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1. DO CAMPO SANTO AOS CEMITÉRIOS MUNICIPAIS: A QUEM PERTENCEM OS MORTOS? UBERABINHA, O PROGRESSO E A MORTE 1898-1928.

1.1 A cidade, o progresso e os mortos na década de

O nosso cemitério, ao que se ouve algumas pessoas autorizadas e ao próprio coveiro Jorge esta petição de miséria e já não se póde nelle abrir uma cova sem encontrar despojos frescos.Isso constitue uma deshumanidade sob todos os pontos de vista.É uma falta de comprehensão dos nossos poderes públicos, que não podem admitir o embellezamento da cidade dos vivos em prejuízo da dos mortos.Enquanto se enfeita a nossa vivenda dotando-a de calçadas, passeios, exgotos e o diabo a quatro, as ossadas humanas são da outra banda, a dois ou três passos da nossa vaidade, espotas pela nossa profanação deshumana.Arcam ao sol, para darem lugar a outro infeliz, ossos daquelles que, se na vida nenhum conforto tiveram muito menos terão na morte dentro de um quadrado inssufficiente para contel-os e são atirados d’aqui para ali como as carcaças irracionaes. Urge que os nossos poderes tomem serias providencias a respeito do nosso cemitério.Não é só no dia 2 de novembro, com uma coroa de flores roxas que devemos lembrar daquelles que lá estão esperando à qualquer hora. Devemos lembral- os sempre e mais quando suas caveiras risonhas nos encaram ironicamente dizendo nos que os corpos desses que não se querem enriquecer para comprar seus túmulos espera a mesma sorte nesse campo onde, apesar da egualdade há, como cá fora, cantos mais confortáveis.Nem seria preciso lembrarmos aqui esta medida inadiável, pois, já há um anno que o engenheiro de nossa câmara gritava em seu relatório que nenhuma obra se lhe afigurava de maior urgência que a ampliação de nosso cemitério já adiada, accrescentando: “Está inteiramente exgotado o espaço para os enterramentos46

A cidade de Uberabinha no início do século XX, conforme desenvolvemos no tópico anterior, era apenas mais uma cidade pequena do interior do Brasil. Mesmo assim, tendo em 1920 uma população de cerca de 23.000 habitantes, com base nos periódicos e projetos e resoluções apresentados na Câmara Municipal, como da aquisição de bondes elétricos47, os dirigentes

políticos (vereadores) que governavam a cidade procuravam elevá-la ao patamar uma cidade progressista.

Importante também, antes de analisar a situação de Uberabinha, seus cemitérios e da crônica acima, é entender essa dinâmica progressista dentro de um contexto nacional, que porventura é europeu. Nesse sentido a cidade, seu conceito, apresenta-se como problema, como

45 DILLMANN, Mauro. Morte e práticas fúnebres na secularizada República: a irmandade e o Cemitério São Miguel e Almas de Porto Alegre na primeira metade do século XX. São Leopoldo: Unisinos (Tese de doutorado),

2013, p.62.

46 19/09/1920. Cyprestes. A Tribuna.Autor desconhecido. Redator e diretor proprietário Agenor Paes. Ano 02, n° 54,

p.1. Arquivo Público Municipal de Uberlândia.

47 Na Ata de 14/11/1919 página 98 verso, é adiado por dois anos o projeto de colocação de bondes elétricos no

município. A alegação era de que em função da guerra (1° grande guerra) os preços dos materiais a serem importados tinham subido muito. Mas a planta com o traçado já estava pronta. Arquivo Público Municipal de Uberlândia.

metáfora do social, como objeto de estudo, de questionamento dentro do âmbito das representações, conforme afirma Pesavento:

A representação guia o mundo, através do efeito mágico da lavra e da imagem, pois, imersos num ‘mundo que se parece, mais real, por vezes, que a própria realidade e que se constitui numa abordagem extremamente atual, particularmente se dirigida ao objeto ‘cidade’”... “Ou seja, as representações da cidade tendem a assumir uma forma metafórica de expressão, com apelo as palavras e coisas que, associadas ao conceito de cidade, lhe atribuem outro sentido48

No urbano os espaços estão representados de todas as formas e com classificações dentro do domínio do simbólico, daquilo que, conforme a autora acima, “sacramenta os significados,

funções, papéis e valores”49. Nesse sentido, dos valores que são agregados e transmitidos à

população, qual a importância de um cemitério e de um ramal de bondes? Antes de responder essa questão (se é possível) não se pode esquecer que também nas cidades:

As representações, que tem o efeito real, ultrapassam a função da re-configuração do mundo social e chegam a produzir a própria realidade. As representações não só se substituem ao mundo social, fazendo com que os indivíduos vivam pelo e para o imaginário, como são construtoras daquele real, constituindo como um seu outro lado.50

Tendo como base a cidade como representação, é relevante destacar que nesse período do século XX, há uma mudança na relação dos habitantes com a urbe. Conforme analisa Nicolau Sevcenko, em um de seus trabalhos sobre a capital paulista, na década de 1920,“Verifica-se, pois,

o início de uma tomada de consciência tanto de um sentido de identidade, quanto de uma manifestação de destino da cidade”51. Nessa ideia de sentido e até mesmo de afirmação de uma

identidade, o modernismo e sua ruptura com o velho ganham espaço na relação com a cidade. A ênfase no urbanismo como diverso e como sinônimo de progresso que vivencia mudanças e mutações culturais ganha, nesse período, força. Lembrando que no ano de 1922, o Brasil comemorara o centenário da independência, não somente a Semana de Arte Moderna de São Paulo merece destaque, mas nessa luta entre provincianismo e cosmopolitismo, onde era necessária uma mudança nos padrões estéticos para abandonar um passado retrógado, havia a busca por uma identidade nacional. E, conforme estudo de Marcos Augusto Gonçalves52, a

48 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Paris – Rio de Janeiro – Porto Alegre. Porto Alegre: Editora Universidade – UFRGS, 1999, pp.8-9.

49 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade. O mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 2001, p.8.

50 PESAVENTO, 2001. Op. Cit., p.9.

51 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São

Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.37.

52 GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922: A semana que não terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012,

ruptura com o velho, do futurismo x passadismo, tem grande influência européia. Essas novas tendências oriundas do Velho Continente, especialmente francesas, embasam uma identidade moderna. Esse moderno requer definição, que segundo Sevcenko:

No plano mais imediato, dos hábitos cotidianos e do vestuário, a palavra ‘moderno’ se torna legenda classificatória que distingue tudo o que passa por ser a última moda vigente... Tratava-se acima de tudo da evocação de uma ciência que parecia não ter mais limites de controles, preconizando a iminente redenção tecnofabril da humanidade53.

Às vésperas do centenário da independência como fica a cidade dos mortos em Uberabinha? Como bradava o cronista de A Tribuna em Cyprestes:“É uma falta de

comprehensão dos nossos poderes públicos, que não podem admitir o embellezamento da cidade dos vivos em prejuízo da dos mortos”54. O problema do espaço cemiterial passa a não pertencer

somente aos que têm seus entes sepultados naquele local, mas dentro de uma relação com o urbano e com o moderno, o local passa a ser no sentido público de todos, conforme explica Cláudio Batalha:

E eis que no momento em que determinado local é apropriado como espaço político público, ele deixa de ser significado pela prática do indivíduo para ser significado pela prática do coletivo; retoma – mesmo que provisoriamente – o caráter unívoco e estável de lugar, pois seu significado é compartilhado por todos.55

Essa preocupação compartilhada com a morte não estaria mais ligada, como na Idade Média e boa parte da Moderna, a uma relação com os vivos na chamada liturgia da morte. Nesse período a preocupação passa a ser outra, dentro da ideia de que a cidade é como um corpo, um organismo vivo. O “descaso” coincide com a administração civil dos espaços cemiteriais. O “prejuízo dos mortos” se projeta sobre a coletividade, fazendo com que a preocupação em última instância seja a cidade dos vivos.

Ao analisar um cemitério público, como o caso deste Cemitério Municipal na Uberabinha da década de 1920, tem de se levar em conta o modelo de cidade em que está inserido esse espaço. As reformas urbanas, os projetos, as construções sugerem que a cidade é como um corpo

53 SEVCENKO, 2000. Op. Cit., pp.228-229.

5419/09/1920. Cyprestes. A Tribuna.Autor desconhecido. Redator e diretor proprietário Agenor Paes. Ano 02, n° 54,

p.1. Arquivo Público Municipal de Uberlândia.

55 BATALHA, Claúdio H. M. A geografia associativa. Associações operárias, protesto e espaço urbano no Rio de

Janeiro da primeira república. In: AZEVEDO, Elciene; CANO, Jefferson; CHALHOUB, Sidney; CUNHA, Maria Clementina Pereira. Trabalhadores na cidade. Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e São Paulo, séculos XIX e