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6. Objecto da investigação: a obra e a personalidade de Enea Silvio Piccolomini,

2.1. Génova ou Baden?

Sob o ponto de vista literário, porém, a aprendizagem faz-se por meio de uma relação com outros modelos literários como é o caso de Poggio Bracciolini cuja carta sobre os banhos de Baden, escrita em 1416, serviu de modelo a Piccolomini. De facto, a Génova, como paradisus feminarum, é recortada sobre o modelo da cidade termal de Baden com a sua liberalidade de costumes, tal como vem descrita pela a pena do humanista florentino. O paradisus omnium delitiarum, ubi mulieribus nichil desit ad voluptatem é, precisamente, uma das características da estância termal como Poggio a vira.

As turbas que acorrem à estância termal suíça, divididas em nobres e plebeus (mas unidos na qualidade de amantes) são, tal como a população genovesa, escolarizadas desde tenra idade nas matérias amorosas:

innumerabilis multitudo nobilium pariter et ignobilium CC millibus passuum huc venientium, non tam valitudinis causa quam voluptatis. Omnes amatores, omnes proci, omnes quibus in deliciis vita est posita, huc concurrunt, ut fruantur rebus concupitis, multe corporum simulantur egritudines, cum animo laborent.28

No entanto, o que começa por ser uma generalidade da população acaba por ser uma particularidade feminina: em Baden como em Génova. É a mesma tendência, com efeito, para, de entre a população, singularizar as mulheres pelo desejo voraz e não menor repugnância pelo trabalho em favor do prazer. Em Génova, o trabalho, sobretudo o trabalho doméstico, ficava reservado aos escravos; em Baden as mulheres sem os seus maridos fazem-se acompanhar nas suas idas aos banhos, de escravos, parentes ou de alguma velhinha. Uma doença de corpo simulada encobre-lhes o mal verdadeiro que é de alma: o sofrimento amoroso. Assim se mostram, tal como as mulheres genovesas observadas por Piccolomini, expeditas em enganarem os maridos.29

Ao mesmo tempo, a carta de Poggio constitui uma tentativa de retratar uma sociedade diferente, sem as referências morais que lhe são conhecidas, mas que não disfarça

28POGGIO BRACCIOLINI, Gian Francesco, Lettere, a cura di Helene Harth, Firenze, Leo S. Olschki, 1984, t.

1, ep. 46, a Niccolò Niccoli, 18 de Maio de 1416, p. 133, ll. 159-164.

inteiramente as incongruências. Em vários passos afirma a ausência de ciúme masculino e a tal ponto que o epílogo da carta é uma exaltação deste regime moral que do cancro do ciúme (nesciunt id genus morbi) nem sequer conhece o nome, e que se caracteriza, além disso, pela ausência da cobiça insaciável pelas riquezas.30 Poggio convoca como termo de comparação para essa sociedade singular a politia platónica: também neste caso, julga o humanista, a partilha de tudo era o traço fundamental. Trata-se de uma idealização, obviamente. O próprio Poggio evoca essa comparação apenas para a tolerância masculina em relação às intimidades das suas mulheres (Videbant viri uxores suas a peregrinis tangi neque commovebantur, non animum advertebant, omnia in meliorem partem accipiunt. […]. Plane in Politiam Platonis convenissent, ut omnia essent communia).31 Na Génova de Piccolomini, em contrapartida, a mesma tolerância não passa disso mesmo: indiferença ou impotência para controlar a volúpia feminina. Seja como for, a imagem da cidade e das suas mulheres é inseparável da impressão que a Baden de Poggio causa em Piccolomini.

No momento de representar uma das principais cidades da Itália de Quatrocentos, o jovem Piccolomini hesita entre uma distância satírica e uma admiração, mais explícita ou mais ambígua: mais explícita, no que concerne aos aspectos urbanísticos e à dimensão da cidade, quando situada na rede de cidades de primeira linha (Florença, Milão, Siena); mais ambígua na sátira misógina, em que o registo enunciativo da carta basta para recordar que se trata de uma comunicação entre dois homens que partilham um mesmo gosto gosto, que― não é apenas literário, mas também erótico. Salvaguardadas as distâncias e o perigo de anacronismo, um paralelismo entre a epistolografia tal como a pratica Piccolomini e o romance de aprendizagem possibilita uma iluminação sobre a relação entre esta carta e os anos de formação em Siena. A cidade de onde Piccolomini acaba de sair e onde fizera os seus estudos jurídicos, Siena, era um centro fechado aos novos horizontes culturais do humanismo visto como uma corrente cultural aristocrática em oposição ao sentimento― popular local.32 Não obstante, os novos gostos iam penetrando em círculos cultos, e de tal

30Cf. ibidem, p. 134, ll. 183.

31Ibidem, p. 131, ll. 106-109. Aliás, a diferença entre nobiles e ignobiles (p. 133, ll. 159 s) não é abolida. 32Cf. VEIT, Laeto Maria, Pensiero e vita religiosa di Enea Silvio Piccolomini prima della sua consacrazione

episcopale. Roma, Libr. ed. dell’Univ. Gregoriana 1964. (Analecta Gregoriana; 139) p. 27: “Questo movimento [sc. l’umanismo] trovò le porte dello «Studio Generale» chiuse e doveva prima svilupparsi al di fuori della università senese. Era inoltre una disciplina senza canoni fissi, senza tradizioni, e Siena viveva ancora troppo fermamente attacata al suo spirito democratico popolare per cedere alla nuova disciplina propugnata

forma que, no caso de Piccolomini, mais do que o direito é a leitura dos clássicos que marca os seus anos de formação. Sabe-se, aliás, que terá produzido algumas poesias durante esses anos, nomeadamente, uma obra cujo título, Nymphilexis, — certamente um conjunto de poesias frívolas e sensuais, com alguma obscenidade ao gosto de Juvenal.33 Uma produção poética do tipo enquadra-se, ainda que com diferenças estilísticas e de modelos literários, no gosto então corrente em meios universitários.34

Atendendo a esta aprendizagem, compreende-se, portanto, o gosto patente na descrição de Génova e a inclinação do jovem Enea para a leitura de Poggio.

dall’aristocrazia.” Explicação análoga sobre como o humanismo não podia encontrar em Siena condições para o seu florescimento apresenta VOIGT, Enea Silvio I, p. 8: “Nach Fürstengunst, Staatsämtern oder Geldgewinn jagend, sonnten sie sich [sc. die Humanisten] im Glanz des päpstlichen oder visconti’schen Hofes oder dienten den reichen Aristokratien zu Florenz und Venedig. Plebeische Regierungen wie die sanesische wandten ihre Geldkräfte lieber auf neue Mittel der Macht als auf Glanz un Verherrlichung derselben.”

33Absolvi ergo libellum hunc tuo nomini dedicatum versuum ultro duo milia, quem appellavi Nymphilexim

(WOLKAN I/FRA 61, ep. 3, a Socino Benzi [Siena, finais de 1431], p. 3). Sobre essa obra ver VOIGT, Enea Silvio, I p. 221.

34Ver VOIGT, Enea Silvio, I p. 10, que nota a coexistência em juristas medievais italianos de uma

“trockensten Gelehrsamkeit” ao lado de uma “leichtgeschürzte Dichtung”. De facto, encontravam-se, por vezes, na mesma personalidade, as facetas de académico e de poeta amoroso (e. g. Cino da Pistoia).

AS DESCRIÇÕES DE BASILEIA

Nada tivesse escrito Piccolomini sobre a cidade e, não obstante, a sua ligação a Basileia ficaria documentada por dois eventos: o Concílio de Basileia, primeiro, e, posteriormente, a fundação da universidade. Porém, a cidade mereceu-lhe duas longas descrições que, por sua vez, foram enviadas a três destinatários: a primeira a Giuliano Cesarini; a segunda a Philippe de Coetquis, bispo de Tours, e a Francesco Pizzolpasso, arcebispo de Milão.

As duas descrições de Basileia conheceram uma notável fortuna bibliográfica que documenta a ligação de Piccolomini à cidade ao longo dos séculos seguintes uma ligação― que se funda em dados históricos e objectivos, independentes de qualquer desígnio do autor.1 No entanto, existe nesta ligação um ponto de vista subjectivo, e até autobiográfico, que é preciso ter em conta.

A evocação da cidade de Basileia é a de um lugar-chave na vida do autor por mais do que uma razão. Em nenhuma outra cidade se demorou tanto como na cidade do Reno, onde

1 Como mostra TERZOLI, Maria Antonietta, Aeneas Silvius Piccolomini und Basel. Enea Silvio Piccolomini e

Basilea, Basel, Schwabe, 2005 (Vorträge der Aeneas-Silvius-Stiftung an der Universität Basel; 42) pp. 35-38, há edições de uma ou de ambas as suas descrições de Basileia, a partir de Christian Wurstisen, no seu Epitome Historiae Basiliensis, de 1577 até BONJOUR, Edgar, Basel in einigen alten Stadtbildern und in den beiden berühmten Beschreibungen des Aeneas Sylvius Piccolomini, herausgegeben zur Erinnerung an die Beschwörung des Bundes zwischen Basel un den Eidgenossen. Mit einer Einführung von Edgard Bonjour, Basel, Holbein Verlag, 1951 (edição comemorativa dos 450 anos da entrada de Basileia na Confederação Helvética). O ponto de vista de um historiador da cidade acerca das duas descrições pode ler-se em WACKERNAGEL, Rudolf, Geschichte der Stadt Basel, Basileia, Helbing und Lichtenhahn, 1907-1924, vol. 1, p. 480 ss.

esteve entre a Primavera de 1432 e finais de 1442.2 Mais do que isso, esses serão anos de aprendizagem: aprendizagem ao serviço de quatro senhores aos quais serve como secretário; aprendizagem nas viagens que enceta a partir da cidade para a sua Itália, para os Países Baixos, para Colónia, para Inglaterra e Escócia; aprendizagem dos meandros da política eclesiástica e europeia.

A identificação da cidade com o seu percurso autobiográfico é mais tarde comprovada pela palinódia de Enea relativa ao período e às convicções que lhe associava. Em carta ao seu amigo Giovanni Campisio, de 30 de Setembro de 1445, referia-se a Basileia como a um lugar de exílio. A sua expressão não deixa dúvidas quanto à importância autobiográfica deste lugar:

o utinam nunquam vidissem Basileam! mortuus in patria fuissem, in sinu parentum jacuissem. plus ibi mica panis sapuisset mihi quam que nunc voro fercula ditia. nisi fata mea duxissent me Basileam, fortasse in Romanam curiam me recepissem locumque aliquem honestum reperissem, tecumque et apud alios amicos degissem vitam. multa sunt, propter que Basileam odisse deberem, in qua tam diu tempus inutiliter perdidi. ubi cum essem, imbutus opinione majorum nescivi quomodo me exuerem, nisi etiam in Germania me profundius mer-/p. 543/gerem. itaque possum dicere me mortuum, nec alia vita est mea quam Nasonis, dum in Thomitana terra exularet.3

Esta confissão constitui uma singular afirmação da cidade como elemento constitutivo da sua identidade e de uma forma irreversível como o demonstra o modo irreal dos verbos― usados (nisi fata mea duxissent … recepissem … reperissem …). A cidade descreve, pois, um arco na biografia que tem um início ascendente nos anos 30 e que acaba em linha descendente no final dos anos 40.

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