• Nenhum resultado encontrado

4 SOBRE O COMUM

4.1. Princípios do comum

O historiador marxista estadunidense Peter Linebaugh abre seu livro Stop, Thief! The commons, enclosures and resistence (2014) com um pequeno ensaio sobre alguns princípios do comum27 que ora serve como fonte de inspiração. Ele começa dizendo que “a solidariedade humana, tal como expressa no slogan um por todos e todos por um, é a fundação do comum”, mas ao mesmo tempo, Linebaugh entende que “o comum é anterior à vida humana”, o que não deixa de ser verdadeiro, vez que antes de surgir a espécie humana sobre a Terra, tudo estava à disposição, um comum planetário, até que os humanos passaram a exercer seu domínio “sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra” (Gênesis 1:26), primeiro para seu próprio mantimento, conforme o mandamento celestial dispunha, depois, com o surgimento da propriedade, para acumular e explorar, em detrimento do acesso comum aos recursos de que a Terra dispõe.

No ensaio em questão, Linebaugh diz que “o comum começa na família” e que é na cozinha onde “produção e reprodução se encontram, e onde as energias cotidianas entre gêneros e gerações são negociadas” (2014, p.13). Segundo ele, “os momentos de decisão no compartilhamento das tarefas, na distribuição do produto, na criação de desejo, e na manutenção da saúde se dão primeiro aí” (idem), na cozinha.

Interessante notar como as acampadas e ocupações de todo tipo, sempre começam de fato pela cozinha. Em Belo Horizonte, isso ficou bem

118 evidente na ocupação da Câmara Municipal e no movimento viaduto ocupado sob o viaduto Santa Tereza, ambas no contexto das jornadas de 2013, nas quais a cozinha foi o espaço produtivo por excelência, sem prejuízo dos demais: a primeira a ser organizada e a última a ser desfeita. A cozinha desempenha ainda o papel de aproximação com as pessoas, era através dela que apoiadores (as) se aproximavam da resistência, sentiam-se mais cúmplices, seja ao doar alimentos, seja ao partilhar a refeição comum. A cozinha também é um termômetro do nível de organização e força do movimento: se a cozinha ia mal, tudo ia mal, se ia bem, por sua vez, era um bom sinal quanto à capacidade de organização, distribuição de tarefas e do produto do trabalho coletivo, enfim, quanto à gestão do espaço comum. Em suma, como diria Natacha Rena, a cozinha produz o alimento, que alimenta a carne imanente dos corpos biopotentes.

Na experiência das Brigadas Populares, a qual, dentre outras frentes de trabalho, realiza e apoia ocupações de sem teto em Belo Horizonte e região metropolitana desde 2006, sempre nas ocupações organizadas o primeiro barracão erguido no imóvel ocupado foi destinado à cozinha coletiva, espaço comum de produção de afetos, subjetividades e alimentos. É na cozinha, por exemplo, que os homens têm oportunidade de abrir mão de privilégios ancorados no patriarcado e demonstrar uma postura pró-feminista. Por essas e outras razões, é a cozinha um espaço político, embrião e motor da possibilidade do comum. Nas ocupações de moradia, sempre lamento quando a cozinha coletiva é desfeita e cada família passa a cuidar da produção de alimentos dentro do seu ambiente privado. Indispensável construir e fazer perdurar espaços constituintes de produção comum no seio das resistências.

Linebaugh, no texto em questão, como não poderia ser diferente, também chama a atenção para o caráter histórico do comum:

(...) o comum é histórico, a vila comum da herança inglesa ou a comuna francesa do passado revolucionário são remanescentes desta história, lembrando-nos que apesar de períodos de destruição partes sobreviveram, embora frequentemente numa moda distorcida como nos sistemas de bem estar (LINEBAUGH, 2014, p.13, trad. livre).

119 Nesse sentido, o autor se esforça em toda sua obra para fazer este resgate histórico das resistências contra os cercamentos do comum, inclusive nos primórdios da era moderna, como no contexto da Carta da Floresta de 1217 (Charter of the Forest), expressão da luta em defesa dos bosques comunais ingleses. Linebaugh resgata a história das resistências e cercamentos do comum com explícito propósito de inflamar o movimento planetário de reivindicação dos bens comuns na atualidade. Busca assim “atiçar no passado a centelha da esperança”, pois reconhece, como Walter Benjamin consignou em suas teses sobre o conceito de história, que “o passado traz consigo um index secreto que o remete para a redenção” (BENJAMIN, 2013).

Pensando as resistências históricas do povo brasileiro, poderiam elas também serem resgatadas pelo prisma do comum? Seria o grito “essa terra tem dono!”, do guerreiro guarani Sepé Tiaraju contra o saqueio das terras indígenas pelos colonizadores europeus, a heroica resistência dos (as) conselheiristas da cidade de Canudos contra o poder central da nascente República ou a resistência por mais de um século do imbatível quilombo dos Palmares, lutas que podem ser historicamente apreendidas sob o registro do comum? Todos foram em certo sentido processos autogestionados constituintes de formas de vida e produção comum, em oposição à acumulação privada, os quais encontraram no Estado-nação um óbice mortal. Tal como hoje as lutas em defesa dos territórios indígenas.

“O comum é antitético ao capital” (2014, p.14, trad. livre), continua Peter Linebaugh, e aqueles que produzem o comum (commoners) são combativos, “ainda que o comum esteja fora da luta de classes” (idem). Se por um lado penso que o comum não se reduz à luta de classes, podendo se manifestar, por exemplo, na abertura às demandas que derivam das múltiplas singularidades, que por vezes são anteriores e/ou extravasam a luta de classes, como é o caso das lutas contra o patriarcado, o racismo e a homofobia, por outro lado, discordo do autor quando diz que “o comum está fora da luta de classes”, mesmo sem explicar o porquê. Ora, sendo

120 contraditório ao capital, não pode o comum estar fora da luta de classes que decorre da exploração exercida pelo capital. Afinal, “a classe é um conceito político, em suma, na medida em que uma classe é e só pode ser uma coletividade que luta em comum” (HARDT e NEGRI, 2005).

Muito válida, de toda forma, a ponderação de que “o capital pode emergir do comum, sequestrar uma parte e usar contra o restante”, o que pode se dar a partir de “relações desiguais, entre os que Tem Menos e os que Tem Mais”, o que não deixa de ser uma forma de expressão da luta de classes, contrariando a assertiva anterior.

Linebaugh também nos chama a atenção para uma dimensão pedagógica de transmissão do comum, indicando que “os valores comuns devem ser ensinados e renovados continuamente”, especialmente nos espaços de resistência, e menciona como exemplo, dentre outros, as assembleias populares de Oaxaca, no México. Nesse aspecto, como não lembrar também dos ensinamentos da Revolução Cubana expressos por Che Guevara, para quem a revolução deveria ser uma escola de formação do homem novo e da mulher nova, um processo permanente de conscientização (antes, durante e depois), operado a partir do cotidiano, da vida comunitária, do trabalho coletivo, e expandido via pedagogia do exemplo, motor de multiplicação de novos valores, em suma, a produção de novas subjetividades concebida sob outro olhar. Nesse sentido, diz El Che com a beleza singular das suas palavras:

Déjeme decirle, a riesgo de parecer ridículo, que el revolucionario verdadero está guiado por grandes sentimientos de amor. Es imposible pensar en un revolucionario auténtico sin esta cualidad. Quizás sea uno de los grandes dramas del dirigente; éste debe unir a un espíritu apasionado una mente fría y tomar decisiones dolorosas sin que se contraiga un músculo. Nuestros revolucionarios de vanguardia tienen que idealizar ese amor a los pueblos, a las causas más sagradas y hacerlo único, indivisible. No pueden descender con su pequeña dosis de cariño cotidiano hacia los lugares donde el hombre común lo ejercita. (...) En esas condiciones, hay que tener una gran dosis de humanidad, una gran dosis de sentido de la justicia y de la verdad para no caer en extremos dogmáticos, en escolasticismos fríos, en aislamiento de las masas. Todos los días hay que luchar porque ese amor a la humanidad viviente se transforme en hechos concretos, en

121

actos que sirvan de ejemplo, de movilización. (GUEVARA, 1965)

Na sequência do texto em comento, Linebaugh situa o comum no âmbito da escala local (lembro aqui da acertada aposta municipalista28 das

plataformas eleitorais construídas pelos/as indignados/as espanhois/las que ganharam as prefeituras de Barcelona e Madri, em maio de 2015), bem como destaca o atributo consuetudinário do comum, lastreado na práxis social e na transmissão oral da memória coletiva. Assim, arremata o autor:

O comum sempre foi local. Ele depende mais do costume, da memória e da transmissão oral para a manutenção de suas normas do que das leis, da polícia e da mídia. Vinculado a isso está a independência do comum frente ao governo ou a autoridade estatal. O estado centralizado foi construído sobre isso. Isso é, como foi, “a condição preexistente”. Portanto, o comum não é o mesmo que o comunismo da URSS (LINEBAUGH, 2014, p.14, trad. livre).

Como visto no trecho acima, tais características, o caráter local, a vinculação com os costumes, a memória e a oralidade, somadas à horizontalidade, à abertura às singularidades e ao desejo de democracia real, desdobram-se na indispensável autonomia do comum frente aos governos, o que os (as) indignados (as) espanhóis (las) chamariam, para resgatar o sentido original da democracia, o necessário exercício de autogoverno, como também sempre reivindicaram os zapatistas em Chiapas quanto aos seus territórios frente às investidas políticas e militares do Estado central mexicano. Nesse sentido, dada a dimensão local do comum, a aposta municipalista, que joga atualmente na Espanha, se coloca como importante objeto de reflexão na disputa política no tempo presente:

La democracia pierde la mayor parte de su sustancia si no se instituyen ámbitos directos de decisión en los que las personas corrientes puedan hacer efectivo el ejercicio de al menos cierto

28 A este respeito, ver a publicação La apuesta Municipalista. La democracia empieza por lo

cercano (Observatório Metropolitano de Madrid, 2014). Disponível em

122

«autogobierno». La apuesta municipalista arranca precisamente de este presupuesto: la democracia o es democracia de cercanía, «entre iguales», o carece de toda base. Su radicalidad y su sencillez es la misma que a lo largo de la historia y a lo ancho del planeta se ha podido probar en las formas políticas asamblearias de las polis griegas, las comunas medievales, los soviets obreros, así como de infinidad de procesos de organización popular. (Observatorio Metropolitano de Madrid, 2014).

Se de um lado Linebaugh entende que a solidariedade própria do comum contrasta com o egoísmo e o individualismo, do outro faz questão de distinguir o comum do “público” e sustentar sua repulsa ao “chefe”, seja ele o patrão empresário ou a autoridade pública, ao mesmo tempo em que valoriza o respeito, o trabalho conjunto, realizado “ombro a ombro” (LINEBAUGH, 2014, p.15, trad. livre). Afirma, por fim, que “o pensamento humano não pode florescer sem o intercurso do comum” (idem), razão pela qual os direitos fundamentais de livre expressão, reunião e petição (ante ao poder instituído) estariam relacionados ao comum que, como assenta o autor, “é invisível até que se perca” (idem).

Os princípios elencados por Linebaugh de modo bastante aberto, nada conclusivo, conformam um interessante ponto de partida que, todavia, devem ser refletidos e expandidos a partir da experiência prática e histórica conforme o contexto em que se situa o debate. Afinal, antes de ser abstração, o comum é construção imanente imbricada na realidade concreta das lutas, de modo que a ação política oferece o substrato necessário (mas não suficiente) à reflexão em torno do comum e confirma sua pertinência e sua potência enquanto conceito imanente a serviço da luta de classes.