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8 DIANTE DA LOUCURA

8.2 O TRABALHO EM S AÚDE M ENTAL

8.2.3 A CLIENTELA DA “R ESIDÊNCIA T ERAPÊUTICA ”

Quando os profissionais descrevem os aspectos físico-funcionais da “Residência Terapêutica”, ressaltam que a unidade foi criada para abrigar pessoas que haviam sido abandonadas na antiga Clínica de Repouso do Planalto e que estavam muito cronificadas.

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Os profissionais começam a descrever como percebem a clientela da “RT” e vão explicitando o quadro de vulnerabilidade extrema em que se encontravam, e ainda se encontram os usuários. Ressalta-se a condição de abandono e a inexistência de alternativas sociais para estes sujeitos:

[S10][A RT] é um local onde ficam os paciente que foram abandonados pelas

famílias; não tinha um local para colocar e foi improvisado um local para colocar.

Os profissionais seguem falando de como perceberam as condições em que os usuários chegaram ao instituto. Eles ressaltam que os pacientes vieram de uma realidade de maus-tratos e suas condições físicas e emocionais eram precárias:

[S10]O que a gente percebia neles é que eram pacientes que já tinham sido

muito maltratados, tiveram um tratamento, assim, subumano onde eles estavam.

[S5]Eles estavam muito perdidos[...] e eles quando eles chegaram aqui eles

estavam assim maltratados, com escabiose, com sarna, eles não sabiam usar um vaso sanitário, eles não sabiam sentar no refeitório para fazer suas refeições, usar um talher, isso foi com o tempo, tendo que ser trabalhado no dia a dia.

[S2]Eles chegaram com condição nenhuma de sobrevivência, estas questões de

convivência[...] não tinham condições de conviver entre eles mesmos, e ai é uma questão totalmente grave. Eram totalmente desesperados, com uma gula terrível, muitas vezes quando estavam diante de uma alimentação, uma refeição ficavam comendo como se fosse assim um ser [...] um bicho mesmo de sete cabeças, uma coisa horrível, de pegar com a mão de desespero, de catar do chão, era como se fossem realmente animais[...] entre eles sempre brigavam, sempre discutiam, não tinham respeito nenhum pela equipe, não digo todos, mas de modo geral, não tinham nenhum espírito, nenhum desejo de cooperativismo, de cooperação, de afetividade.

Os profissionais explicitam que os pacientes que foram encaminhados à “RT” encontravam-se cronificados, com sinais claros de deterioração da sua condição humana, já haviam passado por dezenas de clínicas psiquiátricas ao longo de anos de institucionalização em manicômios, sendo o último deles a Clínica de Repouso do Planalto:

[S8]Esses usuários aqui [da RT] do Instituto, são, eles já tem um longo

tempo de internação, tem usuário aí que tem 45 anos de internação, outros 25 anos.

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Está posta uma triste condição que reflete não só a situação dos usuários acolhidos no Instituto de Saúde Mental, como também a realidade de milhares de pessoas que hoje sofrem as conseqüências da institucionalização.

Cunha, ao reproduzir o registro, datado de 1908, no prontuário de uma paciente do Juquery, destaca “assim é que tendo dado entrada aos 35 anos, mostrava-se atualmente, toda encanecida, com estigmas evidentes de senilidade, justificáveis pelos 65 anos atuais na condição de reclusa” (1986, p. 94), dos quais, 27 anos passou sem qualquer revisão médica.

Algumas das características do processo de institucionalização marcam a omissão, a negligência e a desumanidade com que os usuários são tratados dentro dos manicômios. Um exemplo claro, registrado nos arquivos da unidade, é o fato de que alguns pacientes encaminhados ao Instituto de Saúde Mental tiveram suas identificações trocadas nos registros clínicos oriundos da clínica de origem e eram chamados por nomes que não lhes pertenciam, tamanho o descaso com que haviam sido tratados.

Ao se apresentar o paradigma manicomial evidenciamos que as instituições asilares – ou manicômios – focalizam não os sujeitos em sua existência /sofrimento, mas a doença /sinais e sintomas; não a produção de subjetividade singularizada, mas apenas a remissão de quadros sintomáticos; não as capacidades e possibilidades dos sujeitos e sim suas fragilidades e limitações; não a reintegração social e sim o enclausuramento.

A proposta de isolamento da pessoa em sofrimento mental no paradigma manicomial não vem acompanhada da proposta de práticas terapêuticas solidárias, integrativas ou ao menos humanizadoras, ao contrário, o que prevalece no interior dos asilos, durante o tempo de exclusão social, é justamente o ócio, a medicalização, a imposição de rotinas massificadoras repetitivas e desprovidas de qualquer sentido.

No manicômio, as horas, os dias, as estações do ano passam indiferenciadamente, levando os internos a perder paulatinamente sua referência de mundo, de sonhos e desejos. A eles não resta qualquer alternativa senão resignar-se diante desta rotina iatrogênica e despersonalizante, o que a próxima fala esclarece:

[S6]Então esse é um sofrimento muito grande, então é uma dor, assim, que

nós que nos dizemos normais, que temos uma vida digna, não temos noção do sentimento de cada um deles, dentro da sua própria loucura[...] hoje eles são tão prejudicados que teria que ter muita[...] muito tempo para que eles aprendessem a se identificar, porque é tanto abandono que a gente nem sabe se eles têm condições de aprender a se identificar, embora na loucura deles eles brigam por algumas coisas [esse papelzinho é meu, esse sabonete é meu].

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No asilo, se eles não são estimulados à higiene pessoal e ao banho e já não conseguem realizá-los, ficam negligenciados; aos poucos vão perdendo a referência da auto-imagem, da auto-estima, que não resiste ao abandono. Se não há refeitório, se não são levados à mesa para as refeições, sentam-se no chão para comer como bichos, porque, aos poucos, suas boas maneiras – se algum dia lhes foram ensinadas – vão cedendo lugar aos humilhantes recursos de que dispõem.

No asilo, não se reconhecem mais como humanos e nem tão pouco os que estão à sua volta. Em um lugar de total privação, vivem como selvagens e entre eles o que predomina é a lei das selvas, os fortes prevalecem sobre os fracos que se tornam submissos, resignados

“doentes, sujos, babando, gritando, prontos a se baterem por uma guimba; ou então silenciosos anos a fio [...] antes coisas do que homens” (BASÁGLIA, 1985, p. 54).

Este é o mesmo retrato espelhado nas palavras dos que viram a condição em que os usuários chegaram ao instituto, pessoas que foram submetidas ao asilo cronificante e institucionalizante, que foram submetidos à lógica do ócio e do abandono e que estavam entregues à sua própria sorte.

Os profissionais apontam a diferença entre a realidade vivida pelos usuários antes e depois de sua chegada à “RT”:

[S11]O que a gente percebe é que os maus tratos com esse tipo de paciente,

em pleno 2006 ainda continua e de uma forma até subumana, como foi o caso dos pacientes que vieram da Clínica Planalto, que foi constatado que realmente para os pacientes o tratamento ali era subumano, era um tratamento que não fazia parte de um ser humano, tratavam eles como um bicho[...] Ao chegarem aqui, foram recebidos assim, de braços abertos, uma equipe, assim, excelente que fez o acolhimento desses pacientes, onde eles começaram a aprender um cotidiano de cidadania, voltaram a ser seres humanos.

[S5]Acho que a Residência Terapêutica foi a salvação para aqueles

pacientes, porque ali eles vieram de um lugar onde eles estavam muito maltratados e ali eles receberam muito calor humano, não só o pão, ali eles receberam amor, receberam atenção, aqui a gente faz o que pode e o que não pode para amenizar o sofrimento dessas pessoas.

Apesar do caráter provisório do serviço e da precariedade das instalações físicas, já apontadas, os profissionais qualificam o trabalho desenvolvido como bom e humanizado, como deixam claro as próximas falas:

[S3]Por ser improvisado, mesmo sendo improvisado, eu acho que a gente pelo

menos está correspondendo ao que eles necessitam [os usuários][...] o trabalho que a gente está fazendo nesse local eu já acho bom - não que seja

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o máximo, a gente poderia fazer mais alguma coisa, mas eu acho que o mais viável a gente está fazendo, o correto, o correto a gente está fazendo para eles.

[S2]A Residência tem humanização, trata de uma forma humana, de

interação[...] A rotina de trabalho é variada, são várias as atividades[...] nós procuramos inseri-los conforme as suas capacidades, respeitando seus limites[...] Mais precisamente, nós chegamos e cuidamos dos seus banhos[...] e logo após banho, se alimentar, medicar, medicação, aí começamos as atividades[...] caminhada[...] piscina, brincadeiras, musicoterapia, com jogos.

[S9]Na Residência funciona, para eles, graças a Deus, tudo funciona,

medicação, banho de aspersão, alimentação, dormitórios, rouparia, tudo funciona perfeitamente bem.

Verificamos que os profissionais qualificam o trabalho desenvolvido na unidade pelo tipo de intervenção que fazem no sentido da atenção às necessidades básicas dos usuários e do respeito às suas limitações.

Ainda no que diz respeito à clientela deste serviço e tendo em vista o processo de cronificação dos usuários, os profissionais ressaltam como percebem suas limitações para a realização do autocuidado:

[S1]É complicado, eles[...] não ligam em relação à vestimenta, se

autocuidar; tem outros que já não ligam mesmo – se não tiver o cuidado da gente assim 24h, eles realmente ficam largados, jogados - tem que ter cuidado 24h.

[S1]Os pacientes eles precisam totalmente dos nossos cuidados[...] para a

higiene pessoal, para se encaminhar aos locais, para fazer tudo junto com eles[...] Na higiene pessoal, estar ali perto para eles[...] para escovar um dente ou tomar um banho assim tem de ajudar ali [Oh, lava tal parte, tal parte, pega a escova, toma aqui, escova ali].

A cronificação das pessoas submetidas a longos períodos de internação dá-se em razão de sua institucionalização muito mais que em razão de seu sofrimento mental. Nos manicômios, os internos vão perdendo suas referências para o autocuidado e pela falta de estímulo e de recursos vai ocorrendo uma precarização de suas condições gerais e cada vez maior dependência para a realização destas atividades, o que fica explícito pelos depoimentos seguintes:

[S5]Eu vejo aqueles pacientes assim como umas crianças, para mim é como se

fossem crianças, porque eles são muito dependentes da gente[...] crianças que precisam de muito amor, muita atenção, muito carinho e muito respeito e serem tratados sempre como seres humanos.

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[S9]Para mim especialmente, eu vejo eles como filhos, assim, são meus

filhos, eu cuido deles assim com muito carinho[...] porque eles merecem ser tratados assim.

Aqui se reforça a idéia de que o estado cronificado dos portadores de sofrimento mental torna estes sujeitos pessoas debilitadas, negligentes com o autocuidado e por isso mesmo muito dependentes para realizar ações básicas de higiene, como banho, escovação dentária, cuidados com a aparência, vestuário etc. Por percebê-los assim, os profissionais acabam por tratá-los como crianças ou como filhos a quem se deve dar muito amor, carinho e atenção.

Outros aspectos relacionados à clientela, como a falta de vínculos familiares e de recursos financeiros próprios, também aparecem nas representações, mas serão discutidos dentro da categoria “O caminho da inclusão social”.

Cabe ressaltar, no entanto, que a condição de vulnerabilidade em que os usuários se encontram é percebida pelos profissionais e influencia diretamente nas práticas de atenção à saúde mental, como explicitado nas representações seguintes.

8.2.4 AS PRÁTICAS DE ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL DOS PROFISSIONAIS NA “RESIDÊNCIA