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O Outro é infinito

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 38-43)

2 ÉTICA DA ALTERIDADE: Fundamentos

2.3 O Outro é infinito

O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum (LÉVINAS, 1988, p.26).

“Não reduzas quem sou às imagens que fazes de mim”, poderia dizer a moça da Imagem 8. Tal assertiva guarda relações com a construção do mundo em torno de alguns sujeitos que não veem os diferentes que com eles habitam as cidades. A produção do espaço urbano se reduz à imagem e semelhança de grupos sociais específicos─ dominantes. Efetivam-se seus interesses em detrimento da diversidade que caracteriza as cidades. Tal situação apela para empreender essa reflexão a partir da ética da alteridade. Ela apresenta uma alternativa moral contra a pretensão (ainda que não consciente) dos sujeitos ou grupos sociais de autolegitimarem suas ações aquém dos interesses que lhes são alheios, são de outros.

para com a identidade (subjetividade) do Outro, considerando que o homem tende ao desejo de reduzir a subjetividade do outro a um estado de totalidade e objetivação, de reduzir o Outro ao Mesmo.

Imagem8 -O rosto não é imagem.

Fonte: Maína Pinillos Prates. Acesso em: 29 junho de2013.

Nessa sequência, sublinham-se os postulados de Lévinas.As concepções desse filósofo estão inseridas nas várias correntes do pensamento dialógico contemporâneo. Tendo como ambiente a filosofia do século XX, Lévinas conviveu com várias formas de existencialismo. O pensamento de F. Nietzsche (1844-1900), a fenomenologia de Husserl (1859-1938), de Franz Rosenzweig (1886- 1929), de Heidegger (1889-1976) - e a sua obra “Ser e Tempo” - para citar alguns dos filósofos com os quais Lévinas conviveu, influenciaram fortemente suas reflexões (além de marcarem a história do pensamento da antropologia filosófica).17

A filosofia de Lévinas é uma proposta de um novo humanismo, no qual a ética tem sua origem a partir do reconhecimento da alteridade do Outro.18 Para Lévinas, a ação do sujeito é

equivocada se tiver como origem a primazia de seu mundo. Numa relação dialogal mediada pelo respeito, dentre outros princípios da ética, o outro como Outro não se reduz a um objeto da apreensão do sujeito, tampouco se constitui como uma ameaça à sua autenticidade, mas é um apelo à responsabilidade para com o Outro, fato que também constitui a identidade do sujeito ao assumi- la.

Entretanto, o Eu busca modificar o mundo à imagem de si próprio, trazendo o que lhe é estranho ao que lhe é familiar e, nesse caminho, o Outro pode ser transformado no diferente ou no

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Esses filósofos contribuíram para a construção e a reflexão crítica quanto aos direitos humanos.

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Segundo Sidekum (2005), Lévinas vai além das perspectivas da subjetividade, do psiquismo e da egologia da Modernidade. Insere-se na compreensão do reconhecimento dos Direitos Humanos fundamentais ditados pela alteridade do outro.

semelhante ao sujeito. O problema desse processo é não encontrar uma mediação próxima da realidade do Outro; então, entre esses polos opostos, o Outro se decompõe. Não há alteridade nesse contexto, o Outro se encontra indefeso, pois é objeto da subjetividade do sujeito. Reduz-se sua singularidade a uma imagem mais ou menos identificada ao Mesmo, resultante do subjetivismo elaborado pelo Eu. Conclui-se que, no mundo do Eu, o do Outro é demasiadamente comprometido.

Lévinas busca a inversão desse contexto ao acentuar o direito do outro em ser Outro e desvelar a maneira como o Eu pode encontrar o Outro, sem reduzi-lo a si, respeitando sua alteridade. O autor formula uma das questões mais importantes e centrais de sua obra: Como o Mesmo, que aparece como egoísmo,19pode entrar numa relação com o Outro, sem ao mesmo tempo extrair dele a

sua alteridade?

A resposta vem da identificação da necessidade de uma relação transcendente entre o sujeito e o Outro. Uma relação com raízes na metafísica, na infinitude do Outro que escapa à apreensão do sujeito. Então, a alteridade se estabelece em relação ao próprio Outro, pois ele não se origina no mundo do Mesmo. Sua existência é anterior.20

Se o Outro metafísico não pode ser categorizado, impossibilita o Eu de limitar sua liberdade. Por sua vez, se há essa liberdade para o outro ser Outro, faz-se absoluto o encontro do sujeito com o Outro, porque se dá pleno de respeito. Nesse encontro transcendente, o Outro é uma exterioridade ao sujeito.

Lévinas vai adiante, ainda, ao dizer que o Eu se faz também pela resposta que dá ao Outro (HOOFT, 2013), ou seja, pelo enfrentamento da capacidade de reduzir o Outro à apreensão do Eu. Isso é visto como uma abertura do sujeito, o que muda a qualidade do próprio Ser. Ele elabora seu pensamento ao criticar a ontologia, principalmente pelo seu papel na constituição do mundo ocidental. Diz o autor:

O homem inteiro é ontologia. Sua obra científica, sua vida afetiva, a satisfação de suas necessidades e seu trabalho, sua vida social e sua morte articulam, com um rigor que reserva a cada um destes momentos, uma função determinada, a compreensão do ser e da verdade. Nossa civilização inteira decorre desta compreensão─ mesmo que seja esquecimento do ser (LÉVINAS, 1997, p.23).

O Eu modifica o mundo em busca de transformar tudo o que lhe é estranho à sua volta à imagem de si próprio, e aí reside o problema da ontologia. Reduzir o Outro ao pensamento do Eu seria um pensamento totalizante, pois gira em torno do Mesmo.

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Para Lévinas, o egoísmo é o fechamento do Eu em si mesmo, que se busca em sua própria e exclusiva subjetividade. E, ainda, a reflexão do Eu que se basta em si mesmo marca uma egologia redutora do ser ao ente: o eu-em-mim-mesmo. Segundo o autor, essa circunstância sustenta todo o pensamento ocidental.

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Nessa perspectiva, a ontologia poderia ser entendida como uma filosofia do poder. Quando nega ou “destroi” o Outro, está gerando um pensamento violento e motivador da guerra, devido à aniquilação das diferenças. É nesse sentido que Lévinas defende que a ética deve ser a filosofia primeira, contrapondo-se à ontologia.

Mas para dar continuidade à argumentação empreendida neste trabalho, embasada no pensamento desse autor, é compreensível que algumas definições necessitem de esclarecimentos, uma vez que alguns leitores podem não ter embasamento filosófico para o entendimento de termos sobre a ética. Assim, a fim de sanar possíveis lacunas, são postas a seguir algumas definições.

Para Lévinas, é preciso ultrapassar a ideia que se tem do Outro para estabelecer uma relação ética. Para tanto, o sujeito precisa sair de si, ou transcender-se, a fim de respeitar o Outro como exterioridade. Esse pensamento vai contrapor-se à autossuficiência do Ser proclamada pela filosofia ocidental.

Para um melhor entendimento de sua proposta, busca-se definir a ética. Vasquez (2001) diz que a ética vem de um vocábulo grego, a palavra ethos, que tem duas grafias: éthos e êthos. Delas derivam vários significados. Morada ou abrigo, caráter ou índole, e hábitos ou costumes.

O primeiro sentido, de grafia éthos, é o de proteção, referente à morada ou lugar onde se habita. Inicialmente, referia-se ao pasto onde habitavam os animais, depois aos campos e à cidade ou à polis, onde habitavam as pessoas. Seria, então, a procedência, o país ou o lugar onde se tinha nascido. A ética se relacionava também com a política, na medida em que, para os gregos, a polis era o lugar, ou a morada do homem, e estava inserida na natureza ─ na physis. Nesse sentido, a ética é individual. Cada um tem sua própria ética.

O segundo sentido, de grafia êthos, representa o significado mais usual no ocidente e se refere ao caráter, ao modo de ser que se revela pelos costumes. Com maior predominância na tradição filosófica desde Aristóteles, o modo de ser vai se constituindo ao longo da vida, por meio dos hábitos que são adquiridos. Possui um sentido amplo e se traduz como forma de vida, diferenciando- se da maneira de ser. Desse modo, não é algo dado, mas adquirido.

De acordo com Torres (2001), o primeiro sentido foi reutilizado por Heidegger (1889-1976), segundo o qual a ética converge para a ontologia, na medida em que a morada do homem seria o próprio Ser, não se tratando de um lugar exterior, mas sua referência a si mesmo, sua atitude interior e para com o mundo. O esquema ilustrado no Quadro 1sintetiza os significados de ethos anunciados:

Quadro1– Esquema 1 - Ética.

Fonte: A autora.

A primeira acepção diz respeito à morada do homem, ou ainda, como retoma Heidegger na terceira definição, ao próprio Ser na sua existência. A segunda definição acentua a exterioridade do

Ser, ao dizer que o caráter vai sendo adquirido pelo hábito. Em todos os entendimentos, o centro é o Ser.

Nesse seguimento, apresenta-se um breve entendimento da abordagem de Heidegger. Para esse filósofo, a ontologia se dá por meio da analítica existencial. O Ser é a manifestação do Eu na sua existência (no Dasein). Ele contrapõe-se ao pensamento metafisico ou transcendente e acentua a experiência como constituinte do Ser. Heidegger sustenta a tese de que o Ser é inseparável da compreensão do ser (a qual se desenvolve no tempo), e o Ser é desde sempre (por se desenrolar no tempo). Heidegger afirma a prioridade do Ser com relação ao ente, o que conduz ao entendimento de que ele deixa a relação ética – concreta relação com alguém – para o estágio impessoal, o que permite a apreensão e a dominação do ente pela primazia do Ser. Segundo o filósofo Melo (2003, p. 25), Heidegger: “Subordina a justiça à liberdade”. Lévinas não discorda de Heidegger, mas sua crítica repousa nas consequências da centralização dada ao Ser/sujeito e, por isso, defende a ideia de que a ética deve ser anterior à ontologia. Ele defende que o pensamento de Heidegger não contemplou o Outro como fundamento ético, dada a prioridade impressa no Ser.

Assim, diferentemente de Heidegger, o problema maior da filosofia não estaria no esquecimento do Ser. Para Lévinas, o problema reside no esquecimento do Outro, visto que a filosofia ocidental se pautou por um processo de redução do Ser/sujeito ao Mesmo e à consequente neutralização do Outro.

ÉTICA

Primeiro sentido− relaciona-se ao lugar ou a morada do homem, à sua procedência.

Segundo sentido− concerne ao caráter, aos hábitos adquiridos pelo homem ao longo da vida que definem suas atitudes.

Terceiro sentido− Heidegger (1889-1976) reutiliza o primeiro sentido, convergindo-o para a Ontologia na medida em que a morada do homem seria o próprio Ser, não se tratando de um lugar exterior.

Escapar à redução ao Ser que possa envolver a existência do Outro, é abrir-se ao caminho condizente a uma filosofia que considera a possibilidade de tomar a heteronomia21 como importante para reger o comportamento moral, notadamente em situações que promovam o encontro com o diferente. Nessa circunstância, a relação com o Outro rompe com a imanência da totalidade do Eu. Mas, para tanto, Lévinas chama a atenção para o apelo ético que se faz no encontro face a face.

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 38-43)