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Críticas ao urbanismo funcionalista

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 186-194)

2 ÉTICA DA ALTERIDADE: Fundamentos

7.1 Críticas ao urbanismo funcionalista

Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa (JACOBS, 2000, p. 52).

Na segunda metade do século XX, ocorreram profundas mudanças no que diz respeito ao pensamento urbanístico e ao entendimento sobre o desenvolvimento urbano. Para os denominados “pós-modernos”, a experiência das pessoas nos espaços seria mais complexa do que supunha o ideário do urbanismo funcionalista engendrado entre o início e os meados do século XX. Contrárias à excessiva simplicidade e uniformidade da ordenação espacial moderna, as críticas urbanísticas exaltavam a diversidade edilícia e a mistura de usos como os novos fundamentos a serem considerados no planejamento dos espaços das cidades.

Os postulados do urbanismo funcionalista foram alvo de discordância já em 1951, durante a realização do 8º Congresso do CIAM, quando ali foi evidenciada a importância de resgatar a história urbana materializada nas áreas mais antigas e centrais das cidades. O “coração da cidade”, como então denominado, transformou-se em um tema de preservação relevante nos debates.

Os últimos congressos dos CIAMs, como já abordado no Capítulo 6, contaram com a organização do grupo Team 10, jovens arquitetos urbanistas, que assumiram a defesa de princípios que consideravam as preexistências como base para a composição dos espaços. O ideário promulgado pautava-se na diversidade edilícia como sendo mais adequada à qualidade para a vida urbana das pessoas.

Nesse ambiente de transformação dos espaços das cidades e revalorização das características dos tecidos das suas áreas centrais, sobressaíram, no continente americano, as críticas de Jane Jacobs, jornalista autodidata, escritora e ativista política. Ela dedicou-se a explicar os benefícios da vida nas grandes cidades contrapondo-se aos princípios racionais do urbanismo moderno funcionalista.

O papel de Jane Jacobs90 como pioneira na crítica humanista ao pensamento urbanístico funcionalista caracterizou-se, sobretudo, pelo fato de não acreditar que os princípios da racionalidade e da universalidade (na composição espacial urbana) fossem desfavoráveis à presença e à variedade de pessoas na vida citadina.

Para Jacobs, os espaços deveriam ter um desenho mais heterogêneo para favorecer a diversidade, como era o caso das materialidades que compunham o tecido dos centros históricos tradicionais. A decadência de centros urbanos, resultante de um desenvolvimento urbano em direção ao subúrbio - uma das heranças do zoneamento funcional, que defendia ser benéfico o trabalho se localizar longe da moradia -, havia esvaziado suas áreas (a ideia era a de que seria bom morar em bairros-jardins afastados do adensamento do centro) e incitado no planejamento urbano a necessidade de regenerá-las.

Jane Jacobs, autora do proclamado livro Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas (publicado pela primeira vez em 1961), acompanhou a implantação de projetos de renovação urbana - como participante da revista Architectural Review91 - os quais muitos se caracterizavam pela substituição do tecido urbano preexistente.92

Ela presenciou a efetivação de muitos projetos arquitetônicos e urbanísticos a cargo do reconhecido planejador urbano Robert Moses,93 que transformaram significativas áreas da cidade de Nova Iorque, com a abertura de grandes avenidas e a construção de edifícios verticais. Eles possuíam ideias muito divergentes sobre a concepção dos espaços das cidades, o que a fez ir contra seus planos, como os que destruíram partes do tecido urbano de Washington Square Park e ainda de Greenwich Village (localidade onde Jacobs morava) para a implementação de corredores viários (Imagem 81).

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Nascida na Pensilvânia, Jane Butzner Jacobs (1916-2006) não teve formação acadêmica nas disciplinas da arquitetura e do urbanismo. Frequentou algumas aulas na School of General Studies, uma extensão da Universidade de Columbia.

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O papel de Jacobs no debate urbanístico ainda se faz na atualidade. Em diversas cidades do mundo ocidental, como nas do Brasil, aconteceram no ano de 2016 as reconhecidas Jane’s Walk. Trata-sede séries de tours de caminhadas na cidade, que colocam em contato os cidadãos com o seu entorno urbano, no intuito de promover o uso do espaço público, o encontro e o usufruto do meio urbano.

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É bem verdade que o abandono da moradia dos centros urbanos em direção aos subúrbios, nas grandes cidades americanas, já tinha se dado desde os anos 1940, quando o governo investiu em construções de estradas. Foi por volta dessa data que se iniciou o programa “Urban Renewal” com o objetivo de reabilitar os centros que ficaram degradados.

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Moses e Jacobs travaram uma luta devido a ele ter sacrificado bairros de Manhattan em prol da construção de arteriais viárias fazendo surgir carros e caminhões. Segundo Hockenberry, Moses incitou urbanistas a criarem estratégias para redesenhar a cidade prejudicada por ele. Hockenberry diz que: Este projeto da cidade

moderna do século XX tornou-se o adubo para o impasse e não seu antídoto. (artigo do Achdaily-Uma cidade sem carros: A superação do domínio do automóvel em Nova Iorque. 17:00 - 31 Agosto, 2014 por John Hockenberry).

Imagem81 - O interventor Robert Moses.

Fonte: http://affordablehousinginstitute.org/blogs/us/2006/04/jane_jacobs_191.html. Acesso em janeiro de 2016

Enquanto ele se voltava para a mobilidade urbana viária, Jacobs defendia outro tipo de desenvolvimento urbano, que se substanciava na noção de que a vida das pessoas no espaço público era proporcionada, sobretudo, pela diversidade de usos. A rua não deveria destinar-se prioritariamente ao deslocamento de veículos mas, sim, ao contato entre a população do seu entorno.

Jacobs desenvolveu uma crítica contundente a esse tipo de desenvolvimento urbano, proclamando as vantagens de viver nas áreas centrais urbanas. Ela dizia que a maior deficiência do planejador urbano residiria na dificuldade de compreender as vicissitudes positivas do funcionamento das cidades em meio à sua diversidade. Em entrevista ao jornal New York Times, em 1969, Jacobs chegou a dizer que os planejadores eram ensinados a enxergar a complexidade das cidades como sendo um transtorno, não se atendo às questões benéficas que estariam subjacentes à sua complexidade. A crítica registrada nesse seu livro assinala o seu percurso como ativista, o qual foi marcado por ações pautadas pela defesa da vida nos espaços públicos resultante da diversidade presente no tecido dos centros urbanos. Segundo preconizava Jacobs, a permanência da vida cotidiana nos bairros, por meio do seu uso pelas pessoas, moradoras ou não, seria uma maneira para garantir a segurança nos seus espaços públicos. Punha-se, portanto, contra os projetos que, ao

tentarem “sanear” e ordenar os espaços da cidade, terminavam por prejudicar a vida das pessoas no espaço público. Mudanças no tecido urbano para a construção de elevados, grandes vias e torres monofuncionais tornaram a crítica de Jacobs muito propagada em diversos países que passavam por transformações similares. A demolição da reconhecida Penn Station,94 em Nova York (1963), conduziu essa autora a manifestar sua posição contrária (Imagens 82, 83 e 84).

Imagem82 - Interior da Penn Station em 1911.

Fonte: Image: Geo. P. Hall & Son/The New York Historical Society/Getty

Images.http://mashable.com/2015/07/20/original-penn-station/#6MFy.0hPgkqO. Acesso em janeiro de 2016

94 Os planos para a demolição da Penn Station, que também demoliram as duas estações anteriores,

conseguiram destruir a sua parte superior - para o espanto do povo de Nova York. Por conseguinte, a Comissão para a Preservação de Monumentos de Nova York (criada após parte da Penn Station ser destruída) tornou-a um monumento, cancelando as outras demolições previstas. No final de 1976, o Registro Nacional de Lugares Históricos nomeou a referida estação de Marco Histórico Nacional.

Imagem83 - Imagem do interior da Penn Station em demolição.

Fonte: fotografia Alexander Hatos.1965 Gizmodo. Acesso em janeiro de 2016

Imagem84 - Jane Jacobs, à esquerda e o arquiteto Philip Johnson, a sua direita protestam contra a destruição da Penn Station.

Jacobs referia-se à diversidade edilícia, representada pelo pequeno comércio e por outros serviços que configuravam o conjunto edificado das áreas centrais, como favorável à sua vitalidade. Desde os açougueiros aos barbeiros, todos os que habitavam essas localidades seriam importantes para proporcionar vida às cidades. Desse modo, contrapunha-se, de forma veemente, aos postulados funcionalistas do urbanismo de Le Corbusier (da Carta de Atenas), pelo modo cartesiano e racional de organizar e distribuir os usos no espaço. Uma de suas críticas é contra o estabelecimento de medidas ideais e fixadas para o homem - “le modulor” -, utilizadas para subsidiar a organização espacial edilícia e, consequentemente, urbanística.

Em contraposição, Jacobs considerava as particularidades humanas como salutares para favorecer a vivencia no espaço, sendo, pois, importantes para subsidiar o planejamento urbano.

Assim, ela defendia que, para não eliminar as singularidades e responder de modo adequado às necessidades das pessoas no espaço urbano, seria preciso contrapor-se às soluções abstratas e universais. Se tais postulados do urbanismo funcionalista buscavam ordenar o espaço urbano, Jacobs defendia que havia uma intrincada ordem social e econômica sob a aparente desordem nas cidades.

Desse modo, Jacobs combateu conceitos propostos por Le Corbusier, desde aqueles que adaptaram às vicissitudes das qualidades da “Cidade Jardim”, de Ebenezer Howard, ao projeto da

Ville Radieuse, até outros que iam ao encontro das qualidades inerentes à complexidade urbanística.

A construção de edificações fundamentadas nos princípios da arquitetura do estilo

internacional, em substituição à variedade que caracterizava as estruturas preexistentes, contrariava

as ideias dessa autora. A regularidade das novas edificações traria prejuízos ao uso cotidiano dos espaços públicos, visto que o comportamento sócio- espacial,95 implicaria o pouco uso das calçadas, reduzindo-as a se tornarem apenas um espaço para o deslocamento e promovendo o uso do automóvel.

A qualidade “caótica” da metrópole, ou sua “desorganização”, poderia ser atrativa para a vida urbana, uma vez que era desse modo que Jacobs olhava para o ambiente e valorizava a sua capacidade de gerar diversidade. A intimidade entre os diferentes grupos sociais seria salutar, sobretudo se gerasse ações de cooperativismo, a fim de que eles lutassem e participassem do planejamento urbano local.

As materialidades arquitetônicas urbanísticas deveriam possibilitar a criação de um ambiente para a reunião das pessoas, de modo que elas pudessem reivindicar as desejadas benfeitorias para o seu bairro. A participação no planejamento urbano foi uma das pautas mais defendidas e praticadas pela autora. Portanto, não é sem razão que se evidenciou a sua rejeição aos princípios postulados

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As formas de apreender as qualidades dos espaços citadinos em decorrência da falta de consideração pelo contexto provocaram,à época, o desenvolvimento de abordagens de outros campos disciplinares, como os estudos sociológicos e antropológicos, no urbanismo. Jacobs, com suas críticas humanistas, incitou esse ambiente de interdisciplinaridade.

pela Carta de Atenas, sejaquanto ao zoneamento, ou à divisão dos espaços urbanos por funções, seja quanto à criação de sistemas de vias hierarquizadas que conectam localidades funcionais. Essa configuração espacial prejudicaria as ações de cooperativismo, o que era, então, defendido por Jacobs.

Provavelmente, Jacobs não tinha noção da repercussão de seu primeiro livro, lançado quando tinha 45 anos de idade, e que se tornou uma referência crítica seminal aos princípios formulados pelo urbanismo funcionalista moderno. Sua visão foi compartilhada e disseminada por outros urbanistas, principalmente no que tange à necessidade de um entendimento mais aprimorado sobre a vivência das pessoas em espaços públicos, como as calçadas.

Sua crítica destaca-se por diversos motivos, mas sublinha o seu interesse pela escala do entorno das edificações. Seu modo de compreender esse recorte espacial urbano era diferente do ideário do urbanismo funcionalista da Carta de Atenas. Trata-se de duas concepções que buscavam responder às demandas sobre as formas mais apropriadas para a configuração urbana: A primeira (a de Jacobs) se atém à possibilidade de um maior uso pelas pessoas dos espaços públicos adjacentes às edificações, e a segunda (a do urbanismo funcionalista) buscava o bem-estar do homem em meio aos espaços verdes configurados entre as edificações.

Os grandes afastamentos entre os edifícios, para Jacobs, prejudicariam a concentração de pessoas nos espaços. A consequência desse tipo de configuração espacial seria a baixa densidade construtiva horizontal, a homogeneidade edilícia, a distância das edificações em relação às ruas e a perda do sentido da cidade como lugar da diversidade. Segundo Jacobs, as configurações espaciais organizadas por zonas hierarquizadas e separadas (Imagem 85) (como o Plano Voisin, em Paris, desenvolvido por Le Corbusier) perderiam seu sentido urbano, presente na cidade “caótica”.

Imagem85 - Plano Voisin de Paris. Le Corbusier. 1922-30.

Fonte: Pinterest. Foutation Le Corbusier.Acesso em janeiro de 2016

Os espaços públicos deveriam ser valorizados por meio do desenho do seu entorno edificado. Desse modo, Jacobs dedicou grande parte de sua obra à vida nas calçadas, buscando identificar as características do ambiente que poderiam incentivar o seu uso contínuo. Ela deteve-se, por exemplo, no tipo de distribuição de usos nas edificações dos seus entornos, de modo a propiciar uma maior permanência das pessoas, assim como nas delimitações dos espaços públicos e privados, por acreditar que seria uma configuração espacial mais adequada.

Menor importância foi dedicada às praças e aos parques, principalmente aos grandes parques urbanos, uma vez que Jacobs alegava que a inconstância do uso dessas localidades se deveria à grande distância das edificações. Assim, ela defendia que a boa alternativa seria implantar pequenas praças na escala dos bairros, as quais teriam densidade construtiva habitacional, bem como pessoas suficientes para serem utilizados. O contrário dessa condição seria a criação de espaços esvaziados e perigosos.

Jacobs debruçou-se de maneira muito atenta sobre a vida das pessoas nos espaços públicos dos centros de cidades americanas e desenvolveu críticas contundentes à aplicação de alguns fundamentos do urbanismo funcionalista. O conjunto delas teve ressonância em outros países, como foi o caso do Brasil, e contribuiu para compor o pensamento urbanístico de base humanista.

No próximo item, serão explorados os pormenores contidos nas críticas anunciadas. As análises das propostas de Jane Jacobs para a composição espacial urbana entram em pauta para a identificação de propriedades espaciais que façam face à ética da alteridade, propiciando a coexistência de diferentes pessoas, agora em outro contexto, distante dos CIAMs.

No documento Urbanismo da alteridade (páginas 186-194)