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CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO ESTUDO

1.3. A Compreensão da Ironia

Um dos pontos de controvérsia acerca da ironia é o que envolve a complexa questão da relação entre os sentidos literal e figurado da linguagem, que demanda, consequentemente, a consideração do que se entende por “compreensão” e qual a concepção de língua subjacente à análise. Ao adotar a compreensão como uma extração de sentido existente na superfície textual, tem-se a noção da língua como um código, baseada numa semântica lexicalista, numa noção de referência extensionalista na relação linguagem/mundo (Marcuschi, 2008). Essa visão de linguagem como expressão referencial do mundo exclui um dos seus mais importantes usos: o de estabelecer relações. De fato, a linguagem, em si, permite uma rede de relações que envolve uma combinatória de substituições permanentes de domínios semânticos por outros domínios semânticos, de modo que limitar a linguagem apenas ao aspecto literal seria tudo, menos linguagem (Esteves, 1997).

Por outro lado, de uma perspectiva inferencial da compreensão - a partir da qual se realizou esta pesquisa - a língua é vista como uma atividade sociointerativa de base cognitiva e histórica, que segue convenções de uso fundadas em normas socialmente instituídas (Marcuschi, 2008). Esta concepção de linguagem encontra respaldo no que dizia Humbolt (1767-1835), que via a língua não como simplesmente um sistema de signos, mas como uma

atividade (energeia), “um trabalho mental continuamente reiterado de fazer o som articulado capaz de expressar o pensamento” (Faraco, 2007). A linguagem, então, é entendida como aquilo que torna possível o pensamento, tendo, portanto, um caráter constitutivo e permitindo a elaboração conceitual e os atos criativos da mente.

Neste estudo, entendemos que as situações discursivas utilizadas constituem eventos comunicativos no qual convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas. Desse modo, o sentido dos textos não é visto como estando no leitor/ouvinte/telespectador, nem no texto em si, mas é construído inferencialmente, a partir de pistas como prosódia, escolhas lexicais, organização sintática, estilo, gestos, posturas, expressões faciais, entre outras. Como afirma Marcuschi, “compreender é essencialmente, uma atividade de relacionar conhecimentos, experiências e ações num movimento interativo e negociado” (Marcuschi, 2008, p. 252).

Nesta seção, apresentam-se, resumidamente, resultados de alguns trabalhos voltados para a compreensão da ironia. Conforme falado anteriormente, boa parte dos trabalhos sobre compreensão da ironia inscreve-se no âmbito cognitivista de estudos psicológicos, sendo um dos tópicos de maior interesse no estudo da ironia o desenvolvimento de sua compreensão. Creusere (2000) oferece uma revisão das pesquisas sobre o assunto, organizando-as em cinco áreas: compreensão, influências contextuais, influências da teoria da mente, entonação e funções comunicativas e sociais.

Na primeira categoria de estudos sobre o desenvolvimento da compreensão da ironia, Creusere menciona aqueles que investigaram a compreensão das crianças de diferentes formas de linguagem não-literal, como metáfora, ironia, hipérbole e engano versus atos de fala literais (Demorest et al., 1984), os quais indicam ser a compreensão da ironia mais tardia que as demais, em torno dos seis anos. Também cita a sugestão feita por Winner et al (1987) de que haveria três tipos de ironia – sarcasmo, hipérbole e eufemismo – e que o sarcasmo seria o tipo de ironia mais fácil de se entender. Por outro lado, o eufemismo seria o tipo de ironia mais difícil de se perceber, havendo sido entendido comumente durante o estudo como declarações literais verdadeiras.

O segundo grupo de estudos da compreensão da linguagem não-literal é o que focaliza o papel da localização de informação contextual e da memória no reconhecimento dos atos de fala irônicos por crianças, como pode ser visto no estudo realizado por Ackerman (1982, apud Creusere, 2000). Segundo concluiu, a memória sozinha não era responsável pela dificuldade das crianças em entender o sarcasmo e a localização das informações contextuais influenciou no desempenho apenas das crianças menores (as que estavam na 1ª Série), ao ressaltar a discrepância entre contexto/enunciado. Quanto ao papel da memória, Winner et al (1987) igualmente descobriram que ela não era um fator muito importante na falta de habilidade das crianças em reconhecer o sarcasmo irônico, mas que teria, sim, contribuído cognitivamente na compreensão deste ato de fala.

No terceiro âmbito de estudo do desenvolvimento da compreensão irônica destaca- se o papel da teoria da mente no processo, sobre o qual foram realizados diversos trabalhos (Creusere, 1997; Happé, 1993, 1995; Sullivan et al., 1995; Winner, Brownell, Happé, Blum & Pincus, 1998; Winnher & Leekam, 1991, apud Creusere, 2000), os quais apontavam a associação entre a habilidade de segunda ordem da teoria da mente (capacidade de predizer o que a pessoa X sabe que a pessoa Y sabe) e a compreensão da ironia por crianças e adultos. Foram comparados nestes estudos os desempenhos de crianças autistas, crianças em desenvolvimento normal e de adultos com danos cerebrais, nos quais se concluiu que a dificuldade em perceber a ironia e o sarcasmo coincidiu com a inabilidade em fazer predições sobre estados mentais de segunda ordem.

O papel da entonação e das expressões faciais no reconhecimento da ironia foi o quarto aspecto apresentado por Creusere em sua revisão dos estudos sobre compreensão da ironia. Os posicionamentos sobre a importância desses fatores são divergentes: alguns estudos sugerem que não são pistas necessárias ou úteis na detecção da ironia (Ackerman, 1986; Gibbs & O’Brien, 1991; Winner & Leekam, 1991 e Winner et al., 1987), enquanto outros indicam que eles facilitam a compreensão de, pelo menos, certos componentes dos atos de fala irônicos. Segundo Creusere & Echols (1999), as expressões faciais dos falantes podem, inclusive, mediar a percepção da atitude irônica do falante como “boa” ou “má”.

Em quinto lugar, na linha de pesquisa quanto à compreensão da ironia, vêm os estudos que investigam as funções sociais e comunicativas dos atos de fala irônicos, os quais,

segundo Creusere, são poucos. Revelar uma atitude do falante diante de uma pessoa ou situação é uma das funções comunicativas propostas em estudos para o uso da ironia (Dews, Kaplan & Winner, 1995; Giora, 1995; Kreuz & Glucksberg, 1989; Kumon-Nakamura, Gluksberg & Brown, 1995; Sperber & Wilson, 1995). Alguns dos resultados oferecidos parecem ser contraditórios, como por exemplo, Andrews et al (1986) concluiu que as crianças eram capazes de reconhecer a atitude do falante por trás da ironia, mesmo quando não conseguiam captar a intenção do enunciado do falante. De modo contrário, Winner e Leekam (1991) afirmam que as crianças tinham que primeiro detectar a intenção do falante antes de serem capazes de reconhecer sua atitude irônica. Creusere (2000) conclui dizendo que as razões para esta diferença não são claras.

Finalmente, neste artigo, Creusere conclui que estes e alguns outros estudos têm fornecido evidência intrigante de que as crianças são capazes de reconhecer pelo menos alguns dos objetivos comunicativos e efeitos sociais da escolha de um falante de empregar ironia e sarcasmo. Especificamente, diz ela, existiria evidência de que a sensibilidade à natureza potencialmente humorística, atenuante, e informativa dos atos de fala começa a se desenvolver em torno dos 5 ou 6 anos de idade (Creusere, 2000).

Uma das propostas explanatórias mais recentes deste processo de cognição da ironia é o modelo denominado “Parallel-constraint-satisfaction”, o qual explica que vários sinais de intenção irônica, como tom de voz, incongruência e conhecimento sobre o enunciador são processados rapidamente e em paralelo, de forma que a interpretação irônica é considerada assim que há evidência suficiente que lhe dê suporte (Pexman, 2008). Não se explicita, neste estudo, com que modelo de compreensão a autora de compromete, embora sua abordagem se aproxime da linha dos estudos do modelo da construção- integração de Kintsch (1998), já que considera a elaboração feita pelo indivíduo a partir dos conhecimentos linguísticos, experiências e conhecimentos de mundo.

Por causa da ambiguidade inerente à linguagem irônica, o entendimento da ironia resultaria da realização de complexas inferências sociais, emocionais e cognitivas, as quais são rapidamente coordenadas no processo de compreensão. O indivíduo tem que fazer estas inferências a partir das palavras do falante, julgar a atitude dele sobre a situação e

sobre suas palavras e avaliar como o enunciador pretende que suas palavras sejam entendidas.

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