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A metrópole biopotente

3 URBANISMO NEOLIBERAL

3.5. A metrópole biopotente

Nos marcos do capitalismo pós-fordista, tendo a produção rompida os domínios da fábrica, o próprio espaço urbano se coloca como terreno privilegiado à produção de riqueza material e imaterial, de modo que a metrópole, ou a forma metropolitana, contraditoriamente, oferece as melhores condições para a expressão da biopotência da multidão na constituição do comum urbano.

Em nossa era de produção biopolítica e capitalismo cognitivo, algumas das forças produtivas centrais, como aquelas que trabalham com ideias, afetos, códigos, comunicação e afins, não estão concentradas em fábricas, mas sim espalhadas pelo terreno social. De fato, a metrópole é o lugar privilegiado onde essas forças residem e interagem. (HARDT e NEGRI, 2014, p.103).

Os autores da trilogia Império, Multidão e Commonwealth, consideram a metrópole como o “locus primário da produção biopolítica” (HARDT e NEGRI, 2009, p.244) e, dessa maneira, também vislumbram a metrópole contemporânea como “o esqueleto e a espinha dorsal da multidão, ambiente construído que apoia sua atividade e o ambiente social” (idem, p.249). A

82 metrópole seria assim uma enorme reserva do comum, o que a torna ambiente privilegiado para ação política anticapitalista, em suma, na máxima lançada por Hardt e Negri, “a metrópole seria hoje para a multidão o que a fábrica foi para a classe trabalhadora industrial” (idem, p.250).

Hoje a metrópole, sede do poder político e econômico concentra tudo o que faz a sociedade: população, meios de produção, serviços, comunicação, tecnologias, administração pública, saúde, educação, cultura, lazer. Logo, é na metrópole, grande laboratório das forças sociais, que aparece com maior nitidez a própria essência da sociedade e, mais especificamente, do Estado capitalista contemporâneo imperial.

Ana Fani Carlos também relaciona a maior importância do papel exercido pela metrópole na acumulação capitalista contemporânea com a passagem da hegemonia do capital industrial para o capital financeiro, nestes termos:

O espaço ganha, hoje, um sentido diverso dos movimentos anteriores da história de sua produção. No quadro do processo de mundialização, que delineia a relação global/local, redefine- se o papel da metrópole como mediação necessária desse processo, o que vai determinar um novo papel do espaço na reprodução do capital. Como exigência do seu desenvolvimento, esse comportamento realiza-se no movimento de passagem da hegemonia do capital produtivo industrial para o capital financeiro, através da reprodução do espaço urbano, sob novas modalidades, articuladas ao plano mundial. Isto é, a reprodução do espaço urbano da metrópole expõe o momento em que o capital financeiro se realiza através dessa reprodução, produzindo um “novo espaço” sob a forma de “produto imobiliário” que aponta uma mudança na aplicação do capital-dinheiro acumulado do setor produtivo industrial em direção ao setor imobiliário, o que exige uma fluidez avassaladora (CARLOS, 2015, p. 25-26).

Inegavelmente, a afirmação do capitalismo financeiro global é acompanhada pela acentuação da centralização do capital na metrópole, impondo a ela uma determinada configuração espacial (CARLOS, 2015). Tal característica faz da metrópole, como condição geral de produção, o cenário peculiar das contradições próprias do capitalismo: centro e periferia, luxo e miséria, moderno e antigo, legal e ilegal, acessibilidade e exclusão, tudo isso

83 “convivendo” no mesmo espaço metropolitano, forma estendida como condição planetária geral. A própria natureza desses antagonismos da vida metropolitana é essencial para explicar a emergência dos movimentos sociais urbanos em embate com o Estado-capital, provedor das condições necessárias à reprodução dos (as) trabalhadores (as) na cidade.

É interessante notar como a configuração da cidade, em princípio, indica a organização da população em torno de uma vida comunitária – casas próximas umas das outras, espaços de convivência, equipamentos sociais compartilhados, sistema público de comunicação e transporte, enfim, a produção do comum urbano. Entretanto, o que sobressai, contemporaneamente, é o espaço esmigalhado vendido aos pedaços, a segregação social e racial, o isolamento e o atomicismo.

Isso, evidentemente, não retira da metrópole suas possibilidades emancipatórias, pois, dentre outras inúmeras razões, a metrópole concentra no mesmo território a multidão que produz o comum, o fluxo de informações, a produção artístico-cultural, os avanços tecnológicos etc. Em outras palavras, a metrópole agregou no tempo e no espaço as condições objetivas e subjetivas para a ruptura com o domínio biopolítico exercido pelo poder instituído nos marcos do capitalismo pós-fordista. Como sustenta Hardt e Negri,

A metropolização do mundo não significa necessariamente apenas a generalização de estruturas de hierarquia e exploração, pode também significar a generalização da rebelião e, assim, possivelmente, o crescimento das redes de cooperação e comunicação, a intensidade crescente do comum e encontros entre singularidades. É aí que a multidão está achando seu lar. (HARDT e NEGRI, 2009, p.260).

Inegavelmente as manifestações de junho de 2013 no Brasil colocaram aos movimentos sociais e aos partidos ditos de esquerda a necessidade de aprofundar a compreensão dos mecanismos de produção e reprodução do espaço urbano, bem como a atuação dos agentes políticos e financeiros nesse campo. As rebeliões, deflagradas sobretudo pela multidão metropolitana, tiveram como pano de fundo a agudização da crise urbana, no entanto, as forças políticas da chamada esquerda instituída ainda estão longe de

84 compreender as complexidades próprias do fenômeno urbano fora do prisma estreito da contradição capital-trabalho, bem como reconhecer o papel desempenhado pela metrópole nos marcos do capitalismo global pós-fordista.

Mais do que isso, podemos afirmar que a cidade nem sempre fez parte da análise da teoria revolucionária que, tradicionalmente, priorizou a luta operária e camponesa (MARICATO, 1988). Dessa forma, restou prejudicado um olhar específico e compreensivo sobre a questão urbana, de modo integrado com o desenvolvimento do capitalismo neoliberal globalizado, que pudesse permitir a construção de uma teoria das lutas urbanas. As mobilizações de junho de 2013, nesse sentido, têm muito a ensinar às forças de esquerda.

Mas, no Brasil é impossível dissociar as principais razões, objetivas e subjetivas desses protestos, da condição das cidades. Essa mesma cidade que é ignorada por uma esquerda que não consegue ver ali a luta de classes e por uma direita que aposta tudo na especulação imobiliária e no assalto ao orçamento público. (MARICATO, 2013, p.19)

Também é evidente que compreender as contradições próprias da lógica de apropriação do espaço, sob os marcos do neoliberalismo, do planejamento estratégico e da cidade-empresa, é pressuposto para a compreensão da crise urbana, razão última das mobilizações multitudinárias de 2013. Cabe assim, aprofundar a análise crítica e apreender certas categorias que caracterizam a cidade neoliberal das parcerias público-privadas, marcada por um modelo de gestão empresarial do espaço e do planejamento urbano, tais como: cidade global, planejamento estratégico, urbanismo ad hoc, grande projeto urbano, market-friendly, gentrificação/revitalização, etc.

(...) o neoliberalismo transformou as regras do jogo político. A governança substituiu o governo; os direitos e as liberdades têm prioridade sobre a democracia; a lei e as parcerias público- privadas, feitas sem transparência, substituíram as instituições democráticas; a anarquia do mercado e do empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades deliberativas baseadas em solidariedades sociais. (HARVEY, 2013, p.32)

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