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6. Objecto da investigação: a obra e a personalidade de Enea Silvio Piccolomini,

1.1. A epistolografia no séc XV

A epistolografia como género codificado e praticado não é uma inovação do Renascimento, pois a ars dictaminis já tinha grande importância na educação e na prática literária medievais. O que vem pôr em questão, sem a abolir de todo, a teoria medieval da epistolografia, a ars dictaminis, é a descoberta das cartas de Cícero: primeiro, o códice das Epistolae ad Atticum em 1345, por Petrarca; em 1392 o códice das Epistolae ad familiares por Salutati. As Epistolae ad familiares tornar-se-ão, aliás, o livro de texto de alguns dos cursos de Guarino. De um documento oficial, a carta passa a uma conversação entre amigos ou familiares.1 Embora ao longo do Renascimento o género evoluísse para um formalismo principalmente haurido em Cícero, a flexibilidade era, não obstante, a sua característica essencial. Se, como afirma Cecil Clough, até 1450 a imitação de Cícero era a regra, a partir de então, cresceu a procura de cartas de humanistas contemporâneos.2 Justamente Piccolomini é um dos modelos do género recomendado até por Erasmo― 3 , o que, conjugado com o conteúdo da sua produção epistolar, explica a profusão de incunábulos do autor.

Note-se ainda, no que concerne às características do género epistolar renascentista, que a carta humanista, sob a aparência de uma emulação estética da prosa clássica, é não raro um instrumento de acção política, diplomática ou cívica.4 Nesse sentido, não surpreende que

1 De forma que alguns autores falam em sobreposição da teoria medieval e da nova teoria renascentista:

“The result of this dual heritage is that Renaissance manuals of letter-writing often quoted the Classical topos that the letter is the mirror of the soul or cited ancient distinctions between letter and other forms of composition, such as oratory, philosophy, and history, then believed those claims by offering detailed instructions on letter writing as an exercise in rhetoric preparing adolescents for the professions and for public office” (HENDERSON, Judith Rice, “Humanist letter writing: private conversation or public forum?” in HOUDT, Toon van [et al.] (edd.), Self-presentation and social identification: the rhetoric and pragmatics of letter writing in early modern times, Leuven, Leuven University Press, 2002. p. 17).

2 CLOUGH, Cecil H., “The cult of Antiquity: Letters and Letter Collections,” in IDEM (ed.), Cultural

Aspects of the Italian Renaissance: Essays in Honour of Paul Oskar Kristeller, Manchester, Manchester University Press; New York, Alfred Zambelli, 1976, p. 38. Segundo Cecil H. CLOUGH, a moda das cartas editadas em livro começou verdadeiramente após 1470. Cf. ainda HENDERSON, “Humanist letter...,” p. 25.

3 CLOUGH, “The cult of Antiquity...,” p. 35.

4 Cf. BURTON, Gideon, “From Ars dictaminis to Ars conscribendi epistolis [sic]. Renaissance letter-writing

manuals in the context of humanism,” in POSTER, Carol; MITCHELL, Linda C. (edd.), Letter-writing manuals and instruction from antiquity to the present : historical and bibliographic studies, Columbia (SC), University of South Carolina Press, 2007, pp. 88-101. A eloquência considerada nos seus efeitos pragmáticos e, nesse sentido, um saber de muito mais difícil aprendizagem, é algo que o próprio Piccolomini afirma no seu Libellus dialogorum

grande parte do epistolário piccolominiano se apresente como um sumário informativo, dir- se-ia jornalístico, sobre a situação, os eventos políticos ou os negócios diplomáticos de uma nação.

1. 2. A epistolografia como uma obra

Duas cartas ao cardeal Zbigniew Olesnicki mostram até que ponto Piccolomini prezava o epistolário como parte da sua obra e como tinha um critério sobre a sua organização. Com efeito, na primeira dessas cartas, datada de 16 de Julho de 1450, Piccolomini conta o início da edição do seu epistolário dividido em dois volumes de cartas a que chama ‘seculares’ e um de cartas designadas ‘episcopais’. O critério, além de biográfico, era acompanho de um juízo. As cartas seculares caracterizavam-se pela sua trivialidade, enquanto as ‘episcopais’ primavam pelo ‘nervo’, pela moderação e pela sensatez (plus salis):

Epistolas meas, quibus amicos alloquor, tibi ut ederem sepius flagitasti. volui tuo desiderio morem gerere, commisi librario meo, non ut optarem terso5 opus ut transcriberet. ego interim in

Histriam sum profectus. duo sunt epistolarum volumina, alterum secularium, alterum pontificalium. seculares sunt littere, quas ante pontificatum mihi delatum conscripsi; quicquid postea scriptum est, ex pontificio6 nomen habet. cum redii ex Tergesto, comperi alterum

volumen absolutum secularium litterarum. hoc correxi dignationique tue mox transmitterem [...] nugas quam plures continet, quas dum lego mei me pudet, nec ullo pacto tantas ineptias in lucem darem, nisi tua me cogeret auctoritas, cui negare nihil possum. aliud quod modo scribam nihil habeo. pontificalium litterarum liber, cujus faciam copiam, minus enim stultitie et plus, ut mihi videtur, nervorum habet plusque salis.”7

Só os códices das cartas seculares foram enviados ao cardeal polaco em Maio do ano seguinte. Nessa altura Enea não se coibiu de acrescentar mais uma vez o caveat relativo à trivialidade e à imaturidade que nelas se revela:

Adest mox tabellarius [...] [dicit vos] petere volumen epistolarum [...]. epistole, ut ante dixi, me abeunte hic transscripte manserunt usque in hanc diem neque petite neque vocate; [...] ego illas ad vos mitto non honorandas sed vestro potius acri et gravi judicio corrigendas expoliendasque. nihil ibi vestris moribus vestraque dignitate dignum reperietis, seculares non de generalis Concilii authoritate et gestis Basileensium (ver texto citado infra p. 220).

5 Terso: sic WOLKAN em vez de tersum.

6 Scriptum est, ex pontificio: em WOLKAN há um ponto e vírgula depois de est. Pontificium tem aqui o

sentido de pontificatus ou dignitas pontificis (ver DU CANGE, s.v. Pontificium); cf. Commentarii, I, 33, p. 178: qui meliores iudicabantur et summo pontificio digniores (todas as citações são da edição de TOTARO, salvo indicação em contrário).

pontificales epistole sunt; lusimus juvenes nondum sacramentis ecclesiasticis initiati, sapiunt omnia seculum, que ante pontificatum scripsimus et fortasse nimis mundiales fuimus. nunc tum etas, tum dignitas aliam vitam, alios mores, alia scripta ex me postulant. ideo, que post adeptum episcopatum scripsi, in aliud volumen redigi curo, cujus etiam aliquando poteritis fieri particeps, si vos meas ineptias legere juvat. atque hec de nostris epistolis.8

Podemos concluir deste passo que Enea tenta inculcar nos seus leitores a ideia de que há uma linha de água a separar o seu período secular e o seu período clerical, como se de diferentes personae se tratasse. A avaliar pela tendência, comum nos estudos biográficos, de separar um Enea humanista e de viver mundano, de um Enea eclesiástico e convertido, bem se pode dizer que o logrou.9 No entanto, o epistolário não é homogéneo sob um outro aspecto que não esse critério (auto-)biográfico. Na verdade, existem na sua correspondência cartas-tratado (como por exemplo o De ortu et auctoritate imperii Romani); cartas-ficção (e. g. das quais a mais célebre é a História de dois amantes); relatórios (as cartas escritas à cidade de Siena durante o Concílio de Basileia); cartas a amigos, familiares e conhecidos. Portanto, é preciso ter em mente estes usos diversos da correspondência para uma devida apreciação das descrições de cidades que nelas comparecem.

1. 3. Descrever uma cidade e escrever uma carta

No que diz respeito ao tema deste trabalho importa perguntar porque escreve sobre uma cidade sob a forma de carta? A resposta tem de ser procurada na ficcionalidade própria do género epistolar.

Tal como Antonino Musumeci analisou, o acesso à dimensão ficcional da epistolografia concretiza-se pela enunciação de um remetente; de um destinatário; de uma saudação que “nel suo porsi immediatamente elimina tempo e spazio nell’hinc et nunc della communicazione epistolare” e que inicia a comunicação epistolar; e, por último, de uma saudação.10

8 WOLKAN III/FRA 68, ep. 4, a Zbigniew Olesnicki, Viena, 24 de Maio de1451, p. 9.

9 O facto é notado por BALDI, Barbara, “La corrispondenza di Enea Silvio Piccolomini dal 1431 al 1454.

La maturazione di un’esperienza fra politica e cultura,” estratto da Reti Medievali Rivista, 10 (2009), disponível no URL <http://www.storia.unifi.it/_RM/rivista/saggi/Baldi_09.htm>, consultado em 29-10-2009.

10MUSUMECI, Antonino “L’Epistolario dei Enea Silvio Piccolomini: il discorso sulla letteratura, in SECCHI

TARUGI, Luisa Rotondi (a c. di), Pio II e la cultura del suo tempo: atti del I Convegno Internazionale, 1989, Milano, Guerini e Associati, 1991, p. 377.

O que se segue, sendo embora um percurso pelas descrições de cidades nas cartas, não pode ser entendido sem a devida atenção a estes aspectos da ficcionalidade epistolar.

Com estes pressupostos em mente, passamos agora às cidades que surgem no conjunto epistolar e que motivaram uma descrição por parte do autor.

A DESCRIÇÃO DE GÉNOVA

No Outono de 1431, Enea, recém-nomeado secretário do bispo Domenico Capranica, acompanha o seu patrono ao Concílio de Basileia. A viagem fez-se em parte por mar, de Piombino a Génova. A estada em Génova inspirou-lhe a descrição que enviou depois ao seu amigo Andreozio Petrucci.1

Embora a carta não esteja completa, pois o manuscrito que a transmite apresenta uma lacuna inicial,2 o texto apresenta alguma variação de registo comunicativo e de diegese com implicações na respectiva interpretação. A estutura e os tópicos da laus urbis presentes no texto podem ver-se no esquema que se segue:

1 WOLKAN I/FRA 61, ep. 6, a Andreozio Petrucci, Milão, 24 de Março de [1432], pp. 7-12.

2 Embora a autoria ou o facto de se tratar de uma “carta” estejam fora de dúvida por causa da referência

que se encontra na missiva seguinte, a Giorgio Andrenzio, de Março de 1432: Andreocio Petrucio nostro litteras dedo amplissimas, ubi Genuam ejusque cunctos mores pro ingenio comprehendo, quas tibi ostendi nomine meo exorabis (WOLKAN I/FRA 61, ep. 7, p. 12).

Texto Tópicos Estrutura

[lacuna do mss.] [Início da carta]

optarem in presentia mecum esses. urbem enim cerneres (p. 7)

(situs, aedificia)

descrição de Génova hec de situ urbis atque edificiis

notanda existimavi. Superest hominum ritus moresque referre. (p. 8)

habitantes, mores

Hec erant, mi suavissime Andreocci, que me scribere compellebant, neque enim poteram in tanta rerum

admiratione letari, nisi tecum gratarer prius. (pp. 10-11) Epílogo

O início é um conspecto do sítio pontuado por observações previsíveis, agendadas no programa da laus urbis: uma cidade situada sobre uma colina, no sopé de montes abruptos, um porto com uma enseada protegida por um molhe, com a profundidade ideal para o tornar um abrigo seguro para as embarcações (statio ibidem navibus satis fida), o aparato das embarcações numerosas e de grande porte, a azáfama do porto com a circulação de barcos de diversas proveniências (he quidem ab orienti, ille ab occidenti sole, ut aspicias quotidie diversa hominum genera incognitosque et incultos mores).3

Neste conjunto, o porto e a zona envolvente com os seus sumptuosos palácios chamam a atenção de Enea. Além dos palácios junto ao porto, dos quais salienta o uso abundante de mármores e as esculturas na fachada, Enea notou a grandeza do pórtico e a sua variedade de lojas e de mercadorias.4

O resto da cidade, que se estende colina acima, é descrito sumariamente: residências nobres (sedes egregiae), igrejas (templa deo immortali dedicata, no jargão humanista de Piccolomini) e um arruamento estreito. As residências nobres competem em magnificência entre si. As igrejas, porém, no juízo de Piccolomini, ficam entre, por um lado, a falta de dignidade que correspondesse à dimensão da cidade (quamvis decora non tamen digna tanta

3 WOLKAN I/FRA 61, ep. 6, p. 7.

4 Extant quoque magnifica in ipso portu palatia, qua urbem tangit, marmorea undique celoque minantia,

ornamentis columnarum decora nimis, pleraque sculpta figurisve insignita. subtus vero porticus passuum fere mille longitudinis, ubi quevis mercimonia possis emere (ibidem, p. 7).

urbe) e, por outro, a cópia de riqueza (vero enimvero ditissima sepulturisque nobilium mire decorata) em que se incluem as relíquias, tão veneradas localmente.

Somente no epílogo da sua laus Piccolomini regressa à monumentalidade de Génova, quando exprime uma apreciação relativa ao tamanho dos subúrbios da cidade e ao seu potencial comparado com as principais cidades italianas:

sed parum dixi, nam pro merito civitatis hujus omnis laus esset inferior, quod si magnitudinem ejus atque fastigium ejus velis altius examinare, hoc tibi sufficiat argumento, quoniam Veneti noningentos jam annos in multiplicandis opibus edibusque construendis explevere, ii fere totidem, ut ita loquar, ad dissipandas copias ac edificia diruenda. multo tamen nobilior Janua quam Venetia, si qualitatem hominum urbisque decus tueri velimus, sed pecuniarum nolo me judicem facere. unum denique non pretermittam. suburbia videlicet palatiaque civitati adjacentia alteras Venetias Florentiamve construerent, quibus et ipsa Janua cedit.5

Afinal onde estava o decus urbis na sua descrição? A menos que se tome a epigramática descrição da arquitectura palaciana como o maior conjunto monumental da cidade capaz de a colocar ao lado de Florença e Veneza...

De facto, a matéria principal da descrição é constituída pelos mores dos seus habitantes diferenciados segundo o seu género. A parte masculina da população, além dos laudatórios atributos de porte corporal, ostenta sobretudo as virtudes masculinas da honestidade, da altivez, da coragem, da resistência:

sunt itaque viri honesti, corporis longi, quoque aspectu graves, ceterum superbi et videntur et sunt. ingenio plurimum valent, animi magnitudine nullis inferiores gentibus, laborum vigiliarumque atque inedie patientes. incredibile dictu est, que in mari gerant, quibus se periculis opponantur aut quantas fortune superent angustias.6

Dos homens servem como amostra os marinheiros e, em particular, o mestre da embarcação em que seguiam. O elogio é contaminado pela ironia do comentário segundo o qual a resistência e valentia dos Genoveses se baseia afinal na cobiça pelo lucro e pela riqueza (ceterum lucri divitiarumque dulcedo leviora quevis discrimina reddit).7 Em seguida esse interesse pela actividade comercial é caracterizado como tão exclusivo que motiva o desinteresse dos homens por tudo o resto:

5 Ibidem, p. 10. 6 Ibidem, p. 8. 7 Ibidem, p. 8.

de operibus mulierum nullus inquirit magisque ipsi imperio mulierum subditi quam ille virorum. scientie parum cupidi grammaticen ad necessitatem student, cetera studiorum genera parvi faciunt.8

Por isso em nenhuma outra matéria se entusiasmam tanto os Genoveses como em uma altercação em acto de compra ou venda. A partir daqui a descrição concentra-se na outra metade da população, as mulheres, e assume um tom satírico. Génova torna-se o paraíso das mulheres. Não que seja uma inversão carnavalesca da sociedade, mas antes a cidade ideal do ponto de vista do desejo expressa na equivalência paradisus feminarum/paradisus delitiarum.9 O carácter subversivo das mulheres de Génova é a magna libertas, que lhe é atribuída distintivamente.10 Sob o pano de fundo da política italiana, essa libertas é uma caricatura do conceito fundamental do ideário político florentino bem familiar a Piccolomini.11 Embotada, sem qualquer relevância política, a libertas da população feminina é a liberdade sexual que não põe limites nem à voluptas feminina (ubi mulieribus nichil desit ad voluptatem) nem à iocunditas masculina (locum amenissimum, quo qui inhabitet, nulla jocunditate careat), sendo que no desejo masculino enredado nessa libertas de costumes, se inclui o autor (de quibus multo facilius principium quam exitum faciemus):

mira prorsus res est, ut cum omnes aliorum12 uxoribus afficiantur illarumque jungantur

amplexibus, de suis nil sentiant impudice. qua propter magna est mulierum in hac civitate libertas, quod, si qui paradisum feminarum Januam nuncupent, minus in errorem incidant, quem interpretari aliter nescio nisi locum amenissimum, quo qui inhabitet, nulla jocunditate careat. cujusvis modi feminis est Janua, equidem paradisus omnium delitiarum, ubi mulieribus

8 Ibidem, p. 8.

9 “Es scheint fast so, als habe er sein Wunschbild eines Paradieses der freien Liebe in die Dinge

hineinprojiziert” (VOIGT, Klaus, Italienische Berichte aus dem spätmittelalterlichen Deutschland von Francesco Petrarca zu Andrea de’ Franceschi, Stuttgart, Ernst Klett, 1973 (Kieler Historische Studien; 17), p. 101.

10A teoria de que o zelo masculino de enclausurar as mulheres, em vez de as preservar da infidelidade,

ainda as precipita mais para o delito, é explicada como uma idiossincrasia italiana na novela História de dois amantes (enviada em carta a Marianno Sozzini). Aí o narrador comenta a primeira confissão amorosa de Lucrécia a Euríalo, depois de sucessivas negações fingidas, nestes termos: “É bem conhecido este defeito entre os italianos: cada qual enclausura a sua mulher como se aferrolhasse um tesouro, a meu ver sem utilidade nenhuma. Pois quase todas as mulheres são assim: desejam mais que tudo aquilo que lhes é negad o. […] A mulher é um animal selvagem e não há freio que a domine.” (PICCOLOMINI, História de dois amantes, p. 104).

11A melhor expressão é a Laudatio Florentinae urbis de Bruni, mas há outras, como a carta da cidade ao

Concílio de Basileia como recomendação para a candidatura a futura sede do Concílio, em que se pode ler entre os argumentos: Nostra enim civitas libertatem habet purissimam et securitatem omnimodam (apud CECCONI, Eugenio, Studi storici sul Concilio di Firenze, con documenti inediti, o nuovamente dati alla luce sui manoscritti di Firenze et di Roma. Parte prima: antecedenti del concilio; documenti e illustrazioni, Firenze, tip. all’ insegna di S. Antonio, 1869, doc. C, p. CCLXXIV.

nichil desit ad voluptatem. accipe igitur mores istarum, de quibus multo facilius principium quam exitum faciemus.13

As particularizações sobre as mulheres prosseguem com a referência ao seu aspecto externo. Retoma-se, portanto, o plano visual, plano que ficara para trás com a referência inicial ao sítio e edifícios da cidade. Melhor dizendo, retoma-se o plano do olhar e das suas cumplicidades, pois a relação não é a mesma que entre observador e edifícios. Aliás, temos no texto, e neste passo em particular, as marcas de uma relação tão fundamental quanto a relação entre quem descreve e quem é descrito: a relação entre o escritor da carta e o destinatário. Se Piccolomini faz uma comparação entre as mulheres genovesas e as de Siena, em carta a um humanista de Siena, Andreozio Petrucci, e se nessa comparação envolve o destinatário (nostre tamen magis delicatiores), é porque a carta contém, entre outros, um código erótico. Deste código fazem parte as apreciações sobre temperamento feminino, beleza corporal ou a moda. Nesse código estará igualmente o gosto satírico pela hipérbole, patente já nas afirmações anteriores assim como no excerto que segue (e. g. smaragdis sive adamantibus digitos impediunt, quibus universa Persis atque India geritur):

sunt equidem formose, nostre tamen magis delicate, commendantur vero, quia magne sunt et candoris non exigui. utuntur vestibus sumptuosis, argento auroque gravibus ac lapide precioso. /p. 9/ smaragdis sive adamantibus digitos impediunt, quibus universa Persis atque India geritur. ornatus enim causa nulli ignoscunt sumptui. nichil preterea domi gerunt. illis cure non acus neque colus est, namque mancipia queque domus habet abunde, que filandi et coquendi studio incumbunt.14

Termina este passo com a insinuação de que as mulheres não faziam os habituais trabalhos femininos (cozinhar e fiar) deixando-os ao cuidado dos escravos (mancipium). Em suma: uma vida que não conhece divisão entre trabalho e ócio, mas apenas ócio e que, por isso mesmo, lhes permite satisfazer os amantes em qualquer dia seja ele festivo ou não (otiose sane omnes, ab laboribus aliene, neque festos opperiuntur dies, quibus a sollicitudine quiete satisfaciant amatoribus).15

O que se vê por toda a cidade é uma efervescente actividade amorosa: pares que namoram, trocam sinais, falam, segredam... O comportamento é explicado, em seguida, como sendo o fruto de uma precoce aprendizagem amorosa que dispensa mesmo o recurso à

13WOLKAN I/FRA 61, ep. 6, p. 8. 14Ibidem, pp. 8-9.

autoridade ovidiana: occipiunt quoque pueri ab ineunte etate diligere. discunt amandi precepta, ne, cum adoleverint, libro illo indigeant, quem de amoris disciplina fecit Ovidius.16 Em suma, os ardis femininos aguardam os homens por toda a parte:

cerneres etiam propter vestibula, quibus president domine nobilissime, laqueos fieri, quibus decipiantur, si qui nimium conspiciant illarum vultus. ex quo, fit, ut nonnulli cadant, qui pre forma mulierum laquei sunt immemores. inest tamen hec mulieribus urbanitas, ut exterris patefaciant insidias.17

E o próprio Piccolomini quase caiu em uma dessas ciladas não tivesse sido salvo por … outra mulher:

ego etiam, cum illo errore peccarem, ne plus semitam quam earum ornamenta tuerer, a generosa admodum domina monitus insidias evasi, quibus extemplo cecidissem, ni certior fuissem redditus.18

Como se verá adiante, a carta pode ser lida como uma primeira experiência literária, resultante dos anos de aprendizagem de Piccolomini, mas pelo que até agora se viu, o aspecto dominante desta laus urbis constitui-se em torno da moral conjugal e doméstica. Uma moral conjugal que se caracteriza por um vazio do poder masculino cujos interesses mais sérios parecem estar antes no comércio do que na vigilância da libertas feminina. Como corolário dessa desordem conjugal, que fornece um dos traços mais marcantes ao espaço público, também o espaço doméstico é marcado por essa outro aspecto da desordem. Mulheres que

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