• Nenhum resultado encontrado

3. A literatura filosófica, geográfica, e técnica

3.4. As cidades na geografia: Estrabão

A literatura geográfica apresenta igualmente uma contribuição valiosa para os problemas da cidade.189 Deixando de parte as escassas descrições de Heródoto e de Políbio,190 é em Estrabão que a cidade se apresenta sob diferentes perspectivas. Existe, em primeiro lugar, a explícita afirmação da cidade como estrutura quase única de ordenação política e como um estádio da civilização. Com alguma ironia, conta como os cônsules e historiadores falavam em domínio de centenas ou mesmo em milhares de poleis na Hispânia, no intuito de engrandecerem os seus feitos militares. Tratava-se para o geógrafo grego de uma utilização abusiva do termo, aplicado ao que não passava de um castro ou de uma aldeia. Nem sequer o modo de vida dos autóctones se poderia apelidar de urbano.191 E na mesma linha de pensamento, ao expor a teoria platónica da evolução das localizações de povoamentos humanos de acordo com Platão, fala de três estádios de civilização humana em que o mais elevado é o politikos, ou seja, o viver na cidade.192

Em segundo lugar, a sua obra caracteriza-se por uma constante observação das cidades, que lhe merece por parte de um dos grandes teóricos modernos do urbanismo o epíteto de “apaixonado das cidades.”193 Ora, a leitura da sua geografia não deixa dúvidas quanto à

189 Sobre a geografia como género literário ver PRONTERA, Francesco, “Prima di Strabone: materiali per uno

studio della Geografia antica come genere letterario,” in IDEM (ed.), Strabone. Contributi allo studio della personalità e dell’opera. I, Perugia, Universita degli studi, 1994, pp. 189-256.

190 Para essas descrições cf. PRONTERA, Francesco, “Vision...,” p. 25. Note-se ainda, no domínio da

literatura geográfica, que autores latinos como Plínio-o-Velho ou Pompónio Mela, que tanta importância terão em épocas posteriores, não apresentam nada digno de nota. Até porque estes autores escrevem na tradição da literatura periegética que se apresenta como uma lista de lugares costeiros, acompanhados de alguma particularidade (maravilha ou curiosidade) com muito pouco lugar para outros desenvolvimentos. Cf. DESANGES Jehan, “Les très grandes villes du monde romain d’après les «géographes» de langue latine,” in Mélanges de l’Ecole française de Rome. Antiquité, 106, 2 (1994), pp. 901-19.

191 Cf. ESTRABÃO, Geographika, III, 4, 13 (de acordo com a edição: Geographika, mit Übersetzung und

Kommentar hrsg. von Stefan Radt, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 2002-). O equívoco provinha do próprio léxico latino que aplica ora populus ora civitates (em oposição a oppida) ao grupo étnico a que se pertence. Ver MOMMSEN, que cita a este respeito as listas plinianas da descrição da Hispania citerior (Le droit public..., t. VI/1, p. 2, n. 1).

192 Cf. Estrabão, Geographika, XIII, 1, 25 s.

importância das cidades e da apreciação de vários dos seus aspectos, como o exemplo de Roma ou Alexandria podem demonstrar.194 Consideremos a primeira dessas descrições.

Consequência da identidade cultural bipolar de Estrabão, i. e., do facto de ser um grego que escreve para um público romano, a sua apreciação de Roma inicia-se com um contraste, expresso em termos que já então eram um lugar comum, entre o urbanismo das colónias gregas e o de Roma. Enquanto os Gregos visavam a beleza, a posição defensiva e a fertilidade do sítio, os Romanos preocuparam-se com infraestruturas viárias, de saneamento e abastecimento.195

Claro que poderíamos deduzir do texto de Estrabão, sobretudo das apreciações sobre as cidades helenísticas, que o urbanismo do mundo grego não foi sempre todo igual.196 Assim como as afirmações que se seguem nomeadamente, a apreciação ― plena de admiração e de gozo estético do Campo Márcio, do Mausoléu de Augusto e do Fórum ― acabam por desdizer essa tão esquemática oposição entre beleza grega e utilidade romana. Um exemplo disso é a equiparação da sofisticada estrutura de abastecimento de água da cidade a outros embelezamentos (agalmata) que tiveram a marca de Agripa:

Τοσοῦτον δ ἐστὶ τὸ εἰσαγώγιμον ὕδωρ διὰ τῶν ὑδραγωγίων ὥστε ποταμοὺς διὰ τῆς´ πόλεως καὶ τῶν ὑπονόμων ῥεῖν, ἅπασαν δὲ οἰκίαν σχεδὸν δεξαμενὰς καὶ σίφωνας καὶ κρουνοὺς ἔχειν ἀφθόνους· ὧν πλείστην ἐπιμέλειαν ἐποιήσατο Μάρκος Ἀγρίππας, πολλοῖς καὶ ἄλλοις ἀναθήμασι κοσμήσας τὴν πόλιν. Ὡς δ εἰπεῖν, οἱ παλαιοὶ μὲν τοῦ κάλλους τῆς Ῥώμης ὠλιγώρουν, πρὸς ἄλλοις μείζοσι καὶ´ ἀναγκαιοτέροις ὄντες· οἱ δ ὕστερον, καὶ μάλιστα οἱ νῦν καὶ καθ ἡμᾶς, οὐδὲ τούτου´ ´ καθυστέρησαν, ἀλλ ἀναθημάτων πολλῶν καὶ καλῶν ἐπλήρωσαν τὴν πόλιν. ´ 197

Em um segundo momento, a oposição passa a ser entre, por um lado, Romanos antigos que dedicavam mais atenção ao que ao que era mais importante e necessário do que à beleza, e, por outro, Romanos do seu tempo que encheram a cidade de inúmeros e belos

194Em sentido contrário à crítica de CLASSEN, que desqualifica as suas descrições como limitadas ao aspecto

económico (Die Stadt..., p. 9), a leitura da obra de Marcel POÈTE não deixa de ser luminosa. Aí podemos ver como meras descrições escondem pormenores importantes acerca do urbanismo. Ver ainda a análise mais sistemática de CARO BAROJA, Julio, Paisages y ciudades, Madrid, Taurus, 1981, esp. cap. “Morfología de las ciudades antiguas. (Las ciudades en la geografía de Estrabón),” pp. 63-121.

195Ταῦτα μὲν οὖν ἡ φύσις τῆς χώρας παρέχεται τὰ εὐτυχήματα τῇ πόλει. προσέθεσαν δὲ Ῥωμαῖοι καὶ τὰ

ἐκ τῆς προνοίας. τῶν γὰρ Ἑλλήνων περὶ τὰς κτίσεις εὐστοχῆσαι μάλιστα δοξάντων, ὅτι κάλλους ἐστοχάζοντο καὶ ἐρυμνότητος καὶ λιμένων καὶ χώρας εὐφυοῦς, οὗτοι προὐνόησαν μάλιστα ὧν ὠλιγώρησαν ἐκεῖνοι, στρώσεως ὁδῶν καὶ ὑδάτων εἰσαγωγῆς καὶ ὑπονόμων τῶν δυναμένων ἐκκλύζειν τὰ λύματα τῆς πόλεως εἰς τὸν Τίβεριν (ESTRABÃO, Geographika, 5,3,8).

196O que não significa, todavia, que Estrabão tenha consciência dessa evolução histórica. 197ESTRABÃO, Geographika, V, 3, 8.

ornamentos.198 Tal beleza, segundo Estrabão, devia-se à munificência de Pompeio, de César, de Augusto e da sua família199 — no que temos um exemplo de como o geógrafo via nestas figuras o equivalente ao soberano helenístico que se caracteriza, na sua relação com as cidades, pelo seu evergetismo. Mas além da beleza, Estrabão coloca uma nota de vitalidade na vida da Urbe ao descrever o Campo Márcio. Aí podemos observar, e até com uma nota de admiração da parte do autor, a cidade viva, com uma multidão de praticantes de vários desportos que frequentam o Campo:

Καὶ γὰρ τὸ μέγεθος τοῦ πεδίου θαυμαστὸν ἅμα καὶ τὰς ἁρματοδρομίας καὶ τὴν ἄλλην ἱππασίαν ἀκώλυτον παρέχον τῷ τοσούτῳ πλήθει τῶν σφαίρᾳ καὶ κρίκῳ καὶ παλαίστρᾳ γυμναζομένων, 200

Além disso, esse espaço é um exemplo de relação optimizada entre natureza/arte (πρὸς τῇ φύσει προσλαβὼν καὶ τὸν ἐκ τῆς προνοίας κόσμον):

Καὶ τὰ περικείμενα ἔργα καὶ τὸ ἔδαφος ποάζον δι ἔτους καὶ <αἱ> τῶν λόφων στεφάναι τῶν ὑπὲρ τοῦ ποταμοῦ μέχρι τοῦ ῥείθρου σκηνογραφικὴν ὄψιν ἐπιδεικνύμεναι δυσαπάλλακτον παρέχουσι τὴν θεάν. 201

A descrição do Campo Flamínio mostra mais uma vez a preocupação em sublinhar as benfeitorias dos políticos do final da República até Augusto e, sobretudo, a dimensão da sua monumentalidade merece a Estrabão um tom encomiástico que apouca toda a restante cidade, quando comparada, como se fosse um acessório:

Πλησίον δ ἐστὶ τοῦ πεδίου τούτου καὶ ἄλλο πεδίον καὶ στοαὶ κύκλῳ παμπληθεῖς καὶ ἄλση´ καὶ θέατρα τρία καὶ ἀμφιθέατρον καὶ ναοὶ πολυτελεῖς καὶ συνεχεῖς ἀλλήλοις, ὡς πάρεργον ἂν δόξαιεν ἀποφαίνειν τὴν ἄλλην πόλιν.202

Depois do Campo Márcio e do Campo Flamínio, a descrição termina no coração de Roma, no Fórum com o Capitólio, o pórtico de Lívia, o Palatino, e novamente uma nota encomiástica: se, para quem estava no Campo Márcio, o resto da cidade não passava de um acessório, agora diante do Fórum e da sua envoltura esquece-se todo o resto.

A forma como o geógrafo apresenta Roma, e independentemente do grau de consciência com que o faz, assemelha-a às cidades helenísticas ―cidades sem passado, “todas

198 Ibidem, V, 3, 8. 199 Ibidem, V, 3, 8. 200 Ibidem, V, 3, 8. 201 Ibidem, V, 3, 8.

202 Ibidem, V, 3, 8. Sobre o Campo Flamínio ver o comentário ad. loc. (ibidem, vol. 6, p. 85) de Stefan

presente,” na expressão de Marcel Poëte,203 nascidas da vontade de um monarca―, e que testemunha no seu renovamento a marca de uma personalidade, a de Augusto, acompanhado dos seus familiares e dos seus colaboradores, nomeadamente, de Agripa. Não é de estranhar, aliás, este tom encomiástico quando se conhece a orientação augustana da sua obra.

A descrição apresenta, portanto, elementos que servem de resposta à critica de Moses Finley a respeito dos limites conceptuais das descrições antigas de cidades – descrições a que lapidarmente chamou “abreviaturas” ou “transcrições estenográficas” por tomarem a definição “estético-arquitectónica” como definição social e política.204 Não se pense todavia que o património artístico fosse de somenos importância para a consciência que a cidade tinha de si. Pelo contrário, era um elemento estruturante, por excelência, da sua identidade política como o mostram os roubos de arte e as suas consequências.205

3. 5. Literatura técnica: Vitrúvio

O tratado de Vitrúvio sobre arquitectura constitui um exemplo de literatura técnica que deve ser considerado em uma investigação sobre a cidade no âmbito da literatura humanística. Todavia, é legítimo questionar a possibilidade de falar da cidade como problema na obra de Vitrúvio.206 A resposta de um grande pensador da cidade como Henri

203PÖETE, Introduction à l’urbanisme..., p. 267. Podemos distinguir um aspecto helenístico na própria

cidade enquanto recriada por e à imagem de Augusto e também na impressão resultante do enfoque de Estrabão, que selecciona os conjuntos de maior monumentalidade. Cf. COARELLI, Filippo, “Roma, la città come cosmo,” in NICOLET [et al.] (dirs.), Mégalopoles..., p. 304. Ver ainda, na mesma obra, sobre as características da nova “cidade dinocrática” helenística (no caso concreto, Alexandria) GROS, Pierre, “La construction d’un espace méditerranéen et les premières mégalopoles (Ve siècle av. J. C. - VIe siècle ap. J. C.),” pp. 65-85.

204FINLEY, Moses I., Ancient Economy, second edition, University of California Press, 1999, p. 124. Ver

também CRACCO RUGGINI, Lellia, “La città nel mondo antico: realtà e idea,” in WIRTH, Gerhard (Hrsg.), Romanitas, christianitas: Untersuchungen zur Geschichte und Literatur der römischen Kaiserzeit: Johannes Straub zum 70. Geburtstag am 18. Oktober 1982 gewidmet, Berlin [et al.], Walter de Gruyter, 1982, p. 68.

205Veja-se o que diz Rainer Bernhardt: “Die Schmückung mit Kunstgegenstände war für die Städte ein

Mittel, ihre politische Bedeutung für jedermann sichtbar herauszustellen und — soweit es sich um alte Kunstwerke handelte — auf ihre alte Tradition politische Selbstgefühl hinzuwiesen. Die Pflege einer solchen Tradition stärkte das politische Selbstgefühl einer Stadt, und es liessen sich aus ihr Ansprüche für die Gegenwart ableiten. Der Verlust solcher Kunstgegenstände traf die Städte daher an einer neuralgischen Stelle” (BERNHARDT, Polis..., p. 187).

206Em trabalho inédito Pierre GROS questionava a possibilidade de falar de um urbanismo vitruviano.

(“Peut-on-parler d’un urbanisme vitruvien”, proferido no âmbito de um colóquio em Londres (15 de Dezembro de 1986) e que deveria ter sido publicado na série “Warburg and Courtauld Institute Surveys and Texts” (de facto, nunca chegou à publicação segundo informação do próprio Warburg and Courtauld Institute). Ver mais recentemente FLEURY, Philippe, “L’urbanisme vitruvien,” in LECOCQ, Françoise (coord.), De l “urbs” à la ville,᾿ Caen, Presses Universitaires de Caen, 2001 (Cahiers de la Maison de la Recherche en Sciences Humaines; 25), pp. 45-74.

Lefebvre é negativa. De facto, embora admita que haja na obra vitruviana a construção de um código espacial que parte dos elementos mais simples (água, ar, luz, areia, tijolos...) e chega até às questões de estilo, afirma, contudo, que a cidade nunca é tratada directamente.207 Todavia, e em oposição a essa perspectiva, temos de reconhecer que algumas partes da obra dizem directamente respeito à cidade e, ao mesmo tempo, devemos notar que há um horizonte político que serve de moldura a esse código espacial.208

A cidade é directamente problematizada após a elaboração teórica sobre o estatuto disciplinar da arquitectura e os seus princípios.209 Vitrúvio começa pela eleição do lugar das cidades em função da sua salubridade, condições climatéricas e localização geográfica.210 Ao sítio segue-se a construção de muralhas e, por fim, o traçado das ruas que deve ter em conta a orientação dos ventos:211

Moenibus circumdatis sequuntur intra murum arearum diuisiones platearumque et angiportuum ad caeli regionem directiones. Dirigentur haec autem recte, si exclusi erunt ex angiportis uenti prudenter: qui si frigidi sunt, laedunt; si calidi, uitiant; si umidi, nocent.212

Ainda no primeiro livro, a enumeração dos tipos de edifícios indicia que o modelo subjacente era o da cidade. As obras dividem-se em públicas e privadas; as públicas, por sua vez, em militares (muralhas, torres, portas), religiosas (santuários e templos) e de utilidade

207 “Though he is speaking of nothing else, he never addresses it [sc. the city] directly. It is as though it

were merely an aggregation of ‘public’ monuments and ‘private’ houses (i. e. those owned by the place’s notabilities). In other words, the paradigm of civic space is barely present even though its ‘syntagmatic’ aspects — the connections between its component parts — are dealt with at length.” (The production of space, transl. by Donald Nicholson-Smith, Oxford, Blackwell, 1991, ed. orig. francesa de 1974, p. 271).

208 Sobre os destinatários do tratado observa Pierre GROS que há frases (como por exemplo uti non sint

ignota aedificantibus, exposui em II, 10, 1) que provam que “Vitruve ne s’addresse pas aux bâtisseurs ou aux techniciens du bâtiment, mais aux responsables politiques ou aux propriétaires, qui “font construire,” soit pour le compte de l’État, soit pour le leur” (VITRÚVIO, De l’architecture: Livre II, texte établi et traduit par Louis Callebat. Introduction et notes de Pierre Gros, Paris, Belles Lettres, p. 177).

209 É reveladora do desprezo por disciplinas técnicas a elaboração teórica no sentido de alçar a arquitectura e

colocá-la ao lado das disciplinas de maior prestígio cultural (como a retórica).

210 Alguns autores afirmam que as considerações sobre o sítio não são especificamente urbanísticas, pelo

contrário, constituem um requisito aplicável a qualquer construção. Cf. KNELL, Heiner, Vitruvsarchitekturtheorie. Versuch einer Interpretation, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1985, cit. por WULFRAM, Hartmut, Literarische Vitruvrezeption in Leon Battista Alberti De re aedificatoria, München [et al.], K. G. Saur, 2001, p. 152. Em sentido contrário, Philippe FLEURY considera os capítulos 4-7 do primeiro livro “Le traité d’urbanisme le plus complet que nous ait laissé l’Antiquité” (VITRÚVIO, De l’architecture: Livre I, texte établi, trad. et commenté par Philippe Fleury, Paris, Les Belles Lettres, 1990, p. XCIV da introdução).

211 Vitrúvio usa a palavra diuidere. De acordo com RUGGIU, Annapaola Zaccaria, Spazio privato e spazio

publico nella società Romana, École Française de Roma, Palais Farnèse, 1995 (Collection de l’École Française de Rome; 210), p. 161, trata-se, tal como em Lívio, V, 55, 5, de um termo técnico cujo significado é a planificação da cidade com a repartição funcional dos espaços no seu interior.

pública (portos, foros, pórticos, banhos, teatros, espaços de circulação).213 Importa notar, todavia, que a tipologia de edifícios serve de guia apenas para uma parte da obra, ou seja, os livros terceiro e quarto tratavam de edifícios religiosos, o quinto expunha os edifícios públicos, o sexto os privados. A obra era pensada como uma sistematização da arquitectura segundo um plano (um ordo), mas o critério que fundamentava este último em parte alguma é explicitado. Não obstante, a cidade é o quadro implícito da obra e essa referência aflora explicitamente, por vezes, no texto. Por exemplo, quanto o tratadista invoca o exemplo da Vrbs, Roma, a respeito das construções em altura: enquanto leis antigas impediam espessura de paredes superior a pé e meio, a espessura essa que não suportaria mais do que um piso, a realidade (res ipsa), constituída pelos factores de grandeza da cidade (maiestas urbis) e da densidade populacional, conduziu, por uma lógica diferente, a um resultado tecnicamente mais arrojado.214 Efectivamente, este passo revela como o conhecimento da realidade urbana estava presente na mento do autor.

A isto deve acrescentar-se, como sinal de ligação ao problema da cidade, a omnipresença de uma cultura urbana. Por exemplo, o livro X sobre as máquinas é justificado no prólogo em função das necessidades de soluções de engenharia para os munera. E assim se justifica plenamente, ludorum causa, e como coroamento de toda a obra (finitionem summam corporis constitutam), a exposição sistemática (ordenata praeceptis) dos princípios das máquinas.215 De facto, Vitrúvio é um dos autores mais atentos à evolução das formas humanas de construir e de aprender por observação ou por experiência a partir dos factores naturais ― atenção essa que, inversamente, comprova a consciência que o autor tem do avanço civilizacional de que a sua scientia é, a um tempo, uma expressão e um componente.216

213Ibidem, I, II, 1. 214Cf. ibidem, II, 8, 17. 215Ibidem, X, pr., 3, 4.

216Nesse sentido, há razões para considerar Plínio, Columela, Vitrúvio, Frontino como “fondatori della

civiltà urbana a Roma, civiltà che richiede ampliamento di nozioni, educazione tecnica e quindi trattati e manuali richiesti per la nuova educazione e per nuove esigenzi di consumi, con le quali l’uomo di città si differenziava da quello di campagna,” (LEVI, Mario Attilio, “Plinio e la civiltà urbana,” in La citta antica comè fatto di cultura: atti del Convegno di Como e Bellagio 16/19 giugno 1979. Org. dal Comitato promotore delle manifestazioni celebrative del XIX centenario della morte di Plinio il Vecchio, Como, Regione Lombardia, 1983, p. 22. Notem-se, no passo acerca da evolução humana das cavernas até à civilização (II, 1, 4-6), os exemplos históricos, contemporâneos, de construção primitiva (Gália, Lusitânia …): se em Aristóteles não havia qualquer possibilidade de incluir a dimensão histórica e, sobretudo, uma evolução humana que desembocasse noutra forma de vida em comunidade que não a polis, em Vitrúvio essa dimensão histórica encontra tranquila e

Mas como já se disse, há também um horizonte político que enquadra o discurso técnico do tratado. Esse horizonte torna-se evidente sobretudo pelos prefácios dirigidos ao imperador, nos quais Vitrúvio se mostra consciente da relação entre, por um lado, a sua disciplina e, por outro, a arte, a política e a ideologia augustanas217 que se consubstanciaram em renovamento urbano. Mais ainda: formula no seu texto o paralelismo entre Dinócrates/Alexandre e Vitrúvio/Augusto. O paralelismo é revelador, visto que Dinócrates não conquistou Alexandre, como afirma Vitrúvio, pela sua beleza, mas pela sedutora ideia de fazer uma cidade à imagem do monarca. E se, na beleza, o velho Vitrúvio não podia competir com o jovem Dinócrates, no saber e nos seus escritos, em contrapartida, poderia seguramente devolver a Augusto a imagem das possibilidades técnicas ao serviço do poder.218

Conclui-se, portanto, que a obra de Vitrúvio pressupõe o problema da cidade não obstante, esse problema ser pensado em termos do caso particular de Roma.

3. 6. Literatura técnica: os Regionarii

Ainda no âmbito da literatura técnica merecem relevo os Regionarii, dois escritos respeitantes a Roma com títulos e datas diferentes e conteúdos largamente coincidentes: Notitia urbis Romae regionum XIV e Curiosum urbis Romae regionum XIIII cum breviariis suis.219 Trata-se, como Claude Nicolet notou, de documentos de origem arquivística oficial, essenciais para a história urbana.220

Com efeito, é a cidade como uma entidade orgânica complexa que se dá a ver nesses escritos: mercados, bordéis, guarnições (armamentarium), indicadores estatísticos precisos (e. consistentemente o seu lugar. Sobre a evolução humana cf. ainda a teoria ciceroniana expressa em vários textos ver REBELO, António Manuel Ribeiro, “A ideia de cidade na Antiga Grécia e a actualidade dos seus valores,” in Biblos, n. s., 4 (2006), pp. 13-19.

217 RUGGIU fala de “un’accuta sensibilità nell’assecondare il nuovo rolo politico che l’ideologia augustea ai

suoi inizi, assegna alla organizzazione delgi spazi e alla costruzione delgi edifici pubblici” (RUGGIU, Spazio privato..., p. 124).

218 Cf. VITRÚVIO, De architectura, II, praef. 1-4.

219 Libellus de regionibus urbis Romae, recensuit Arvast Nordh, Lundae, C. W. K. Gleerup, 1949. Vide o

trabalho mais recente de CHASTAGNOL, André, “Les Régionnaires de Rome,” in NICOLET, Claude (ed.), Les littératures techniques dans l’antiquité romaine: statut, public et destination, tradition, sept exposés suivis de discussions par Pierre Gros [et al.], introd. de Claude Nicolet, Genève, Fondation Hardt, 1996 (Entretiens sur l’antiquité Classique; 42), pp. 179-198. A data de ambos os textos situa-se entre os anos de 337 a 368, sendo a Notitia o mais antigo.

220 NICOLET, Claude, “Fragments pour une géographie urbaine comparée: à propos d’Alexandrie,” in

g. número de insulae); tipologias habitacionais (insulae vs domus); circos e as suas infra- estruturas para o espectáculo desportivo (Circus Flaminius. Continet stabula numero quatuor factionum); equipamentos culturais como teatros acompanhados da indicação da respectiva capacidade, ou bibliotecas; diversas tipologias de edifícios religiosos (altares, aedicula, templa...). Não falta sequer um aceno à espessura histórica visível nos monumentos: termas de Cómodo, de Alexandre, Antoninas, de Décio, de Diocleciano, de Constantino...

É, por conseguinte, redutor pensar que, nestes escritos, a cidade se resume a uma enumeração de direcções e a um “inventário sem vida,”221 como o será pretender que tenham origem em algum interesse turístico ou antiquário.222

4. Recepção da literatura antiga sobre a cidade no primeiro humanismo:

Documentos relacionados