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A cidade neoliberal das parcerias público-privadas

3 URBANISMO NEOLIBERAL

3.6. A cidade neoliberal das parcerias público-privadas

Enquanto ligada às forças produtivas, e sendo ela própria força produtiva, a cidade é a sede do econômico e de sua monstruosa potência. Nela, no curso da história (a sua), o valor de troca venceu lentamente o valor de uso; esta luta se inscreveu sobre as muralhas das cidades, sobre os edifícios, nas ruas; as cidades trazem seu vestígio, testemunham-na. Henri Lefebvre

No contexto da sociedade pós-fordista, de capitalismo global financeiro, cognitivo e imaterial, o capital assume sua forma mais dinâmica e flexível, o que se traduz no âmbito da produção do espaço urbano no chamado planejamento estratégico. Cabe assim, aprofundar a análise crítica e apreender certas categorias que caracterizam a cidade neoliberal, marcada por um modelo de gestão empresarial do espaço e do planejamento urbano.

Não é nenhuma novidade o fenômeno da transposição da lógica empresarial de gerenciamento para o planejamento e gestão das cidades, sustentada como uma exigência incontornável face às condições impostas para se alcançar competitividade no mundo globalizado. Desde a década de 1990, autores como David Harvey, Otília Arantes e Carlos Vainer situam o tema do empreendedorismo urbano no centro da questão urbana.

Dentro do paradigma do empreendedorismo urbano, as cidades são governadas como se fossem empresas, em permanente competição umas com as outras para atrair capitais e investimentos na economia global. Estando as cidades submetidas aos mesmos desafios colocados às empresas, caberia aos governos municipais adotarem um planejamento estratégico18 inspirado em

18 Sobre a caracterização do planejamento estratégico no contexto de realização dos

megaeventos esportivos no Brasil, a obra O Jogo Continua: Megaeventos Esportivos e Cidades, trouxe importantes contribuições ao debate: “Esse novo paradigma, também conhecido por planejamento estratégico, sugere a intervenção urbanística pontual, limitada no tempo e no espaço (os Grandes Projetos de Desenvolvimento Urbano), e se estrutura em aberta parceria com o capital privado, pela via do “empresariamento urbano” (HARVEY, 1996). Sob a égide desse novo “urbanismo de resultados”, o modelo de gestão e produção da cidade vem associado às “parcerias público-privadas”, que constituem novos arranjos econômicos e políticos, conferindo a determinados agentes econômicos centralidade na cena política urbana e redefinindo novas relações entre o capital e o Estado. (MASCARENHAS et. al., 2011, p.54)

86 conceitos e técnicas que são próprias do planejamento empresarial. Daí a pertinência do conceito de cidade-empresa para caracterizar esse padrão de “desenvolvimento” urbano sob a égide do neoliberalismo e da globalização financeira.

Assim, ver a cidade como empresa significa, essencialmente, concebê-la e instaurá-la como agente econômico que atua no contexto de um mercado e que encontra neste mercado a regra e o modelo do planejamento e execução de suas ações. Agir estrategicamente, empresarialmente significa, antes de mais nada, ter como horizonte o mercado, tomar decisões a partir das informações e expectativas geradas no e pelo mercado. (VAINER, 2012, p.86)

A produção do espaço urbano, dentro do planejamento estratégico, é sobretudo orientada pelos imperativos da eficiência, metas, resultados, autonomia local, vantagens econômicas, marketing de cidade, parceria público- privada etc. Este modelo de gestão, que sucedeu ao planejamento moderno racionalista, funcionalista e rígido, corresponde ao ditame neoliberal de fortalecimento do poder local em oposição à ação centralizada e normativa do Estado nacional. Nessa esteira, Harvey relacionou “a capacidade declinante do Estado-Nação de controlar os fluxos financeiros das empresas multinacionais” (HARVEY, 2006, p.168) com o fortalecimento do poder local, o que, a um só tempo, dilui a centralidade do Estado e permite a negociação direta entre o capital financeiro internacional e os governos locais.

Desse arranjo, decorre o papel central das parcerias público-privadas que sustentam esse novo empreendedorismo urbano, garantindo a oferta de infraestrutura e a assunção dos riscos dos investimentos pelo setor público. Como bem resume Harvey:

(...) a atividade da parceria público-privada é empreendedora, pois, na execução e no projeto, é especulativa e, portanto, sujeita a todos os obstáculos e riscos associados ao desenvolvimento especulativo, ao contrário do desenvolvimento racionalmente planejado e coordenado. Em muitos casos isso significou que o setor público assumiu o risco, e o setor privado ficou com os benefícios, ainda que haja exemplos onde isso não ocorreu (…). (HARVEY, 2006, p.173).

87 A parceria público-privada é, por assim dizer, a coluna vertebral do planejamento estratégico que, como disseram os próprios missionários do gerenciamento empresarial da cidade, este deve ser “pactuado entre os principais atores públicos e privados” (CASTELLS e BORJA, 1996, p.157). É a parceria do poder público com os agentes privados que irá resguardar o atendimento dos interesses do mercado na formulação do planejamento e na tomada de decisões que dizem respeito às intervenções estruturantes no espaço.

Por outro lado, a gestão empresarial da cidade, pactuada pelo setor público com os principais atores privados, precisa ser “aceita” pelo conjunto da população, o que também coloca a formulação de uma imagem positiva de cidade – city marketing – como imperativo de primeira ordem, não apenas no âmbito exterior (para a atração de investimentos), mas também para a construção de um consenso interno e formação do chamado “patriotismo cívico”, indispensável à “crença [coletiva] no futuro da urbe” (CASTELLS e BORJA, 1996, p.160). Como afirma Arantes:

E como o planejamento estratégico é antes de tudo um empreendimento de comunicação, compreende-se que tal âncora identitária recaia de preferência na grande quermesse da chamada animação cultural. (...) o que está assim em promoção é um produto inédito, a saber, a própria cidade, que não se vende como disse, se não se fizer acompanhar por uma adequada política de image-making. (ARANTES, 2012, p16- 17).

Em síntese, a cidade-empresa estrategicamente planejada, conforme os ditames do mercado, tem como pressuposto a autonomia e o fortalecimento do poder local que concebe e executa as intervenções espaciais em parceria fina com os agentes privados, capaz de gerar respostas competitivas frente à economia global e, ao mesmo tempo, buscar a aceitação passiva dos munícipes por meio de uma imagem positiva e forte de cidade. Não podia ser diferente, posto que toda grande empresa precisa ter uma boa marca. Em Belo Horizonte, o melhor exemplo desse apelo imagético que visa estimular o chamado “patriotismo cívico” é a peça publicitária amplamente difundida em

88 adesivos, camisas e nos mais diversos produtos e serviços sob a insígnia “eu amo BH radicalmente”.

A cidade-empresa precisa garantir as condições de infraestrutura e prestação de serviços, mas também as condições normativas e institucionais necessárias à realização célere, eficiente e rentável dos capitais imbricados na produção e/ou requalificação do espaço urbano. Dessa maneira, o dirigismo estatal e a normatização rígida da cidade, características do planejamento moderno racionalista e funcional, com usos e padrões construtivos bem definidos na legislação a partir do zoneamento, colocam-se como obstáculos ao modelo de gerenciamento empresarial do espaço urbano. Nas palavras de Vainer, “na empresa reina o pragmatismo, o realismo, o sentido prático; e a produtivização é a única lei” (VAINER, 2012, p.91), assim “descartemos o plano diretor e o zoneamento por sua rigidez e constrangimentos ao mercado” (VAINER, 2013, p.38).

Dessa crítica não decorre nenhum saudosismo ao planejamento estatal rígido e funcionalista, mas sim a constatação das mutações operadas no planejamento urbano nos marcos do neoliberalismo que expressam, em última instância, a impossibilidade do Estado, em simbiose com o capital, em responder à problemática urbana orientado pela efetividade da função social da cidade e pela garantia da gestão democrática. A produção da cidade é, de fato, na atualidade, “um grande negócio” (MARICATO, 1988), contudo nem o Estado-planejador de outrora, nem o Estado-capital promotor das parcerias público-privadas, são depositários de nossa confiança para qualquer mudança desse quadro.

De qualquer modo, cumpre observar que, dentro do planejamento estratégico, não há mais lei urbana que se sustente frente aos interesses econômicos dos parceiros privados envolvidos na produção da cidade. Tudo é passível de ser flexibilizado, excepcionado, ou mesmo violado (e depois compensado), sejam áreas ambientalmente protegidas, ou zonas destinadas apenas ao uso residencial, todas as regras urbanísticas podem ser transpostas, paradoxalmente, dentro da estrita legalidade – como na hipótese das operações urbanas consorciadas. Esse é o pano de fundo que subjaz à

89 chamada “cidade de exceção”, em que o excepcional é instituído como regra na produção do espaço urbano para assegurar flexibilidade e agilidade aos processos decisórios que afetem os interesses do capital, a despeito da normatização burocrático-institucional.

Nesse contexto, sem dúvida alguma, as operações urbanas consorciadas, modalidade de parceria público-privada aplicada ao planejamento urbano muito recorrente na atualidade, a exemplo da OUC Nova BH, são o instrumento de política urbana que melhor traduz o paradigma da cidade empresa e, consequentemente, o agravamento da segregação socioespacial urbana.