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O livro impresso: produção, circulação e apropriação de modelos culturais

No documento Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo (páginas 32-34)

Capítulo I – A educação do povo no epílogo da monarquia em Portugal

1.4 O livro impresso: produção, circulação e apropriação de modelos culturais

No campo da História da Educação, da Cultura, do Livro e da Leitura, as concepções propos- tas em Carvalho (2006), Carvalho e Toledo (2004, 2007), Mogarro (2006), Pintassilgo (2006), e Toledo (2006, 2006a) possibilitaram pesquisas sobre a produção, a circulação e as utiliza- ções específicas do objecto impresso como produto de estratégias editoriais no domínio da educação, e no caso desta investigação no da educação popular. Estas perspectivas, inspiradas nas teses historiográficos de Roger Chartier (1996, 1997, 1998, 2002) e de Michel de Certeau

11 Por iniciativa de Jaime Cortesão, nasceu dentro do movimento Renascença Portuguesa, em 1912, a revista A Vida Portuguesa cujo projecto editorial se centrava na reflexão sobre os problemas pedagógicos, religiosos, económicos e sociais e a procura de soluções. De acordo com Pintassilgo (2006), a Renascença Portuguesa foi um movimento com grande expressão no panorama cultural português, nas primeiras décadas do século XX. Foi liderado por intelectuais republicanos influentes, tais como Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, António Sér- gio, Raúl Proença, Leonardo Coimbra e Álvaro Pinto. O movimento tinha como objectivo promover a maior cultura do povo português, através de diferentes meios de difusão: conferência, manifesto, revista, livro, biblio- teca e escola.

12 Neste artigo António Sérgio retomou ideias desenvolvidas numa conferência proferida no Rio de Janeiro e apresentou os propósitos da Renascença Portuguesa.

24 (1994), constituem um quadro teórico de investigação que permitem, também, analisar e compreender as representações que os educadores, autores e editores construíam sobre os lei- tores que pretendiam educar.

A utilização do objecto impresso, especificamente, o livro, resulta da produção, circulação e apropriação de modelos culturais. Para Chartier (1998: 9), a cultura do objecto impresso encerra uma dupla definição: por um lado, importa considerar os aspectos relacionados com a produção e a circulação; por outro lado, as múltiplas utilizações e as diversas apropriações de que os objectos impressos de grande circulação foram alvo entre Gutenberg e a segunda revo- lução do livro, no século XIX.

No domínio da História da Cultura, o estudo da materialidade dos objectos culturais implica distinguir as marcas da sua produção, circulação e usos. A investigação demarcada pelas pro- blemáticas relativas à materialidade dos objectos culturais conduz ao conhecimento das estra- tégias que os produzem e põem em circulação e das apropriações de que são matéria e objecto (Certeau, 1994; Chartier, 1996, 1997, 1998, 2002).

No campo de estudo sobre a circulação de objectos culturais, como é o caso do livro impres- so, analisado à luz do conceito de apropriação proposto por Certeau (1994), evidencia-se a separação entre “os usos prescritos e os usos efectivos” (Carvalho, 2006: 141). Isto significa que a circulação dos objectos culturais, no tempo e no espaço, possibilita usos discrepantes dos usos que foram previstos e encontra-se inscrito na sua materialidade aquando da sua pro- dução, graças a práticas de apropriação que põem em relação “uma matéria a ser apropriada, uma situação, uma finalidade e um agente dotado de competências específicas que, nesta situação, actualiza um repertório cultural determinado”. As “práticas de apropriação são sem- pre de práticas de transformação de objectos materialmente estruturados” e podem ser enten- didas como “táctica” que subverte “dispositivos de modelização” inscritos na materialidade dos objectos culturais (Carvalho (2006: 143).

O estudo do impresso obriga a entender os dispositivos textuais e tipográficos de modelização de leitura inscritos na configuração material do impresso como “forma produtora de sentido” (Chartier, 1996). Pois, “não existe texto fora do suporte que o dá a ler e que não há compreen- são de um escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele chega a seu leitor” (Chartier, 2002: 127). Ao citar D. F. Mckenzie13, Chartier (1997) reitera

essa ideia, afirmando que

A atenção centra-se no modo como as formas físicas, através das quais os textos são transmi- tidos aos seus leitores (ou aos seus auditores), afectam o processo de construção do sentido. Compreender as razões e os efeitos dessas materialidades (por exemplo, para o livro impres-

13 Cf. Chartier (1997: 48), D. F. Mackenzie, Bibliography and the sociology of texts, op. cit., em particular “The book as an expressive form”, pp. 1-21 (tr. fr., pp. 25-54).

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so, o formato, a disposição da página, o modo de fragmentação do texto, as convenções que regulam a sua apresentação tipográfica, etc.) remete necessariamente para a verificação que os autores ou os editores exercem nessas formas encarregues de exprimir uma intenção, de dirigir a recepção, de forçar a interpretação (p. 48).

No caso do estudo do impresso, a noção de apropriação entendida como táctica harmoniza-se com o conceito de estratégia (Certeau, 1994).

A ideia de estratégia remete a práticas cujo exercício pressupõe um lugar de poder, por exem- plo uma casa de edição, evidenciando “dispositivos de imposição de saberes e normatização de práticas”. Por conseguinte, estudo do impresso como produto de estratégias permite escla- recer “as marcas de usos prescritos e de destinatários visados por seus produtores, – autores e editores, mas têm esse seu valor indicial relativizado pelas estratégias de que são produtos”. Deste modo, a apropriação compreendida como táctica “subverte os dispositivos materiais – textuais e tipográficos – de modelização do destinatário, põe em cena esse hiato entre os usos e suas prescrições, evidenciando a complexidade da relação entre objectos culturais e seus usos”. É a posição das práticas de transformação dos objectos culturais em relação a um lugar de poder determinado que estabelece a distinção entre os conceitos de estratégia e de apro- priação: enquanto a primeira é prática cujo exercício se dá a partir de um lugar de poder, as “práticas de apropriação dão-se sempre em um território que não é o seu” (Carvalho, 2006: 143-144).

No documento Olímpia de Jesus de Bastos Mourato Nabo (páginas 32-34)