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3. COMPOSIÇÕES NO TRAJETO: Cores e Texturas

4.1. ESCOLA E ONG: dois contextos para muitas juventudes

4.2.2. Entre arte e artesanato

Ao analisar as atividades artísticas oferecidas na ONG aos jovens, as oficinas de Musicalização e de Mosaico foram se impondo como atividades artísticas significativas aos olhos dos jovens e com lugar definido na proposta da ONG.

A experiência de produzir ritmos musicais com copos de cozinha, sintonizados com violão e diversas vozes e transformar cacos de azulejo em obras de arte foi foco dos jovens em seus discursos.

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Ao analisar as imagens da conversa conjunta com o grupo de jovens da manhã observei que falar do mosaico foi um dos momentos em que o grupo mais participou, envolveu-se. Com as fotos dispostas na mesa e colocadas durante a conversa no centro da roda de cadeiras, aproximaram-se das fotografias e ao mesmo tempo dos colegas e da própria atividade proposta. Envolveram-se na análise das fotografias, que serviram de dispositivo de rememoração de experiências, de vivências afetivas.

Conversamos sobre o contato com esta linguagem artística e o processo de construção do mosaico. E assim contaram: “quebra a peça, depois desenha e aí cola as peças. Cola tenaz. É fácil fazer. É só desenhar o desenho e quebrar as peças e colar ali.”. “Eu fiz aquele do mural, o inteirão do canto”.

Ao comentarem que “nem sabiam que existia isso”, ao se referirem ao mosaico, os jovens revelaram tratar-se a oficina de mosaico, uma oportunidade importante oferecida a eles. E assim também outros discursos foram indicando a importância do acesso à atividade artística:

Antes tinha aula de violão aqui daí eu e o Miguel falamos pra professora se nós formos tocar em algum lugar, a gente quer ir tocar junto. E aproveitou pra nós. (Kauê)

O diálogo com Kauê indica o modo como ele e os colegas se apropriam do novo conhecimento, da linguagem aprendida e passam a socializá-la em outros espaços que circulam. Aprenderam a tocar violão e pediram para a professora convidá-los quando houvesse algum evento cultural.

Da experiência desses jovens com a música na ONG evidencia-se que não basta incluir no contraturno escolar, atividades culturais ou artísticas que os jovens não teriam acesso por outros meios, é preciso

“tocar, encantar as pessoas, fornecer-lhes ferramentas para que adquiram um novo repertorio cultural e se apropriem da cultura em um sentido largo, decifrando códigos e transformando suas vidas a partir de uma educação que não se aprende na escola.” (TURINO, 2006, p.114).

Ao continuar a discussão sobre os sentidos das atividades artísticas aos jovens, trago a foto produzida durante os ensaios na oficina de musicalização em 2009. A foto 11 foi produzida exatamente no momento em que movimentavam os copos. Na lateral esquerda há uma janela encoberta com a cortina branca e Michele com o copo nas mãos; os olhos atentos à professora que não aparece na imagem e o sorriso apertado entre os lábios ao perceber o equipamento fotográfico. Diego, no centro da foto, sorri diante do registro fotográfico de sua atividade, sem perder o ritmo da música. No fundo da foto é possível ver uma prateleira com as objetivações artísticas de mosaico produzidas pelos jovens.

Ao mostrar a foto para Michele no momento da conversa individual, ela permaneceu por um tempo quieta, observou a imagem, os detalhes. Perguntei se não chegava a cansar, considerando que observei que ensaiavam constantemente. Ela respondeu com a cabeça que não e continuou a olhar a foto. Falou com frases curtas: “Na primeira vez eu já peguei. [...] Agora a gente tá aprendendo outros ritmos”. E complementou contando com gestos como produziram os sons com o copo: “a gente ia virar. É bate assim. [na mesa] Daí ele ia virar [o Diego]. Quando bate, pega o copo de volta.”.

E assim foi contando da satisfação e da habilidade em desenvolver os ritmos com os copos, não indicando que houvesse dificuldades nesse processo de aprendizado. Mas num outro momento da conversa, reconheceu as dificuldades da atividade ao falar sobre esta outra foto 12, também produzida no mesmo dia da oficina de musicalização na ONG:

A gente já tava apoiado na mesa. A professora tava falando como tinha que cantar direito, o ritmo do copo, do violão. Tinha gente que cantava um pouco antes... Às vezes ela mandava tipo, alguém que não tava cansada. Tipo do Diego já tava cansado, daí Eu e comecei a tocar e ele ficou um pouco. Daí um pouco de cada vez descansava.

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Foto 11: Oficina de musicalização Fonte: Arquivo Pessoal de 2009

Foto 12: Jovens na oficina de musicalização Fonte: Arquivo Pessoal de 2009

Ao participar da oficina de musicalização, nesse dia em que produzi estas imagens fotográficas, observei que a oficina, ao ocupar-se de ensaio para a apresentação de final de ano da ONG, acabou se tornando mecânica, pouco motivadora para os participantes. Ensaiaram várias vezes a mesma música, sem entusiasmo, dispersos. A professora tentou, ao invés de tocar violão, regê-los, mas apresentavam estar cansados.

Essa observação depois reapareceu, quando acompanhei o trajeto com Kauê: “Ah! Só tem música que eu não gosto, só música infantil.” No que questionei: “Como, não gosta? Vocês não estão ouvindo música?” Ele e seus vizinhos conversavam sobre as músicas que ouviam no celular: “every body dance now!” E ele justificou: “Ah! Mas é outro tipo de música. Só a professora de Hip Hop toca as músicas que a gente gosta. Break, funk... Essas músicas que a gente gosta!”.

As conversas com os jovens indicam a importância de se ter o cuidado, na escolha das atividades artísticas oferecidas aos jovens no contraturno escolar, de considerar aquelas que vão ao encontro de seus interesses. Necessário criar espaços na ONG de diálogo e avaliação coletiva com os jovens sobre os projetos e as atividades ali desenvolvidas.

Afinal, como pode instituições educativas definir que atividades ou programas são mais importantes para os jovens, se não conhecem o contexto em que vivem e as relações que estabelecem com o entorno? No próximo capítulo abordo com maior profundidade algumas dessas relações e tantas outras vozes com que dialogam estes jovens, para além dos espaços institucionalizados.

Ao falarmos da oficina de mosaico, também o cansaço aparece como parte da atividade. Seria repetição, ato mecânico, desprovido de sentido? Disse Michele: “cansa ficar quebrando azulejo, colocar direitinho as pecinhas.”. Mas Estela tensiona, defendendo o mosaico como atividade criadora. Mesmo com uma postura mais diretiva do educador para ela, não se fecham as possibilidades de (re)criar nas atividades artísticas:

O mosaico pra mim não se torna igual não. Porque a gente faz qualquer coisa que a gente queira fazer. Só se a gente quer fazer igual. Mas só que daí o professor traz o lap top dele daí a gente escolhe, tem um monte de desenho, daí o professor faz o negocinho pra gente pintar... [...]

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Aí a gente inventa coisa. Como aqui podia ser outra coisa.

O Mosaico e a música foram se configurando como atividades que circulam entre a criação e a repetição, refletindo as intencionalidades cognitivas, pedagógicas e oportunizando vivências criadoras aos jovens. Há, portanto, uma tensão na execução dessas atividades: ao mesmo tempo em que existem queixas e desagrados com relação ao modo como as atividades artísticas são desenvolvidas, há uma valorização das possibilidades criativas ali encontradas.

O discurso do educador de mosaico auxilia nessa compreensão:

Aqui a gente não tá nem no artístico nem no artesanato, aqui a gente tá no intermediário. Trabalho artístico, às vezes. Trabalho artístico não necessariamente tem que ser uma figura, você pode fazer uma questão abstrata. Que nem tenho ali na revista, um rapaz de SP faz um trabalho muito interessante, mosaico. Ele molda formas, de concreto, formas até orgânicas, depois ele reveste com mosaico, com várias cores e coisas, esculturas, trabalho artístico. Nós não estamos nem no artesanato, nem no [artístico].

Discurso que apresenta uma importante tensão no ensino de artes: há que se ter o cuidado para não vulgarizar a atividade artística em contextos educativos, com práticas superficiais, banalização da cultura, nivelando por baixo o acesso aos bens culturais. O que obstrui a educação estética e torna a inclusão da atividade artística mera estratégia de controle e dominação social, quando o que se pretende é democratizar o acesso aos bens artísticos culturais.

Ou seja, o contato com a arte não garante o seu acesso! É importante que a inclusão da atividade artística forme jovens capazes de dialogar com as linguagens artísticas, com variados interlocutores - e não apenas espectadores - capazes de produzir significados e recriar o objeto artístico (OLIVEIRA, 2007).

Kauê comenta sobre a atividade de tocar violão acompanhado de seus três amigos da ONG:

Eu tinha que ficar olhando o Miguel. É que eu toco junto com o Miguel. Eu toco na mesma

velocidade que ele [outro menino], aí eu tinha que ficar olhando ele. Tem que ficar bem concentrado pra não perder o ritmo.

O discurso de Kauê revela a importância da sintonia com outro, a cumplicidade na produção de ritmos musicais, a construção conjunta de mosaicos. Dimensão alteritária, evidenciada na atividade estética e que destaca o importante lugar da arte no processo de constituição do sujeito em suas dimensões cognitiva, afetiva, estética, social.