento.

A respeito das condicionalidades, Simon Schwartzman (2006, p. 17) considera que, além das dúvidas sobre a efetivação das condicionalidades, não há razões para acreditar que “políticas que busquem alterar o comportamento quotidiano das pessoas possam ser dirigidas e comandadas a partir do governo federal, em uma relação direta com as famílias”.

Mais recentemente o próprio MDS tem divulgado algumas pesquisas sobre o cumprimento das condicionalidades exigidas pelo PBF e seus efeitos para as famílias atendidas (MDS, 2006d). Em termos gerais, o que se tem diagnosticado é, de um lado, uma excelente eficácia na seleção dos beneficiários do PBF e, de outro, são sérias dúvidas sobre os efeitos das condicionalidades. Fábio Veras Soares, Rafael Perez Ribas e Rafael Guerreiro Osório (2007), em trabalho de Centro Internacional da Pobreza, formulam as principais conclusões a esse respeito. Quanto à alimentação, os autores avaliam que o PBF não provocou alterações significativas no nível de consumo, mas alterou seu perfil de gasto, com mais consumo de alimentos, vestuário infantil e material escolar. Em relação à educação, a pesquisa revela que houve um aumento da freqüência à escola e redução da evasão. No entanto, houve aumento da repetência. Para os autores, tais resultados confirmam a tese de que a quebra do ciclo intergeracional de transmissão da pobreza não pode ocorrer com intervenções que se concentram apenas “do lado da demanda”. É preciso, igualmente, intervir na qualidade dos serviços, políticas e oportunidades ofertados a essa população (SOARES, RIBAS e OSÓRIO, 2007, p. 9).

De acordo com o estudo de caso em Londrina, as condicionalidades, ou compromissos exigidos das famílias, podem, ainda, assumir um caráter capaz de ofuscar a relação entre a política e as/os usuárias/os. Além das obrigações relacionadas à educação e à saúde, inclui-se a “obrigação do beneficiário” (...) de “participar assiduamente das atividades propostas pelo

programa: reuniões e outros encaminhamentos que se fizerem necessários”14. Usando um artifício

discursivo, esta obrigação é também apresentada como um “direito”, constante do Termo de Adesão e Compromisso assinado pela pessoa responsável pelo benefício, diga-se, pela mulher, que deste modo passa a acumular mais responsabilidades em favor do grupo familiar.

A expressão “obrigação” vem sendo aos poucos varrida da linguagem da assistência social no decorrer dos últimos anos, especialmente nos trabalhos realizados em grupos. Assim, nessas ocasiões as assistentes sociais dizem para as usuárias que “é importante”, “é um compromisso”, a participação delas nas reuniões para as quais são convocadas. Na seqüência advertem que não havendo este compromisso elas estarão sujeitas ao bloqueio do benefício. Efetivamente a advertência da assistente social soa como ameaça para a maioria das mulheres usuárias e expressa uma alienação do direito aos benefícios assistenciais.