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A Coisificação do Outro

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 35-38)

2 ÉTICA DA ALTERIDADE: Fundamentos

2.2 A Coisificação do Outro

A redução das coisas do mundo à percepção dos sujeitos,14 resultante de mecanismos

cognitivos ─ ao mesmo tempo racionais e afetivos─, faz com que elas se tornem do modo como são compreendidas, ou seja, reduzem-se às representações, ao que delas é selecionado, categorizado e, posteriormente, ancorado pelos diferentes sujeitos, a partir de seus sistemas de valores.

Segundo Moscovici (1979apud STORCH, 2000), as representações podem ser entendidas como conjuntos dinâmicos de informações sobre as coisas, em que seu status é o da produção de conhecimentos que se desdobram em comportamentos. Não se trata apenas de uma simples reação a um estímulo exterior, mas vai além das opiniões ou das imagens sobre determinado objeto ou fenômeno, pois se assenta sobre um sistema que tem uma lógica e uma linguagem particular, com uma estrutura de implicações possuidora de valores e de conceitos.

As coisas do mundo são apreendidas e modeladas pelas pessoas nas situações em que são constituídas, em suas vivências. De fato, uma parte desse processo é reprodução, porém, trata-se mesmo de uma remodelação, de uma reconstrução do que se observa e se experiência em um

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A tradição filosófica fenomenológica trata o mundo dos sujeitos e dos grupos sociais a partir da experiência que dele se tem. A sociologia e a psicologia foram as disciplinas que mais realizaram estudos sobre o mundo da percepção.

contexto. Há um jogo de atividades mentais que, ao trabalhar a apreensão do dado externo, o circunscreve a um fluxo de associações, projetando-o num espaço simbólico, construído ao longo das interações e vivências. Dessa forma, o dado externo jamais é algo acabado e unívoco, pois está o tempo todo dentro de um feixe de fatores particulares a cada indivíduo ou grupo social.

Segundo esse autor, trata-se de uma reprodução ao mesmo tempo passiva e ativa de um dado imediato, ou seja, de um reflexo interno de uma realidade externa, “cópia fiel no espírito do que se encontra fora do espírito” (MOSCOVICI, 1979, p. 47 apud STORCH, 2000, p. 35).

O sujeito, ou o grupo, situa-se num universo social e material, onde as imagens e as opiniões expressas traduzem a posição e a escala de valores do indivíduo ou de uma coletividade. Ao se combinarem as imagens advindas de estímulos exteriores, elas acionam outras já gravadas na memória e, juntas, passam por um filtro longamente elaborado pelas pessoas ou grupos, no sentido de produzir ou reproduzir posturas de um universo muitas vezes socialmente aceito. Assim, a compreensão e a representação de um determinado objeto ou espaço, por exemplo, advêm de imagens atreladas de suas qualidades icônicas e de valores que as situam em um contexto.

Passa a constituir a produção da realidade aquilo que é recebido como imagem e se submete a uma elaboração para se tornar conhecimento para um grupo de pessoas, pois está vinculado a um sistema de noções e de práticas comuns a elas.

São conteúdos trazidos ao que já é familiar- significante - aos diferentes sujeitos. Eles já fazem parte de suas referências sobre o ambiente em que vivem, visto que foram constituídos ao longo do tempo. Dessa maneira, assimila-se o que em parte já é conhecido. A grade de significantes preexistentes dá ao desconhecido um significado, o que torna a coisa conhecida. Esse processo de cognição racional e afetiva, de dar sentido ao mundo, é positivo e necessário, mas pode implicar imposições se as coisas são conceituadas segundo a forma como delas se apropria. Então, reduzir as coisas à interpretação do (s) sujeito (s) seria como tematizá-las segundo suas percepções. Ora, se tal processo é efetivado pelos grupos dominantes, as coisas do mundo estariam reduzidas às suas interpretações, podendo parte delas ser neutralizada e até desaparecer.

Hooft (2013) e outros filósofos contemporâneos alertam para o reducionismo que o mundo da percepção pode provocar. Se há uma tentativa de impor categorias e classificações às coisas com a finalidade de trazê-las para integrá-las em um mundo familiar, está-se individualizando o mundo em que se vive ao modo de entender, de sentir e de viver de alguns.

Não por acaso, as pessoas habitam em edificações que configuram espaços inóspitos em seus entornos, devido ao fato de não atuarem como elementos formais que possam favorecer a presença de pessoas que caminhem ou conversem nos seus exteriores. Caracterizam-se pelos muros altos e são distribuídas sem relação com outras adjacentes, o que configura barreiras para o uso dos espaços públicos (a exemplo de alguns condomínios residenciais). Mesmo assim, tais edificações são

compreendidas como boas e seguras. Contam no seu interior com espaços para diferentes atividades de seus moradores, como as de lazer e de esportes. Os moradores não estabelecem relações cotidianas com os que estão no exterior de suas moradias, com os outros, os desconhecidos que estão no espaço público.

Esse modo de viver no interior das edificações, muitas vezes veiculado como símbolo da “modernidade e da eficiência”, é uma redução da realidade à imagem que se pretende propagar.

Defende-se que um dos motivos dessa redução se deve ao fato de cada grupo social ou setor da sociedade ter sua própria ontologia, isto é, seu conjunto de crenças, ou sistema de valores significantes, que atuam para ancorar e interpretar aspectos da realidade a seu modo.15 Nesse ambiente, a construção de separações edilícias é predominante, ainda que as consequências importem a todos.

Não se pode perder de vista que o espaço urbano é composto por partes conectadas que interagem como um sistema, ou seja, elas são interdependentes. Fecham-se as edificações para as ruas, e a maioria das pessoas se ressente da urbanidade perdida, mas não tem, em geral, consciência desse fato.

A ausência de consciência acontece pela atomização do sujeito (redução do mundo a si) e conduz à indiferença com o que se passa ao seu redor. Sem um propósito maior, que transcenda seus interesses, é difícil romper com os princípios morais sobre os quais assenta sua vida, o que o impede de perceber a existência de outros. Tal contexto se rebate no caso concernente ao tipo de produção do espaço da torre habitacional desvinculada de seu entorno. A raiz moral condutora da ação dos agentes envolvidos diretamente com tais intervenções provavelmente é a razão instrumental, ou seja, ações desprovidas de intenções maiores do que seus interesses.

Diante dessa circunstância, questiona-se: Seria possível estabelecer uma relação ética se é comum coisificar os outros (a si, como o mesmo)? Seria possível reconhecer o Outro e respeitá-lo sem ele ser identificado (conhecido)? Seria possível aproximar-se do mundo do Outro destituído da compreensão que se tem dele?

As respostas residem no entendimento adotado nesta tese, na proposta do filósofo Emmanuel Lévinas,16 devido ao fato de ele destacar a primazia da ética face à Ontologia. Ele identifica

15 O autor (Moscovici) resume, dessa forma, os dois processos de elaboração da representação a que nos

estamos referindo: a primeira (a objetivação), que traz o abstrato, o conceito, o alheio, o significante à realidade vivida, ao significado; e o segundo (a ancoragem), que a torna termo de referência para interpretar outras realidades (STORCH, 2000, p. 33).

16

Emmanuel Lévinas nasceu em 1906, em Kaunas, na Lituânia, e emigrou para a França em 1923. Ocupou, nas universidades de Potiers, Paris-Nanterre e Sorbonne, a cátedra de filosofia. De família judaica, encontrou na fenomenologia e na bíblia hebraica, assim como, no contato pessoal com Husserl e Heidegger, a matéria-prima para formular seu pensamento. Sua teoria da ética da alteridade põe em evidência um possível desrespeito

a infinitude que constitui o Outro, e defende ser tal reconhecimento o primeiro ato ético. Hooft (2013, p. 156), seguidor de algumas de suas ideias, esclarece:

Ao invés de agora ser a autoafirmação nietzschiana, ou projeto existencial de si mesmo, você se torna uma abertura ao mistério do outro. Essa não é, naturalmente, uma postura assumida de forma consciente, ou como resultado de uma decisão. É simplesmente o seu modo de ser transformado pela presença da outra pessoa. O seu projeto de si mesmo determinado a construir e afirmar a sua própria identidade e a se apropriar do meio ambiente como seu mundo vivido; é aquele da reverencia e da admiração na presença do mistério do outro. E esse comportamento ou postura já tem sempre uma qualidade ética.

Ao assumir a exigência da impossibilidade de assimilar o Outro, posto que seja um mistério, torna-se possível aproximar-se dele em sua total liberdade e, assim, respeitá-lo.

A proposta de Lévinas, de trazer a ética para a condição primeira ao Ser, é, portanto, desafiadora, tanto no que concerne à compreensão de aspectos da construção do mundo sob essa perspectiva, como às possíveis consequências sobre a configuração dos espaços urbanos. No próximo item, adentra-se no aprofundamento de seus pressupostos.

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 35-38)