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Predicados espaciais da alteridade

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 133-139)

2 ÉTICA DA ALTERIDADE: Fundamentos

5.3 Predicados espaciais da alteridade

A ordenação espacial e funcional proposta pela Carta de Atenas buscou resolver as mazelas provenientes do desenvolvimento urbano desordenado, resultante do maquinismo. Foi o maior pleito entabulado pelo urbanismo funcionalista: procurar elaborar soluções urbanísticas para criar uma situação de harmonia, por meio do equilíbrio da disposição das funções urbanas no espaço. Para tanto, tomou como princípio considerar a habitação como a célula primeira para a organização espacial urbana.

A condição de célula primeira, ofertada ao espaço do morar - à habitação - pelo ideário do urbanismo funcionalista, poderia levar a concluir que não houve atenção para com o Outro, o não habitante das edificações. Entretanto, identificam-se predicados espaciais de alteridade ao longo da investigação empreendida na Carta Atenas. Tais predicados, referem-se, notadamente, à escala da arquitetura do edifício. Porém, como apresentam rebatimentos com o seu entorno, configuram-se como predicados espaciais da alteridade.

O primeiro refere-se à sombra acolhedora. A elevação da edificação sobre os pilotis é uma atitude de singeleza para com Outro, é um tapete convidativo para quem quiser percorrer a sombra oferecida pelo edifício. Abaixo dele, as pessoas, as diferentes pessoas, podem apropriar-se como quiserem do espaço. Se assim não o fizerem no cotidiano urbano, é devido às condutas e às vicissitudes socioculturais que fazem parte de cada sociedade (Imagem 54).

Imagem54 - Sombra do Pavilhão Suíço. Projeto de Le Corbusier. 1930. Cité Universitaire. Paris.

Fonte: Foundation Le Corbusier. Acesso em novembro de 2015

Não é um problema espacial, pois não há barreiras. O edifício delicadamente pousa no solo, deixando espaço para as pessoas. A sombra não remete apenas à proteção do calor, mas também ao vento, ao frio, além de oferecer descanso ao transeunte, com seu passo por vezes ligeiro, quando se encontra no papel de andarilho urbano. É um abrigo.

O segundo concerne à continuidade sem hierarquia. Deixar o transeunte entrar no espaço privado abaixo da edificação é convidar e hospedar, temporariamente, quem está do outro lado, fora do espaço privado. No nível do térreo, os espaços abertos, privado e público, encontram-se por meio da continuidade entre esses dois domínios espaciais. Essa configuração oferece coexistência sem imprimir nenhuma hierarquia entre as pessoas, pois qualquer pessoa pode passar. Continuidade que recebe e acolhe pela “pausa” oferecida abaixo dos pilotis. Nessa passagem, moradores e não moradores podem olhar-se e num instante qualquer esse face a face poderá reportar-lhes a condição humana da vulnerabilidade, para ensejar-lhes um comportamento de cuidado, ou apenas para fazê- los sentir-se acompanhados. Esse predicado espacial da alteridade é identificado nas edificações do Plano Urbanístico de Brasília, segundo os dizeres de Vasques:

Assim, quando visitamos as superquadras do Plano Piloto, percebemos algumas das intenções de Lucio Costa quando concebeu esse lugar: edifícios de até seis pavimentos de altura entremeados, preferencialmente, por densa arborização, preferindo os edifícios baixos, para que “o conteúdo das quadras (fosse) visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem”3. Da mesma maneira, quem caminhasse pela superquadra manteria tanto a percepção aberta para a vista do céu, considerando o gabarito limitado das edificações, quanto a visão ampliada do ambiente através dos pilotis, que deveriam ser livres e

contínuos, quase sem obstáculos, como se fosse uma continuidade dos passeios

sombreados existentes nas imediações dos blocos residenciais. Portanto, a escala

humana, do uso cotidiano e da percepção da ambiência pelo morador, é norteadora dos espaços construídos, sobretudo na escala residencial (VASQUESet al, 2015, p. 29). (grifo nosso)

O terceiro diz respeito à visibilidade hospitaleira: Aberturas em todas as fachadas do edifício em busca do sol e do ar tornam o edifício umelemento do espaço urbano que conecta as pessoas. Novamente, as pessoas de dentro e de fora se encontram no olhar. Ainda que tal encontro seja menor, conforme a altura do pavimento, permite ao morador atender a possíveis solicitações do transeunte. A ética do cuidado pode manifestar-se no comportamento moral de quem está dentro com quem está fora e vice-versa. O rosto, em face das aberturas de todos os lados da edificação, transparece aos olhares hospitaleiros que podem estabelecer-se entre as pessoas. Desse modo, a

visibilidade hospitaleira é possível, ainda, diante da presença das aberturas em fita - aberturas livres

de vigas e pilares -, configurando janelas para coexistência (Imagem 55).

Imagem55 - Janelas em fita e estrutura independente. Casa Curutchet projeto de Le Corbusier, Argentina.

Fonte: Foundation Le Corbusier. Acesso em novembro de 2015

Os mencionados predicados da alteridade referem-se às edificações e às relações com seus entornos adjacentes. Na escala da arquitetura da cidade, pode-se considerar que a junção das edificações reforça a qualidade desses predicados: a sequência das sombras acolhedoras, a

continuidade espacial sem hierarquia entre as edificações e a visibilidade hospitaleira permitida pelas janelas da coexistência de cada edifício.

A Carta defende que caberia ao urbanismo responder às necessidades semelhantes dos homens, como morar, trabalhar, recrear e circular, independentemente da cultura e das características das localidades geográficas. Diz também que a racionalidade e a universalidade constituem princípios a ser perseguidos na condução do desenho das cidades. Desse modo, para todos, a solução principal das edificações é a combinação de alta densidade populacional e construtiva com a construção em altura. Essas propostas não respondem aos fundamentos da ética da alteridade quando propõe distanciamentos, separações e hierarquias, vistos, principalmente, nas materialidades referentes ao zoneamento das funções urbanas e ao sistema viário.

Desse ideário surgiram várias ressonâncias que perduram na arquitetura das edificações e no planejamento das cidades ainda na atualidade. Mas as críticas a muitas de suas propostas, algumas reconhecidas como urbanismo humanista, sucederam-se logo em seguida à elaboração da Carta de Atenas, sobretudo nos CIAMs. O próximo Capítulo dedica-se a analisar tais críticas com vista à identificação de outros predicados da alteridade.

Imagem56 - Projeto Caen-Herouville (France), 1961. Candilis, Josic e Woods. Team X Fonte: Sílvio Colin.

Fonte: https://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2010/11/14/team-x/. acesso em março de 2016

Conforme o entendimento de que é preciso a coexistência entre as diferentes pessoas no espaço urbano, diante da condição da vulnerabilidade humana, o planejamento das formas arquitetônicas urbanas, sobretudo entre os espaços edificados e os abertos públicos dos seus entornos, deveria se ater e considerar as propriedades espaciais que possibilitem o encontro. Este Capítulo busca investigar essas propriedades nas propostas do urbanismo humanista, analisando-as a partir de fundamentos da ética da alteridade. Primeiramente, disserta-se sobre o contexto no qual foram desenvolvidos os Documentos da Carta do Habitat e do Manifesto de Doorn - representantes desse pensamento do urbanismo nesta tese. Em seguida, apresenta-se o desenvolvimento da análise de conteúdo, conforme metodologia descrita no Capítulo 4 para, ao final, identificar-se os predicados espaciais da alteridade então identificados.

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 133-139)