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3. COMPOSIÇÕES NO TRAJETO: Cores e Texturas

4.1. ESCOLA E ONG: dois contextos para muitas juventudes

4.1.3. Preocupação com a questão pedagógica

A preocupação constante da ONG com o rendimento escolar dos jovens e as atividades pedagógicas voltadas para a escolarização formal trouxeram à tona algumas questões.

Qual seria a função da ONG na relação com o ensino regular? Que aspectos os programas de contraturno escolar necessitam considerar na proposição e execução de suas atividades?

É importante que a ONG, na sua função educativa, promova aprendizagens para a vida que é vivida no aqui e agora do jovem e não para a vida futura e adulta. Em geral, as práticas educativas, com vistas à administração da juventude, congelam-na

sem se deter naquilo que nela há de enigmático e surpreendente. A isso podemos agregar o fato de, no interior desses discursos, as vozes adultas serem soberanas, já que são forjadas fora da relação e do dialogo com a criança. (SALGADO, 2009, p.19)

Quando a coordenadora disse: “eu acho que se perdeu a mão da educação... Hoje em dia ninguém mais tem orgulho de dizer ‘eu vou pra escola’”; trouxe à tona uma discussão fundamental para os programas de contraturno escolar. O que se perdeu?

Instituição e objetivos. Hoje pra mim é só dado estatístico. Todas as crianças no Brasil estão na escola. Mas qual é a qualidade que estas crianças recebem? Ninguém faz esses dados. Quantos efetivamente se alfabetizam? Ou só alfabetizados funcionais, pra ler o nome? (Coordenadora)

Esse discurso diz de uma escola centrada na função de transmissão de conhecimentos reduzidos a mínimos. E até onde a ONG deve ir com relação aos objetivos pedagógicos? Até onde assumir o desenvolvimento cognitivo destes jovens? O que é preciso reinventar? Sobre esse aspecto, não há consenso.

Alguns pensam educação integral como escola de tempo integral. Outros pensam como conquista de

qualidade social da educação. Outros, como proteção e desenvolvimento integral. Alguns a reivindicam a partir das agruras do baixo desempenho escolar de nossos alunos e apostam que mais tempo de escola aumenta a aprendizagem... Alguns outros a veem como complemento sócio educativo à escola, pela inserção de outros projetos, advindos da política de assistência social, cultura e esporte. (CARVALHO, 2006, p.7)

Diante desta dificuldade na delimitação dos propósitos dos programas de contraturno escolar e a diversidade de possibilidades encontradas nesse contexto, os discursos dos educadores participantes desta pesquisa também carregam essa diversidade na configuração do programa na ONG. A coordenadora afirma:

Apoio pedagógico eu não abro mão. Eu tenho crianças de 5ª série que estão sendo alfabetizadas aqui, agora. E aí não adianta eu ter outras coisas e não ter esse suporte pra eles. Porque eu acho que é... E uma coisa que eu não abro mão, assim ó... Eu sei que a gente não pode resgatar; voltar atrás. Mas a gente pode, como é que é assim... Refazer de uma outra forma com eles. Eles não sabem o que é direito e esquerdo, eles não sabem tempo, espaço, lá no nível 3 e 4! Tá entendendo? Coordenação motora.

Em seu discurso a presença de uma repetição da escola formal ao supervalorizar a dimensão cognitiva, enfatizando a transmissão de conhecimentos (PATTO, 1997), mas também, o desejo de que um tempo maior de estudo em um espaço diferenciado permitisse a abertura de oportunidades de aprendizagem, negadas de algum modo no contexto da escola formal. Neste sentido, menciona a coordenadora: “E aqueles que têm dificuldade de escrita eles pegam separados. Não é uma criança que é jogada ali e te vira, vai fazer”.

Por outro lado, aos olhos dos jovens, são justamente estas atividades de cunho mais diretamente pedagógico e com finalidades cognitivas que não gostam na ONG. Durante os encontros conjuntos, lembraram de algumas atividades de que participam ali e explicaram que

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são distribuídas no decorrer dos dias da semana: informática, dança, violão, mosaico, apoio pedagógico. E complementaram:

É chato ficar copiando do quadro. [...] Me esqueci o nome daquele negócio.. De ensino, pedagógico [...] É o apoio pedagógico. Tira isso e coloca outro no lugar. [...] Tipo a professora passa uma pergunta, a gente tem que fazer no caderno pra mostrar pra ela. Daí ela corrige, vê se tá certo, daí se não tiver... Ela passa no quadro e a gente copia. (Michele)

A preocupação da coordenadora da ONG é louvável, afinal, como as crianças passam parte significativa do tempo na ONG, ajudar nas tarefas escolares e contribuir para a efetiva aprendizagem de alguns saberes é um modo de ajudá-las a reverter suas trajetórias de fracasso escolar. Mas o que o discurso de Michele indica é a ineficácia do modo como esse apoio vem sendo realizado, pois ao invés de ajudá-las e incentivá-las ao estudo e apropriação de saberes fundamentais, como a leitura e a escrita, por exemplo, os afasta ainda mais dessas atividades.

Importante seria se o contraturno escolar se apoiasse nas demandas e interesses dos jovens, considerasse suas particularidades, potencialidades e valorizasse o seu protagonismo.

A ONG, como possibilidade de contraturno escolar, precisa reinventar-se de modo a caracterizar-se como campo de múltiplas aprendizagens, como campo privilegiado para variados saberes e tratar de questões éticas, estéticas e políticas.

Nos diversos encontros com os jovens, verifiquei se cada um podia escolher as atividades artísticas e pedagógicas. E assim me respondeu Kauê: “Se eu tô fazendo agora, eu tenho que fazer, mas se não é o meu dia de ir, aí não precisa”. Ou seja, a ONG permite que os jovens escolham um dia da semana que desejam não vir pra ONG, fazer trabalhos na escola ou simplesmente ficar em casa. E essa é a estratégia de resistência encontrada pelos jovens, conforme Kauê explica; escolhem não vir para a ONG no dia em que há alguma atividade que não gostam.

A educadora de musicalização também comenta sobre a resistência dos jovens em participar da oficina que é responsável e o modo como media essa questão:

No começo tinha muita resistência. Por quê? Quando você trabalha numa sala de aula é no meu caderninho, no meu trabalho. Quando você trabalha música ou com Artes, você tem que se expor, tem que falar, tem que passar pelo mico. Porque fazer música é mico, tudo que você estiver fazendo você vai ser visto. Então, isso pra eles era difícil. Eu encontrava essa resistência. Uns faziam, outros não queriam fazer. E se eu dissesse naquele momento “tá bom então não faz, faz se você quer,” aí eles não vão querer fazer, porque é mais legal ver do que fazer. Só que o acontecia: “não, vamos participar, vai ser importante, interessante” Sempre nessa ideia, sempre colocando isso.

Talvez o mais importante não seja o fato da atividade ser livre ou obrigatória, mas a forma como os adultos mediam as oficinas, o modo como seduzem para a participação e o quanto estão atentos e interessados em implementar atividades desejadas pelos jovens. Do contrário, o contraturno escolar acaba marcado pela cristalização, disciplinarização e pela institucionalização tão presentes no contexto da escolarização formal, conforme destacam Castro e Correa (2005).

A ONG acaba reafirmando saberes e fazeres escolares quando a escola já não é mais, nem nunca foi o único espaço de aprendizagem par os jovens. Por isso, é importante que a ONG valorize aprendizagens básicas que se deslocam da escola e a enriquecem; como as atividades artísticas, tecnológicas, esportivas, de consciência ambiental, entre outros.

Os jovens contemporâneos requerem para seu trânsito no exercício da cidadania, circular em diversos espaços de aprendizagem visando sua maior sociabilidade, o desenvolvimento da capacidade de estabelecer trocas e o exercício da tolerância na pluralidade. (ibidem, p. 11)

Mais do que “recuperar” os conteúdos escolares ou garantir a profissionalização dos jovens, as atividades desenvolvidas na ONG de contraturno escolar caracterizam-se por uma riqueza de possibilidades e podem oportunizar escolhas de trajetórias diversificadas às múltiplas juventudes.

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4.1.4 Perspectivas para uma educação integral: por outro tempo de