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3. COMPOSIÇÕES NO TRAJETO: Cores e Texturas

4.3. FOTOGRAFIA NA CIDADE: Olhares em movimento

4.3.2. A cidade como potência: entremeios entre ONG e Escola

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atravessam a cidade para chegar à ONG. Participam de espaços historicamente institucionalizados, que enquadram em modos de ser, vestir, comportar a infância e a juventude. Mas aproveitam os interstícios, os entremeios para problematizar sua condição de vida e a vida na/da própria cidade. Criam, inventam outros mecanismos de

“sobrevivência, de luta e resistem teimosamente às exclusões e

destruições de que são objetos diariamente (COIMBRA, 2001)

Os jovens se constituem em meio a territórios múltiplos, marcados pela diversidade, e envolvem-se em diferentes redes sociais para além dos espaços educativos historicamente institucionalizados. Encontram entremeios, fissuras e possibilidades de outros devires no contexto urbano.

Escola e ONG, resguardadas as diferenças e especificidades, ocupam-se com a disciplinarização da infância e juventude, com práticas higienistas e moralizantes. Mas também tornam possíveis espaços para encontros outros e inovações. Os muros escolares e assistenciais deixam brechas aproveitadas por esses jovens nos trajetos percorridos e criados diariamente.

Ao acompanhar o trajeto até a escola com Estela e Michele, observei que o grupo de jovens circulava facilmente de um ônibus para outro, de um terminal a outro com alegria, divertindo-se. E, ao perguntar para Estela como era sua rotina, se era cansativa, ela contou: “A gente acorda às 6 h e às 06h20min pega o ônibus. Às vezes enjoa, mas a gente vai se divertindo, brincando, a gente vai assim”, disse Estela sorrindo e movimentando as mãos, como se dissesse “assim, desse jeito que tu tá vendo”, considerando que fazíamos parte da mesma situação extraverbal e do mesmo horizonte espacial.

As possibilidades de linhas de fuga cunhadas pelos jovens no trajeto no espaço urbano, se contrapõem aos discursos monológicos, às práticas determinantes e ganham tonalidades diversas, refazem sentidos sobre si, sobre seus amigos, sobre as instituições educativas e sobre a própria organização social.

O trajeto permite a desinstitucionalização e a desterritorialização da condição juvenil. No trajeto, buscam novas experiências, constroem novos vínculos, abrem-se para a diferença, confrontam-se com os outros e consigo mesmos. Por isso cidade também é espaço de criação e vai se caracterizando como potência na constituição subjetiva destes jovens.

Observei no trajeto que Michele e Estela cumprimentavam as pessoas, falavam, mostravam pessoas que faziam parte da rotina, do

cotidiano. “E como vocês fazem esses amigos?” perguntei, enquanto caminhávamos de uma plataforma para outra no Terminal de transporte público para trocar de ônibus. Estela me respondeu: “Ah, às vezes eles pedem pra segurar nosso material, depois a gente pede pra eles também. Aí a gente vai conversando.”

Falávamos de alguns meninos que entravam no ônibus na região central da cidade, estudantes de uma escola técnica de ensino profissionalizante. Falávamos da possibilidade de criação de espaços heterogêneos na cidade. E presumidamente, falávamos dos afetos, paixões e amores presentes no trajeto. “Gosto quando entram os meninos do Senai39, a gente fica conversando.” (Estela). E continuava Michele: “a gente tem um monte de amigos, esses caras são bem gente boa”, e mostrou alguns trabalhadores da Secretaria Municipal de Obras que trabalhavam na rua do colégio e que avistamos de dentro do ônibus. Dizia ela: “Eles dizem pra gente não se preocupar, que só querem ser nossos amigos”.

Para além das ruas vistas como território de perigo, o bairro foi se impondo como espaço de bons encontros, de participação social.

Participação social como potência de ação, “capacidade de ser

afetado pelo outro, num processo de possibilidades infinitas de

criação” e de entrelaçamento nos bons encontros (SAWAIA, 2002, p.

125).

Os jovens foram configurando novos usos para o espaço

urbano, “possibilidades de sistemas de trocas de outra escala, com

parceiros até então impensáveis, permitindo arranjos, iniciativas e

experiências de diferentes matizes.” (MAGNANI, 2002, p. 49)

Caminhando para a escola, já fora do ônibus, um homem vestido de branco, com botas brancas, aparentemente com quarenta e poucos anos de idade passou por nós. Michele e Estela disseram: “Oi, Hugo”. Bateram a mão com as mãos dele, cumprimentando-o, e explicaram: “Esse aí é o Hugo, o açougueiro lá perto de casa.”

A aventura de atravessar a cidade tinha sabores compartilhados, possibilidades não permitidas a estes jovens nos espaços institucionalizados. Para além da cristalização do olhar, do modo

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apático e nada interativo com que os transeuntes circulavam pela cidade, estas meninas exploram novidades, impuseram outro ritmo à vida.

No caminho buscam caminhos outros; inventam e reinventam-se como sujeitos. Fazem do existir uma prática constante de reinvenção de si e das próprias condições de vida, tecem novas articulações práticas para a vida social e afetiva. Os jovens buscam outras possibilidades para os lugares de passagem, fazem de um lugar transitório um espaço próprio. A cidade, do ponto de vista dos jovens, não é a mesma que o urbanista projeta, ou presente nos mapas, mas um lugar experimentado na caminhada. (COIMBRA, 2001).

A ONG nesse movimento foi se configurando apenas como pedaço junto a tantas manchas presentes no trajeto urbano. Por trajeto compreende-se os fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da cidade, os deslocamentos por regiões distantes e não contíguas. E pedaço entende-se como espaço intermediário entre o privado e o público, interação básica, rede de relações mais significativa e estável dentre outras relações formais. Manchas: por sua vez, são espaços institucionais e tradicionais, que ofertam determinados bens ou serviços, com um número maior e diversificado de pessoas. Manchas que trazem alguma possibilidade de encontro, mas carregam a marca do não pertencimento. (MAGNANI, 2002)

Os jovens constituem-se como sujeitos por meio de acontecimentos engendrados em processos de criação diversos em experiências singulares e coletivas de participação no espaço urbano. Reinventam a própria cidade e a si mesmos, como no conto “Pirlimpsique” de Guimarães Rosa (2005) que retrata a invencionice e a recriação da juventude diante do rigor dos ensaios na responsabilidade em apresentar uma peça teatral no colegial. Zé Boné e Gamboa transvivem no teatro, assim como Estela e Michele transvivem na cidade, e com isso emergem possibilidades criativas que não encontram nos espaços institucionalizados.

Na cidade, os jovens participam do trânsito, circulam em diversos espaços, aprendem e vivem experiências de modo peculiar, difuso e descentrado. Mas há, porém, nesse circular pela cidade, experiências ali engendradas e algumas delas são foco da continuidade desta discussão.