• Nenhum resultado encontrado

A emergência da multidão como sujeito político

3 URBANISMO NEOLIBERAL

3.4. A emergência da multidão como sujeito político

Homogênea, compacta, contínua, unidirecional, a massa é o todo o contrário da multidão, heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional.

73 Peter Pal Pelbart

Bihr, na mencionada obra Da Grande Noite à Alternativa: o movimento operário europeu em crise (1998), esforça-se para, a partir do novo cenário de ruptura dos pressupostos fundamentais da sociedade fordista e aperfeiçoamento da era de capitalismo cognitivo, investigar e avaliar os equívocos do movimento operário e descrever os desafios colocados à luta pela emancipação. Nesse sentido, uma característica essencial do movimento operário, forjado na esteira do fordismo, diz respeito à orientação de sua ação política, fundamentalmente focada na conquista e exercício do poder de Estado. Porém, o próprio autor reconhece, sem abrir mão da ortodoxia marxista, que “uma autêntica ruptura revolucionária com o capitalismo é impossível no quadro do Estado-Nação” (BIHR, 1998, p.117).

Na visão do autor, a construção da sociedade pós-capitalista passaria pela formação de contrapoderes capazes de enfrentar o Estado-capital e, ao mesmo tempo, oferecer as bases dessa nova sociedade. Entretanto, para Bihr, o proletariado, ou os operários tomados em sentido estrito, continua ocupando um lugar privilegiado na luta revolucionária:

O estatismo de sua estratégia deve ser abandonado (...) é ao poder do capital em toda a sua extensão e em toda profundidade da práxis social que o proletariado deve atacar, reconquistando por sua vez o poder. Capacidade de dirigir, controlar e organizar essa práxis. (BIHR, 1998, p.159).

Pergunta-se: seria realmente honesta a teoria revolucionária que segue advogando pela centralidade de um setor específico da sociedade na luta pela emancipação do conjunto dessa mesma sociedade conformada por uma multiplicidade imensurável de identidades em disputa?

Apesar de insistir na centralidade da classe operária, o autor reconhece que, mais do que nunca, com o desmoronamento da sociedade fordista, o mito da grande noite, ou seja, a via insurrecional com vistas à tomada do poder de Estado para a construção da sociedade pós-capitalista se demonstra, definitivamente, superado. “A revolução é uma obra de grande fôlego” (BIHR,

74 1998).

É evidente que as mutações operadas no seio do processo produtivo, especialmente a partir dos anos 70, trouxeram consigo transformações na conformação da classe que inserem a multidão no debate sobre o sujeito político. Também é no vazio deixado pela classe operária que a multidão emerge como possibilidade de ruptura com o domínio capitalista imperial.

Foram Hardt e Negri (2005), a partir do pensamento spinozista, os autores que primeiro se lançaram no resgate e na reconstrução ontológica dessa categoria político-filosófica, tida como uma multiplicidade composta por singularidades irredutíveis, não representáveis, produto imanente da práxis coletiva, corpo biopolítico coletivo, heterogêneo e multidirecional que produz o comum capturado pelo Império. Por outro lado,

As forças criadoras da multidão que sustenta o Império são capazes também de construir, independentemente, um Contra- império, uma organização política alternativa de fluxos e intercâmbios globais. Os esforços para contestar e subverter o Império, e para construir uma alternativa real, terão lugar no próprio terreno imperial – na realidade essa nova luta já começou. (HARDT e NEGRI, 2001, p.15).

Evidentemente, a multidão, “essa figura contemporânea que conjuga multiplicidade e singularidade” (PELBART, 2011, p.85), a um só tempo “sujeito e produto da prática coletiva” (NEGRI, 2004, p.20), não se confunde mais com o proletariado e seus aparelhos de representação, a quem se dirige a relevante análise da crise do fordismo e dos desafios do movimento operário empreendida por Bihr. Apesar disso, o compromisso com a verdade diante do cenário colocado diante de si permite Bihr chegar a dizer que a crise do fordismo anuncia o fim do movimento operário (1998, p.79).

Mas não há o que lamentar, dos escombros do projeto socialista, sustentado pelo movimento operário constituído no seio do fordismo, emerge a vitalidade do projeto comunista, agora vislumbrado na biopotência da multidão (PELBART, 2011), também compreendida como organização biopolítica gerada pelo desejo de produção do comum. Como bem resume Hardt no pequeno texto O Comum no Comunismo,

75

o desenvolvimento capitalista leva inevitavelmente ao papel cada vez mais central da cooperação e do comum, o que por sua vez fornece os instrumentos para reverter o modo de produção capitalista, e constitui as bases para uma sociedade e um modo de produção alternativos, um comunismo do comum. (HARDT, 2011).

Percebe-se, assim, como a aposta na centralidade do comum guarda estreita relação com o contexto inaugurado com a crise do fordismo, no qual fica evidente a tendência à transição de uma economia capitalista industrial para uma economia capitalista pós-industrial, em que a produção imaterial ou biopolítica tende progressivamente a suplantar a hegemonia da produção industrial. Aqui se considera que a produção imaterial de linguagem, saberes e afetos é, em princípio, comum, até que se opere a captura pelo capital, em regra via direito de propriedade, o que ao mesmo tempo, contraditoriamente, restringe sua produtividade.

Vendo por outro prisma, os bens imateriais não se deterioram pelo consumo, antes pelo contrário, a produtividade da linguagem e das ideias, por exemplo, é tanto maior quanto mais aberto, livre, comum seja o acesso a elas, sendo a captura promovida pelo capital aquilo que as torna inutilizáveis para quem não pode pagar. Em resumo,

O capitalismo cognitivo (sobre)vive da exploração parasitária e rentista da produção coletiva, oferecendo condições para sua reprodução, como nas plataformas gratuitas de acesso às redes digitais (BOUTANG, 2010), ao mesmo tempo que 'estraga' essa própria dinâmica de valorização (COCCO, 2010). De um lado, a propriedade intelectual necessita impor-se por meio do comando e do controle, exigindo um aparato repressivo que procura compensar ou mitigar a fragilidade de uma legislação que se revela anacrônica e inaplicável nas atuais dinâmicas produtivas. De outro, a precarização do trabalho, sobretudo do trabalho imaterial, mina a própria potência produtiva do trabalho vivo (ROGGERO, 2012). Isso atinge negativamente as condições de criação e inovação, contrais no capitalismo cognitivo. (COCCO, 2012a, p.51)

Voltando à multidão, trata-se de um conceito de classe, que de maneira nenhuma se opõem à classe trabalhadora, mas que traz consigo uma nova

76 ontologia oriunda do campo de imanência e que não se confunde com a classe operária concebida dentro da tradição marxista, mesmo quando esta última é tomada na acepção mais ampla para incluir todos e todas que vendem no mercado sua força de trabalho para sobreviver. A multidão sobrevive para trabalhar, produz incessantemente, quando vende sua força de trabalho, mas também quando acorda, come, curte, compartilha, pensa, fala, consome, morre.

A multidão tampouco se define pelo lugar em que ocupa no processo produtivo, como é o caso da classe operária, mesmo porque na sociedade pós- fordista o processo produtivo rompeu fronteiras espaciais (fábrica) e temporais (jornada de trabalho), extrapolou o mundo do trabalho para se estender ao mundo da vida. Desse modo, não se pode pressupor que a libertação dos desígnios da produção material pela classe operária implica na emancipação de todos (as) do controle biopolítico exercido pelo Estado-capital, por mais que a classe operária seja um componente indispensável, e por vezes central, nas lutas encampadas pela multidão metropolitana. Está-se diante de um “conceito aberto e expansivo” (HARDT e NEGRI, 2005, p.147) que, nos termos de Hardt e Negri, “confere ao conceito de proletariado sua definição mais ampla: todos aqueles que trabalham e produzem sob o domínio do capital” (idem, p.148), sem partir de qualquer restrição ou exclusão apriorística de algum setor, grupo ou categoria. Aqui, para o enfrentamento biopotente ao capital, todos (as) são bem vindos (as): lúmpens, putas, garis, camelôs, desempregados (as), sem- teto, estudantes...

Classe operária é basicamente um conceito restrito baseado em exclusões. Em sua concepção mais limitada, classe operária refere-se apenas ao trabalho industrial, excluindo assim todas as demais classes trabalhadoras. Em sua concepção mais ampla, a classe operária refere-se a todos os trabalhadores assalariados, com isso excluindo as diferentes classes não-assalariadas. A exclusão de outras formas de trabalho da classe operária baseia-se na ideia de que existem diferenças de espécie entre, por exemplo, o trabalho industrial masculino e o trabalho reprodutivo feminino, entre o trabalho industrial e o trabalho camponês, entre os empregados e os desempregados, entre os operários e os pobres. A classe operária é considerada a classe produtiva primordial, estando

77

diretamente sob o controle do capital e sendo por isso o único sujeito que pode agir com eficácia contra o capital. As outras classes exploradas também poderiam lutar contra o capital, mas somente subordinadas à liderança da classe operária. (…) o conceito [de multidão] repousa na tese de que não existe uma prioridade política entre as formas de trabalho: todas as formas de trabalho hoje em dia são socialmente produtivas, produzem em comum e também compartilham um potencial de resistir à dominação do capital. Podemos encarar essa realidade como uma igualdade de oportunidades de resistência. Isto não significa, queremos deixar bem claro, que o trabalho industrial ou a classe operária não são importantes, mas apenas que não detêm um privilégio político em relação às outras classes de trabalho no interior da multidão. (HARDT e NEGRI, 2005, p.147).

De igual modo, a categoria povo também não possui o condão de chamar para si a responsabilidade de protagonista de qualquer projeto verdadeiramente emancipatório, mesmo sabendo que o sujeito social conformado sob tal designação seja indispensável para tanto. É que o povo, enquanto sujeito político, por mais revolucionário que seja, não pode ir além da soberania do Estado moderno e da democracia liberal representativa.

Mesmo a noção de povos, tais como os povos originários, encontram no Estado moderno um limite para sua autoafirmação: os povos da Amazônia no norte do Brasil não podem deixar de ser brasileiros enquanto estiverem sob a tutela jurídica soberana do Estado brasileiro. Isso está explícito na Constituição da República quando diz, por exemplo, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes”16, ou quando afirma, logo

no preâmbulo, que o Estado Democrático é instituído pelos “representantes do povo brasileiro”, “reunidos em Assembleia Nacional Constituinte”17. Ora, se o

povo, por meio dos seus representantes, institui o Estado moderno sob o regime da democracia liberal, como poderá superá-lo na condição de sujeito social encarregado do projeto emancipatório? Aqui ratifico a assertiva de Alain Bihr quanto à impossibilidade de uma autêntica ruptura revolucionária no quadro do Estado-Nação.

Na verdade, a multidão sempre existiu, mas a modernidade logrou criar

16 Art. 1º, parágrafo único, Constituição da República de 1988.

78 um arcabouço filosófico, político e jurídico-institucional que fez sobressair o povo, como sujeito transcendente, passível de representação, nos contornos de um estado nacional soberano.

Paolo Virno, filósofo italiano, faz em seu livro Gramática da Multidão um resgate do embate teórico travado por Hobbes contra a multidão, como um conceito negativo “inerente ao estado de natureza”, e em favor do povo, dotado de uma “vontade única” (VIRNO, 2013, p.10), cuja expressão remete sempre à soberania do Estado. A multidão era então considerada “antiestatal, e, por isso, antipopular”, a ponto de Hobbes sustentar que quando os cidadãos se revoltam contra o Estado, “são a multidão contra o povo” (VIRNO, 2013, p.11). Em suma, Virno nos fala que:

Antes do Estado eram os muitos, depois da instauração do Estado foi o povo – Uno, dotado de uma única vontade. A multidão, segundo Hobbes, afasta-se da unidade política, opõe- se à obediência, não aceita pactos duradouros, não alcança jamais o status de pessoa jurídica, pois nunca transfere seus direitos naturais ao soberano. (VIRNO, 2013, p.11).

A categoria povo é, portanto, conformada a partir da unidade do Estado-Nação, enquanto isso, a multidão é a classe dos muitos e rechaça sua redução a qualquer unidade transcendente para fins de representação política, ela jamais outorga sua soberania em proveito de representantes “democraticamente” eleitos. Contrapondo os conceitos de multidão e de povo sob o aspecto da representação, esclarece Negri:

Em um sentido mais geral, a multidão desafia qualquer representação por se tratar de uma multiplicidade incomensurável. O povo é sempre representado como unidade, ao passo que a multidão não é representável, ela apresenta sua face monstruosa vis-à-vis os racionalismos teleológicos e transcendentais da modernidade. Ao contrário do conceito de povo, o conceito de multidão é de uma multiplicidade singular, um universal concreto. O povo constitui um corpo social; a multidão não, porque a multidão é a carne da vida. (NEGRI, 2004, p.17)

Isto posto, percebe-se de imediato a superação operada pelo conceito de multidão frente ao conceito de povo. Como sugere Szaniecki, ocorre uma

79 evolução do conceito de povo, “corpo social representado de maneira transcendente”, para a multidão, “cooperação social expressa de forma imanente”, passando “de uma unidade representacional e transcendental abstrata” para “uma multiplicidade cooperativa e imanente concreta” (SZANIECKI, 2007, p.110). Szaniecki resume a passagem do conceito de povo para o conceito de multidão quando se trata de conceber o sujeito revolucionário na sociedade pós-fordista:

Enquanto na modernidade a organização social é garantida pela contratualidade, em que o povo é produto político e estético da representação, é 'o produto do ato contratual constitutivo da sociedade burguesa' [HARDT & NEGRI], na pós-modernidade a organização social só é possível através da cooperação, isto é, da produção de subjetividade, política e estética, da multidão. (SZANIECKI, 2007, p.109-110)

Demarcamos alguns aspectos da multidão para distingui-la do proletariado, da classe trabalhadora e do povo – oponentes conceituais da multidão em termos político filosóficos, mas que na práxis social se fazem indispensáveis às lutas multitudinárias, vez que povo e classe trabalhadora também podem conformar e se expressar enquanto multidão.

Falta dizer que a multidão também não sucumbe perante a uniformidade indissociável e intrínseca ao conceito de massas que decorre da força homogeneizante do mercado, sob o prisma do consumo. A multidão, de outro modo, preserva as diferenças singulares, as subjetividades, as identidades em fluxo contínuo e os múltiplos desejos que, quando se confluem no comum, se revela como potência constituinte frente ao poder instituído. Como sustentam os autores da obra de grande fôlego sobre a denominada multidão, “a essência das massas é a indiferença: todas as diferenças são submersas e afogadas nas massas”, se por um lado as massas apresentam uma tonalidade única, por outro “a multidão é multicolorida” (HARDT e NEGRI, 2005, p.13).

Acrescente-se que as massas sempre denotam algum nível de hierarquia, direção, uma instância superior. Alguém sempre precisa preparar a massa, moldá-la a seu modo, para que fique adequada à persecução de um

80 objetivo descrito numa receita ou fórmula previamente estabelecida, isso vale para a culinária, para a construção civil, mas também para a filosofia política. A multidão, por sua vez, designa um sujeito social ativo que, diferentemente da passividade das massas que sempre devem ser dirigidas, “age com base naquilo que as singularidades têm em comum” (HARDT e NEGRI, 2005, p.140), trata-se, portanto, de um “sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em comum” (idem). Ainda sobre o conceito de massa, diz Negri:

Também o conceito de massa (como multiplicação indefinida dos indivíduos) é um conceito de medida, e mais ainda, foi construído pela política econômica do trabalho com esta finalidade. Nesse sentido, a massa é o correlato do capital - assim como o povo é o correlato da soberania. (NEGRI, 2004, p.16)

Hardt e Negri entendem ainda que a multidão também pode ser encarada como uma rede, em que “todas as diferenças podem ser expressas livres e igualitariamente, uma rede que proporciona os meios da convergência para que possamos trabalhar e viver em comum” (HARDT e NEGRI, 2005, p.12), sem estar subordinado ao comando do Estado-capital. Os autores dizem que “o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferente” (idem). Antes do que lamentar o papel desempenhado pela diferença e pela alteridade na condição pós-moderna contemporânea, Hardt e Negri, bem como todos (as) aqueles (as) que apostam na multidão como sujeito político capaz de enfrentar o Império, partem da potência das múltiplas singularidades que se expressam na produção do comum e que não se reduzem ao Uno.

Nesse sentido, também vale citar Santos, o qual apostava na construção de um outro mundo possível mediante uma “globalização mais humana” sob as mesmas “bases técnicas que o capitalismo se apoia quando colocadas a serviço de outros fundamentos sociais e políticos”, destacando para tanto, também, a enorme mistura de povos, raças, culturas

81 (“sociodiversidade”) e a “mistura de filosofias, em detrimento do racionalismo europeu”, propiciada pelos progressos da informação (SANTOS, 2012, p.21).

Cabe reconhecer, entretanto, que a construção imanente de um projeto emancipatório demanda muito mais do que a defesa e a construção do comum como segunda via frente ao público-privado em simbiose neoliberal expressa na fórmula Estado-capital. Ou seja, importa questionar como a multiplicidade de singularidades encarnadas na multidão é capaz de convergir num horizonte estratégico, preservando e fazendo das diferenças internas o substrato que lhe confere potência ante a força homogenizadora do Estado. Uma coisa é certa, é na metrópole contemporânea, a nova fábrica de produção biopolítica capitalista, onde têm sido travados os conflitos mais interessantes da multidão contra o Estado-capital e contra o Império.