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3. A literatura filosófica, geográfica, e técnica

3.2. A cidade na Política de Aristóteles

A Política de Aristóteles não difere inteiramente, no género, dos dois diálogos platónicos referidos. Trata-se, como notava já Jacoby, de uma politeia filosófica em que se anuncia já uma tendência científica, representada genuinamente pela Constituição dos Atenienses.143

Comecemos por observar que a definição de cidade é um problema nesta obra. Já nos Económicos a cidade aparece definida como o edificado, o seu lugar e os recursos necessários à vida plena como o filósofo a entende:

A pólis resulta, por conseguinte, de um agregado constituído por casas, terras e bens, que seja auto-suficiente e capaz de garantir o bem-estar.144

Na Política, porém, a cidade começa por ser definida no livro I na gradualidade das associações humanas que se iniciam no casal, se alargam para a família, para a aldeia em seguida e, por último, terminam na própria cidade que é uma comunidade perfeita resultante de um sinecismo de aldeias (ἡ δ' ἐκ πλειόνων κωμῶν κοινωνία τέλειος πόλις).145 No entanto, a gradualidade e as necessidades de associação que subjazem a esses tipos de comunidade não dissolvem a diferença entre a família e a cidade, uma vez que esta é o todo no qual, e só nele, aquela, como parte, adquire a sua razão de ser: πρότερον δὲ τῇ φύσει πόλις ἢ οἰκία καὶ ἕκαστος ἡμῶν ἐστιν. τὸ γὰρ ὅλον πρότερον ἀναγκαῖον εἶναι τοῦ μέρους.146

O livro II faz uma análise dos sistemas políticos existentes e as propostas dos pensadores até então. Entre estas é de notar a crítica às duas propostas platónicas da República e das Leis e, sobretudo, a crítica a Hipódamo de Mileto. Este último, de acordo com a listagem de Aristóteles, terá sido o primeiro de entre os não especialistas em política, que escreveram sobre a melhor politeia.147 E, na qualidade de “não político,” foi frequentemente revestido, na crítica do séc. XX, do estatuto de urbanista que os estudos mais recentes tendem a pôr em

143JACOBY, Atthis, p. 212.

144Econ. 1.1343a 10 (cf. ARISTÓTELES, Os Económicos, introdução, notas e tradução original do grego e

latino de Delfim Ferreira Leão, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 2004 (Obras completas de Aristóteles, vol. VII, t. II), p. 36).

145ARISTÓTELES, Pol., 1252b 27s. 146Ibidem, 1253a 19 s.

causa. A frase inicial do trecho aristotélico diz: Ἱππόδαμος δὲ Εὐρυφῶντος Μιλήσιος ὃς καὶ τὴν τῶν πόλεων διαίρεσιν εὗρε καὶ τὸν Πειραιᾶ κατέτεμεν).148 Qual o significado da expressão εὐρεῖν τὴν τῶν πόλεων διαίρεσιν? Será Hipódamo o inventor do traçado urbano ortogonal? A crítica actual tende a negar que seja essa a interpretação do texto, mesmo tendo em conta a expressão no livro VII (ἂν εὔτομος ᾖ καὶ κατὰ τὸν νεώτερον καὶ τὸν Ἱπποδάμειον τρόπον).149 Em primeiro lugar, porque já de há muito se reconhecia que o traçado ortogonal de cidades do séc. V reutiliza, como provam dados arqueológicos, uma forma pré-existente e, por conseguinte, é menos uma invenção de um autor do que uma evolução.150 Em segundo lugar, porque o sentido mais provável de διαίρεσις, neste passo, não é o de “traçado geométrico,” mas antes o de divisão do espaço por categorias sociais que Aristóteles concretiza em seguida: divisão da sociedade em três classes (artesãos, agricultores, e combatentes); aloteamento do território (χώραν) por três funções: função sagrada, pública e privada (τὴν μὲν ἱερὰν τὴν δὲ δημοσίαν τὴν δ' ἰδίαν).151 O máximo que esse trecho nos permite concluir é que a politeia de Hipódamo continha um elemento espacial, mas isso não implica, ou melhor, o contexto não permite concluir que fosse o planeamento ortogonal.152

Hipódamo é novamente invocado no livro VII a propósito da melhor configuração da cidade em vista da defesa. Aristóteles opõe uma cidade não planeada, ao modo antigo, e uma cidade planeada, bem segmentada (eutomos), “à maneira moderna de Hipódamo,” e apresenta a sua preferência por uma solução mista que salvaguarde a capacidade defensiva (asphaleia) sem ofender a estética (kosmos). O exemplo apresentado no texto para tal modelo misto de forma urbana não ajuda no esclarecimento:

(ἐνδέχεται γάρ, ἄν τις οὕτως κατασκευάζῃ καθάπερ ἐν τοῖς γεωργοῖς ἃς καλοῦσί τινες τῶν ἀμπέλων συστάδας), καὶ τὴν μὲν ὅλην μὴ ποιεῖν πόλιν εὔτομον, κατὰ μέρη δὲ καὶ τόπους.153

148 Ibidem, 1267b 22 s. Na tradução aqui usada: “Foi Hipódamo, cidadão de Mileto, e filho de Eurifonte,

quem inventou o traçado das cidades e delineou as ruas do Pireu.” (ARISTÓTELES, Política, prefácio de António Pedro Mesquita, tradução e notas de António Campelo Amaral e Carlos C. Gomes, Madrid, Prisa Innova, 2008, p. 68).

149 ARISTÓTELES, Pol., 1330b 21-31. Cf. tradução de António Campelo Amaral e Carlos C. Gomes (p. 355):

“no modo regular e recente introduzido por Hipódamo.”

150 Ver BURNS, Alfred, “Hippodamus and the planned city,” in Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte, 25, 4

(1976), pp. 418s. Uma lista de cidades que têm planeamento urbano ortogonal com planta que data, pelo menos, do princípio do séc. VI, pode ver-se em SHIPLEY, Graham, “Little boxes on the Hillside: Greek Town Planning, Hippodamos and Polis Ideology,” in HANSEN, The imaginary polis, pp. 341-345.

151 ARISTÓTELES, Pol., 1267b 33-34. 152 SHIPLEY, “Little boxes...,” p. 369.

153 ARISTÓTELES, Pol., 1330b 27-30. Cf. trad. de António Campelo Amaral e Carlos C. Gomes (p. 356):

O que serão essas systades ou grupos de videiras? A hipótese de se referir a algo semelhante ao quincunx romano e, portanto, de que se trata aqui de um alinhamento diagonal não colhe actualmente a aprovação da crítica.154

Entretanto, a definição de cidade e seus problemas voltam a pôr-se no livro III, a propósito da definição dos tipos de regime político (politeia), questão que reconduz à definição de cidade.155 A questão aristotélica é a aporia da identidade perante os argumentos históricos para uma solução de continuidade quando intervêm mudanças de regime. Um acto pode dizer-se da cidade quando foi praticado pela oligarquia ou tirania, entretanto abolida? A primeira solução consiste em definir a cidade como um composto de cidadãos (ἡ γὰρ πόλις πολιτῶν τι πλῆθός ἐστιν).156 Claro que isso não resolve a questão, mas apenas a transfere para uma outra: a definição de cidadania. E a este respeito as objecções são semelhantes: se a cidadania foi concedida por um regime entretanto abolido deverá ser reconhecida?

Voltamos, portanto, à questão de saber de acordo com que critério podemos dizer que uma cidade é ou já não é a mesma. A primeira hipótese é ater-se aos critérios territoriais e demográficos ou étnicos para resolver o caso de um aglomerado dividido pela morfologia do terreno e o de um aglomerado original que, posteriormente, foi transferido para outro lugar157.

E, no entanto, as dúvidas persistem dada a variabilidade dos fenómenos de aglomeração humana. Há a Lacedemónia que não pode ser circundada por muros e não deixa de ser uma cidade; há também Babilónia que, conquanto muralhada, se define melhor como mero aglomerado do que como uma cidade (μᾶλλον ἔθνος ἢ πόλις).

todos.”

154Vide SHIPLEY, “Little boxes...,” p. 360. O mesmo autor refere como, a partir de dados arqueológicos de

Túrios e de Rodes, têm sido avançadas outras explicações para a inovação de Hipódamo, nomeadamente uma nova combinação de elementos pré-existentes, como as plateiai, stenopoi e ambitus.

155ARISTÓTELES, Pol., 1274 b: τῷ περὶ πολιτείας ἐπισκοποῦντι, καὶ τίς ἑκάστη καὶ ποία τις, σχεδὸν πρώτη σκέψις περὶ πόλεως ἰδεῖν, τί ποτέ ἐστιν ἡ πόλις. νῦν γὰρ ἀμφισβητοῦσιν, οἱ μ ὲν φάσκοντες τὴν πόλιν πεπραχέναι τὴν πρᾶξιν, οἱ δ᾽ οὐ τὴν πόλιν ἀλλὰ τὴν ὀλιγαρχίαν ἢ τὸν τύραννον: τοῦ δὲ πολιτικοῦ καὶ τοῦ νομοθέτου πᾶσαν ὁρῶμεν τὴν πραγματείαν οὖσαν περὶ πόλιν, ἡ δὲ πολιτεία τῶν τὴν πόλιν οἰκούντων ἐστὶ τάξις τις. ἐπεὶ δ᾽ ἡ πόλις τῶν συγκειμένων, καθάπερ ἄλλο τι τῶν ὅλων μὲν συνεστώτων δ᾽ ἐκ πολλῶν μορίων, δῆλον ὅτι πρότερον ὁ πολίτης ζητητέος: ἡ γὰρ πόλις πολιτῶν τι πλῆθός ἐστιν. 156Ibidem, 1274 b 41. 157Ἔοικε δ' οἰκεῖος ὁ λόγος εἶναι τῆς ἀπορίας ταύτης πως ποτὲ χρὴ λέγειν τὴν πόλιν εἶναι τὴν αὐτὴν ἢ μὴ τὴν αὐτὴν ἀλλ' ἑτέραν. ἡ μὲν οὖν ἐπιπολαιοτάτη τῆς ἀπορίας ζήτησις περὶ τὸν τόπον καὶ τοὺς ἀνθρώπους ἐστίν: ἐνδέχεται γὰρ διαζευχθῆναι τὸν τόπον καὶ τοὺς ἀνθρώπους, καὶ τοὺς μὲν ἕτερον τοὺς δ' ἕτερον οἰκῆσαι τόπον (ibidem, 1276 a, 16-20).

Consciente da plurivalência do termo ‘pólis’ (πολλαχῶς γὰρ τῆς πόλεως λεγομένης),158 Aristóteles resolve o problema com o critério do regime. Fala-se de uma mesma cidade atendendo ao seu regime (φανερὸν ὅτι μάλιστα λεκτέον τὴν αὐτὴν πόλιν εἰς τὴν πολιτείαν βλέποντας). A pólis será então uma comunidade de cidadãos sob determinado regime:

Εἴπερ γάρ ἐστι κοινωνία τις ἡ πόλις, ἔστι δὲ κοινωνία πολιτῶν πολιτείας, γινομένης ἑτέρας τῷ εἴδει καὶ διαφερούσης τῆς πολιτείας ἀναγκαῖον εἶναι δόξειεν ἂν καὶ τὴν πόλιν εἶναι μὴ τὴν αὐτήν.159

A afirmação é surpreendente e a crítica não é unânime. Para Hansen, Aristóteles faz jus ao duplo sentido do termo que assim traça duas cidades, uma mais inclusiva e outra exclusiva:

In the Politics Aristotle defines a polis both as a town created by the synoikism of a number of komai (Book 1) and as a community of citizens around their political institutions (a κοινωνία πολιτῶν πολιτείας) (Book 3). His two definitions match the two different senses of the word polis. Defining the polis as a town composed of komai which again are composed of oikiai he takes all the inhabitants, including women, children and slaves, to be members of the polis. When defining the polis as a political community he emphasizes that the politai are the adult male citizens to the exclusion of foreigners, women, children and slaves.160

Para Oswyn Murray, o texto πόλις ἔστι δὲ κοινωνία πολιτῶν πολιτείας, que se faz notar logo por um inusitado duplo genitivo, poderá ser corrupto, mas independentemente disso as suas consequências lógicas são absurdas.161 A dificuldade insolúvel da definição uma insolubilidade que Murray aponta para outros problemas na Política ― tem a sua origem, segundo o autor, nas consequências perturbadoras da história para a teoria política.162

Seja como for, o livro III expande algumas definições negativas da polis nomeadamente no que respeita aos seus fins. Face aos argumentos em favor da ideia de justiça do regime

158 ARISTÓTELES, Pol., 1276 a 23s. 159 Ibidem, 1276b 1 s.

160 HANSEN, Mogens Herman, “ΠΟΛΛΑΧΩΣ ΠΟΛΙΣ ΛΕΓΕΤΑΙ (Arist. Pol. 1276a23). The

Copenhagen Inventory of Poleis and the Lex Hafniensis de Civitate,” in IDEM (ed.), Introduction to an Inventory, p. 20-21.

161 O texto preferido por MURRAY seria o que serviu de base à tradução latina de Moerbeck (siquidem est

communicatio quaedam civitas, est autem communicatio civium politia, facta altera specie et differente politia, necessarium esse videbitur et civitatem non esse eandem): “The only trouble with this text is that it is almost too neat, offering a perfect antithesis (apart from the absence of a definite article) with the previous clause: “if the polis is a koinonia, and if the politeia is a koinonia of politai, when the politeia differs then the polis differs”: that is, if A is a B and if C is also a B, being an arrangement of the members of A, when C changes, then A changes” (MURRAY, Oswyn, “Polis and Politeia in Aristotle,” in HANSEN, Mogens Herman (ed.), The ancient Greek city-state: symposium on the occasion of the 250th anniversary of the Royal Danish academy of sciences and letters, July, 1-4 1992, Copenhagen, Det Kongelige Danske Videnskabernes Selskab: Munksgaard, 1993, p. 198).

oligárquico, i.e., uma justiça baseada na riqueza, Aristóteles precisa que o fim da cidade é a virtude163 e, justamente por isso, não basta habitar o mesmo território ou um núcleo urbano circundado por muralhas. Também não faz uma cidade o casarem-se os habitantes entre si, mesmo que o casamento constitua já uma forma de vida comum. Mais ainda, não faria uma cidade o facto de se basear na existência de um mercado regulado por leis (ἀλλ' εἴησαν αὐτοῖς νόμοι τοῦ μὴ σφᾶς αὐτοὺς ἀδικεῖν περὶ τὰς μεταδόσεις),164 nem o número dos habitantes, se vivessem sob uma relação idêntica a uma simaquia ou uma aliança comercial. Não que tudo isso seja de excluir, sendo antes condições prévias que não definem o fim da cidade.165 Pelo contrário, o fim da cidade, ou seja, de uma comunidade de famílias e aldeias, é a vida perfeita e autónoma (ἀλλ' ἡ τοῦ εὖ ζῆν κοινωνία καὶ ταῖς οἰκίαις καὶ τοῖς γένεσι, ζωῆς τελείας χάριν καὶ αὐτάρκους).166 E converso, o viver em pólis é a vida perfeita (πόλις δὲ ἡ γενῶν καὶ κωμῶν κοινωνία ζωῆς τελείας καὶ αὐτάρκους. τοῦτο δ' ἐστίν, ὡς φαμέν, τὸ ζῆν εὐδαιμόνως καὶ καλῶς).167

O livro V, ao desenvolver a teoria da stasis, menciona dois factores importantes para a coesão da cidade. O primeiro é a unidade étnica da população (στασιωτικὸν δὲ καὶ τὸ μὴ ὁμόφυλον).168 O conceito não causa estranheza, tendo em conta que essa era a forma de encarar a identidade própria e o estrangeiro, dominante entre Gregos do período clássico. O segundo factor, menos óbvio talvez, é o que deriva de condicionalismos geográficos que podem, em certos casos, ser propícios à stasis. Os exemplos citados pelo filósofo de divisões originadas pela topografia são diversos:

Στασιάζουσι δὲ ἐνίοτε αἱ πόλεις καὶ διὰ τοὺς τόπους, ὅταν μὴ εὐφυῶς ἔχῃ ἡ χώρα πρὸς τὸ μίαν εἶναι πόλιν, οἷον ἐν Κλαζομεναῖς οἱ ἐπὶ Χυτῷ πρὸς τοὺς ἐν νήσῳ, καὶ Κολοφώνιοι καὶ Νοτιεῖς· καὶ Ἀθήνησιν οὐχ ὁμοίως εἰσὶν ἀλλὰ μᾶλλον δημοτικοὶ οἱ τὸν Πειραιᾶ οἰκοῦντες τῶν τὸ ἄστυ. 169

No entanto, Clazómenas/Cito, Cólofon/Nócio e Atenas/Pireu não estão no mesmo plano. De facto, Sitta von Reden mostrou que o caso Atenas/Pireu é o de uma interacção entre factores de diversa ordem.170 O maior entusiasmo democrático dos habitantes do Pireu

163ARISTÓTELES, Pol., 1280b. 7-8. 164Ibidem, 1280b. 19-20. 165Ibidem, 1280b 30 – 1280b 35. 166Ibidem, 1280b 33 ss. 167Ibidem, 1281a 1 s. 168Ibidem, 1303a.25. 169Ibidem, 1303b. 7-12.

é uma questão complexa que não cabe aqui analisar, mas que é indissociável do facto de ser um porto. Uma população estrangeira e alguma autonomia administrativa colocavam a relação entre a cidade e o demos local em termos tensos, na medida em que o Pireu se torna uma materialização de um corpo estranho, tendencialmente em ruptura com as fronteiras definidas da polis. De um ponto de vista político, ou seja, para os adversários da política marítima ateniense, o Pireu estava para Atenas como uma colónia para a metrópole.171

Visto que o último livro se ocupa essencialmente da educação, é no livro VII que se encontram as considerações mais explícitas acerca da cidade enquanto corpo político nas suas relações com a forma urbana ― relações essas pensadas em função de um ideal.172 Esse ideal pressupõe em primeiro lugar as condições adequadas no que respeita ao corpo dos cidadãos e ao território. Em relação ao primeiro supõe-se um número moderado, sem defeito nem excesso de modo a permitir a sua auto-suficiência, por um lado, e sua governabilidade e participação política, por outro.173 Quanto ao segundo, o território, deve obedecer a critérios de natureza militar e defensiva, antes de mais. Mas o funcionamento da economia também dita as suas exigências. A importação e exportação são facilitadas quando a cidade tem acesso ao mar.174

Por sua vez, a determinação do carácter dos cidadãos pelo meio natural leva Aristóteles a aplicar, em esquema diagramático da população humana na Terra, a doutrina do meson. É precisamente porque os Gregos estão entre o extremo da Ásia e dos povos das regiões frias, que se encontram na melhor localização geográfica, ou seja, aquela que produz o carácter mais apto a ser governado ou governar os outros povos.175

171 Ibidem, p. 27. Como lembra a autora, a associação entre império marítimo e democracia também é

referida por Plutarco na Vida de Temístocles (19.6.5 ss) quando atribui aos Trinta Tiranos a ideia de que o império marítimo era a mãe da democracia, enquanto os habitantes de zonas rurais toleravam melhor a oligarquia (cit. por REDEN, “The Piraeus...,” p. 28).

172 Há, no livro VII, uma tendência utópica como a expressão kat’euchen comprova. Vide LONG, Roderick

T., “Aristotle’s Egalitarian Utopia: The Polis Kat’euchen,” in HANSEN, The imaginary polis..., pp. 164-196.

173 A este respeito Francesco PRONTERA afirma que a teoria de Aristóteles sobre o número ideal de cidadãos

de uma cidade (5040) é uma obsessão do pensamento político clássico: “stabilendo lo stretto legame fra cittadinanza e proprietà terriera, fissa sul piano teorico un limite invalicabile alla crescita della città-stato e quindi all’incremento della popolazione.” Cf. IDEM, “Vision de la grande ville: da Erodoto a Strabone”, in NICOLET, Claude; ILBERT, Robert; DEPAULE, Jean-Charles (dirs.), Mégapoles méditerranéennes: géographie urbaine rétrospective: actes du colloque, Rome, 8-11 mai 1996 organisé par l’École française de Rome et la Maison méditerranéenne des sciences de l’homme, Paris, Maisonneuve et Larose, Maison méditerranéenne des sciences de l’homme, École française de Rome, 2000, p. 25).

174 ARISTÓTELES, Pol., 1327 a.

175 Ibidem, 1327b 18 ss. Doutrina muito difundida na Antiguidade. PAASSEN, por exemplo, detecta-a em

Importa notar, porém, como as prescrições aristotélicas relativamente à grandeza do território estão subordinadas ao ideal filosófico de uma vida sem ocupações manuais (scholazein), pautada pela liberdade e moderação (ὥστε δύνασθαι τοὺς οἰκοῦντας ζῆν σχολάζοντας ἐλευθερίως ἅμα καὶ σωφρόνως).176

Acrescem a estas exigências as condições imprescindíveis à existência de uma cidade e que, por isso mesmo, se denominam suas partes:177 o abastecimento; os ofícios; o policiamento e a força militar; os recursos financeiros; a religião que, nas palavras do filósofo, é a parte mais importante; e, enfim, a parte mais necessária, que é a autoridade política.

No interior da polis o território deverá dividir-se em público e privado, o primeiro dos quais se divide, por sua vez, em partes consagradas ao culto divino e partes para as refeições em comum. Em contrapartida, a divisão do domínio privado parece ser um reflexo do plano platónico para a polis das Leis com a sua repartição de lotes duplos para cada cidadão, um no centro outro na periferia.178

As considerações sobre o sítio da cidade, por sua vez, obedecem sobretudo às preocupações sanitárias (e. g. evitar sítios expostos ao vento Norte) e com os recursos hídricos.179

Em relação à defesa Aristóteles coloca (de forma natural mas não sem controvérsia, pois acusa os que pensam de outra forma de um rude primitivismo)180 duas exigências distintas: o amuralhamento e respectiva manutenção face ao progresso do armamento militar adversário, por um lado; e, por outro, o traçado urbano misto, i.e., combinando o sistema ortogonal com o sistema anterior para potenciar as possibilidades de defesa.

A necessidade de organizar os cidadãos em συσσίτια, i. e., em refeições comunitárias coloca a questão dos espaços públicos adequados para o efeito, para a qual são apresentadas hipocrático De aëre, aquis, locis (vide PAASSEN, Christiaan van, The classical tradition of geography, Groningen, J. B. Wolters, 1957, p. 328).

176ARISTÓTELES, Pol., 1326 b. Cf. trad. de António Campelo Amaral e Carlos C. Gomes, p. 339 s.

177Ibidem, 1328 b. Cf. trad. de António Campelo Amaral e Carlos C. Gomes, p. 356: “Importa ter em

conta quantos são os elementos imprescindíveis à existência da cidade, e que devem constituir o que designamos por partes da cidade.”

178Ibidem, 1330a 9 ss.

179Cf. ibidem, 1330a – 1330b. Os preceitos relativos a localizações salubres são bastante variáveis entre o

escrito hipocrático, Aristóteles e, mais tarde, Vitrúvio.

180Ou seja, acusa os seus opositores de λίαν ἀρχαίως ὑπολαμβάνειν (ibidem, 1330b). Entre esses opositores

estava Platão que defendia a opinião espartana de que as muralhas deveriam ser de bronze e de ferro (sc. das armas) e não de terra, chegando mesmo a afirmar que as muralhas induzem moleza nos habitantes (cf. Lg., VI, 778c-e).

duas soluções em atenção ao diferente nível de cada função social. Aristóteles apresenta uma primeira solução que consiste em distribuir os συσσίτια ao longo da fortificação e em que aos magistrados e sacerdotes ficaria reservado um lugar de maior visibilidade e comum a ambos (o que significa, em uma ordem graduada do espaço, a maior importância da autoridade política e da autoridade religiosa e até a subordinação da primeira a esta última, em casos particulares que excluam, por ordem divina, tal acoplagem). Continuando nessa ordem graduada, o lugar inferior ficaria reservado a uma das ágoras, a ágora dita ‘livre’ (ἐλευθέρα), à semelhança de uma existente na Tessália. Segundo o contexto imediato, o nome é justificado em termos de afastamento do universo das profissões produtivas desse espaço (artesãos, agricultores, mercadorias). Por último, junto dessa ágora alta e dada a sua função de lugar do tempo livre, poderia colocar-se o ginásio. A outra ágora, a do comércio ― ora denominada τῶν ὠνίων ora τῶν ἀναγκαῖα ἄγορα ― ficaria em outro lugar, inferior, acessível em termos de entrada e saída de mercadorias, quer importadas por mar quer provenientes da parte rural da pólis.181

Aristóteles termina esta secção, relativa às duas ágoras, com o paralelismo da distribuição espacial dos edifícios das duas mais importantes funções da pólis: tal como os sacerdotes devem ter o seu lugar nas imediações do templo, assim também os magistrados, em atenção às suas funções devem ficar sediados perto da ágora de negócios.182

Portanto, a cidade é pensada em vários aspectos no tratado aristotélico: desde as questões teóricas fundamentais até determinadas questões urbanísticas sempre equacionadas com as opções do autor.

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