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A colecção como estratégia editorial para propaganda da instrução

No documento Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo (páginas 34-37)

Capítulo I – A educação do povo no epílogo da monarquia em Portugal

1.5 A colecção como estratégia editorial para propaganda da instrução

No século XIX, os editores com o objectivo de promover a difusão da ciência para um núme- ro mais amplo e menos erudito de leitores inventaram as colecções populares de divulgação científica. O que era uma colecção? O que era uma biblioteca? Significariam ambas a mesma realidade editorial?

Segundo Chartier (1997), citando o Dictionnaire universel de Antoine Furetière (1690),

O primeiro sentido é o mais clássico: “Biblioteca: apartamento ou lugar que serve para colo- car livros; galeria, edifício cheio de livros. Emprega-se também para designar os livros que estão arrumados nesse edifício.” Surge depois um segundo significado que não designa um lugar, mas sim um livro: “Biblioteca é também uma colecção, uma compilação de várias obras do mesmo género, ou de autores que compilaram tudo o que pode ser dito acerca do mesmo tema.” (pp. 100-101).

Chartier reforça o segundo sentido, fazendo referência ao Dictionnaire da Academia de Fran- ça, que surge quatro anos após o de Furetière,

Chama-se também bibliotecas às colecções e compilações de obras do mesmo género.” São dados três exemplos práticos a seguir à definição: “La Bibliothèque des Pères, La Nouvelles

26 No quadro da historiografia francesa do livro e das edições, Olivero (1999) analisa a colecção como uma nova ordem de impresso inventada, produto de uma estratégia editorial, que visava a conquista de um público mais vasto de leitores, em França, no século XIX. A investigadora, a partir do estudo dos dispositivos editoriais de produção da colecção, construiu um modelo de análise passível de se estender para além do caso francês14.

O modelo de Olivero (1999: 126-141) permite identificar e analisar os dispositivos de homo- geneização dos livros e os dispositivos de produção que se traduzem nos dispositivos tipográ- ficos e textuais de produção, que conferem a identidade e a unidade à colecção: a padroniza- ção das capas, contracapas, páginas de espelho e lombadas; a estrutura interna dos volumes, estabelecendo-se um modelo ao qual os textos publicados são submetidos; as estratégias de divulgação.

Uma “coleção de livros é sempre produto de uma estratégia editorial dotada de características que lhe são específicas” e que adquirem “contornos variáveis, adequando-se a condições específicas impostas pelo mercado editorial e reajustando-se segundo objetivos historicamen- te variáveis, de natureza econômica, cultural e política” (Carvalho e Toledo, 2004: 1, 2007: 1).

Deste modo, o estudo da colecção como modalidade específica de impresso obriga a conside- rar, na sua materialidade, uma dupla estratégia de mediação cultural e educativa: do ponto de vista editorial, por meio da reorganização dos textos para a ampliação do mercado, concebe as representações do leitor e das práticas de leitura específicas e adequadas a ele; no campo da educação, por meio da selecção e da adaptação do conjunto de textos e de autores, traça o programa específico de formação do leitor.

Torna-se pertinente reconhecer as características que marcaram as colecções populares. Esta nova ordem de impresso destacava-se por ser portátil e de baixo custo. A produção e a circu- lação do livro barato orientavam os critérios estéticos e editoriais traçados pelos editores, como o tipo de papel, a uniformidade da capa, a similaridade entre os volumes, tiragem e periodicidade da publicação.

Para além disso, os livros que formavam as colecções deveriam ser concisos e pouco volumo- sos, embora tivessem que conter os “conhecimentos uteis”, ou seja, o essencial do que havia sido produzido até ao momento pelo conhecimento humano, e ser, pelo seu baixo preço, aces- sível a todos os indivíduos.

Reportando ao conceito de estratégia de Certeau, Carvalho e Toledo (2007) afirmam,

14 Conforme Olivero (1999) defende, a indústria do livro, em França, no século XIX, enfrentava um duplo desa-

fio: por um lado, a necessidade de ampliar o mercado consumidor num período de crise da indústria livreira francesa e, por outro lado, a procura de uma política cultural que depositasse no livro a missão de educar, civili- zar, universalizar e edificar.

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A edição de coleções é sempre produto de uma dupla inserção em um lugar de poder: de um lado, a de um interesse econômico de uma casa de edição, marcada por uma lógica que visa a ampliação do mercado editorial; de outro, a de uma política cultural que deposita no livro uma missão, variável segundo os objetivos que lhe são atribuídos por seus promotores, em situações históricas específicas (p.1).

Com efeito, na opinião de Venâncio (2004), as colecções, como produto de uma estratégia editorial, integram-se no

Processo de afirmação da figura moderna do grande editor que se distinguia dos livreiros e impressores. As coleções criadas pelas casas editoras européias podem ser consideradas o principal instrumento de afirmação do poder dos editores […]. A criação de colecções popu- lares foi, justamente, o que permitiu aos editores o estabelecimento de um comando editorial através do qual eles passaram a estabelecer as normas do mercado. Na organização das cole- ções, os editores mudaram sua ação, deixando de comprar manuscritos propostos pelos auto- res, e passando, por meio de uma produção planificada, metódica e racional, a solicitar e fazer com que os autores produzissem textos que atendessem aos seus interesses (pp.6-7).

A estratégia programada para produção de uma colecção envolve dispositivos editoriais como a selecção de textos e autores adequados a leitores diferenciados e a configuração de um apa- relho crítico (prefácios, notas, índices, exercícios, sumários) que adaptam o texto, integrando- o no padrão da colecção. O editor, em vez de impulsionar toda uma rede de especialistas para a produção de cada um dos textos, estabelece um único padrão de edição, estimulando os especialistas apenas para a produção geral.

Com a padronização geral consegue-se uma diminuição dos custos gerais e, em consequência, a unidade da colecção (Toledo, 2006: 202). Esta estratégia implica um enorme investimento por parte dos editores na produção das colecções que tem como objectivo ampliar o público leitor através da diminuição dos custos cada livro produzido.

De acordo com Olivero (1999), o estudo da colecção levanta o problema do crescimento do público leitor, já que as novas práticas editoriais visam sempre uma expansão do mercado editorial, atingindo novos leitores: os que ainda não fazem parte do círculo dos que conso- mem esta mercadoria ou os novos leitores, por estarem limitados no acesso ao livro, que ainda não têm entrada no mercado editorial. Neste sentido, tomando as palavras de Toledo (2006),

As colecções são uma maneira de tornar atraente um produto que já circula – o livro – atraindo novos consumidores para novas formas de uso do produto. O livro é adaptado a um perfil específico de leitor e oferecido como produto especialmente desenvolvido para este. (…) Pela adaptação editorial do texto, os leitores que por suas qualidades (financeiras ou intelectuais) não teriam possibilidade de ler um determinado texto têm acesso a ele pelas operações editoriais. Nessas operações, a prática editorial acaba por inventar o leitor ao qual se destina o livro, à medida que as adequações de cada proposta objetivam um tipo de leitor que estaria mais interessado em um tipo específico de leitura (p. 201).

A invenção da colecção levou à invenção dos leitores. Os editores adequam a produção do impresso em função da representação do leitor, adaptando os textos ao leitor ou gizam estra- tégias que motivem os novos leitores para a leitura.

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CAPÍTULO II

No documento Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo (páginas 34-37)