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CAPÍTULO 3 – ANÁLISES E DISCUSSÕES

A) Informações Visuais X Construção Discursiva

Quase a metade (44%) das crianças atribuiu sentido irônico à fala do Cascão a partir do contraste entre as características físicas da Srta. Biju, apreendidas visualmente, e a idéia que faziam dela devido à construção discursiva realizada por Cebolinha no início da história. Algumas disseram que ela era feia (como p.ex., Gabriela, anexo 12), outras, que não era bonita (p.ex., Cibelle, Anexo 14), outras que era velhinha ou uma vovó (p. ex., Rebeca, Anexo 09) e algumas outras que apontaram diretamente as características físicas consideradas desagradáveis (p.ex., Eliana, Anexo 04). A seguir, vejamos dois destes exemplos selecionados:

Ex. 18 - Participante 2 (ELIANA, 5 anos)

Mais uma vez trazemos um exemplo com a participante Eliana, que, de acordo ao apresentado nos Exs. 1 e 14, foi uma criança que sobressaiu-se por sua articulação verbal, não obstante sua pouca idade, e sua disposição em contribuir com a atividade proposta. Ela pareceu haver compreendido as três ironias presentes nas historinhas: na primeira, não conseguiu deixar claro como chegara àquela compreensão, embora tenha assegurado que fora algo dito pelo personagem; já no segundo episódio, ela parece recorrer a uma convenção social para basear seu entendimento da pergunta feita por Magali.

Diferentemente das situações anteriores, no terceiro episódio Eliana aponta ter atribuído um sentido contrário à fala de Cascão por conta da inadequação física da professora: “ela não do tamanho dele... é muito grande!”. Parece que houve uma quebra de expectativa em relação à figura da professora por parte da criança, o que aparentemente levou-a a construir o sentido irônico do comentário de Cascão, como se pode inferir de sua resposta inicial: “... ele queria que seja:: é:: da forma do Cebolinha:: ou dos outros...”. Como os personagens deste desenho são crianças, provavelmente ela esperava deparar-se com uma figura fisicamente compatível com elas, o que não aconteceu e acabou servindo como pista para a compreensão do comentário dos personagens como irônicos. Vejamos, abaixo, a transcrição:

Pq – Cê ouviu o que ele disse... o Cascão? P2 - [assente]

Pq – E aí o Cascão... ele acha que a dona Biju é uma gata? P2 – Não! [responde prontamente]

Pq – Não?

P2 – Não, porque ele queria que seja:: é::: da forma do Cebolinha:: ou [olha para a câmera e fica um pouco encabulada] do outros... [eleva os cotovelos, estralando os dedos; depois levanta os braços sobre a cabeça, ainda fitando a câmera, com timidez]

Pq – O::: você acha que o Cascão achou a senhorita Biju bonita? P2 - Não! [fala com os braços erguidos sobre a cabeça]

Pq – Como é que você sabe que ele não achou?

P2 – Porque:: ela não do tamanho dele... é muito GRANDE! [fala com ênfase] Pq – É muito grande?

P2 – Hum-hum!

Pq – E o que é que o Cebolinha tinha dito pra ele sobre senhorita Biju?

P2 – Num sei! A senhorita Biju::: num disse nada! [fala com as mãos sobre a cabeça e olha para a câmera]

Pq – Ele tinha dito que ela era bonita, não foi? Pra ele ir com ele pra escola... e aí o Cascão, ele... como é que cê acha que ele ficou depois que viu a cara da senhorita Biju?

P2 – [com os braços levantados acima da cabeça] num sei... Pq – Ele ficou contente, ficou chateado, ficou como? P2 – É::: chateado!

Pq – Você acha que ele vai ficar na escola com o Cebolinha? P2 – Não! [balançado a cabeça]

Pq – Por que cê num acha que ele vai ficar? P2 – ele num gostou dela...

Pq – Ele não gostou de quem? P2 – Dela!

[exibe-se o final do episódio]

Pq – Ouviu o que ele disse, “linda e maravilhosa, né Cebolinha!” [imitando o tom do personagem]

P2 – [começa a sorrir e olha para a câmera, mexendo com os dedos] Pq – Ele tava achando que a srta. Biju era linda e maravilhosa?

P2 – Não! [balança a cabeça negativamente e enche as bochechas de ar] Pq – Não? E por que é que ele disse isso? Cê acha que ele disse isso por quê?

P2 – [fala em tom de voz alto, olhando para a tela] PORQUE ELE QUERIA MAGOAR ELE! [aponta para a tela]

Pq – Ah, é? Tá bom...

P2 – Eu quero ver Meninas & Meninos! [pede, enquanto balança as pernas]

Pq – Cê quer ver? Então tá bom... quando terminar a gente faz... a gente vê o que é que faz, tá bom?

P2 – [balança a cabeça, assentindo]

Um ponto a destacar neste exemplo é a atribuição de intenção no uso da ironia que a criança faz ao personagem (“porque ele queria magoar ele”), que nos faz remeter àquilo que Hutcheon considera ser a característica fundamental da ironia – sua aresta avaliadora, a qual foi comentada no sub-tópico 1.2.3. Neste caso, a função do enunciado irônico, segundo a interpretação da criança, seria “magoar” o oponente (Cebolinha), podendo, assim, ser enquadrada, de acordo com a escala tonal de funcionamento da ironia, à função de oposição, na qual a ironia teria um efeito pragmático insultante e ofensivo, em sua versão desfavorável.

Ex. 19 - Participante 25 (REBECA, 8 anos)

Mais uma vez, temos um exemplo com a criança Rebeca, que, segundo descrevemos nos Exs. 6 e 17, colaborou com atenção e muito bom humor nas três historinhas exibidas, tendo parecido atribuir sentidos irônicos em todas elas. No primeiro

episódio, Rebeca indicou uma atitude percebida no pai do Cascão como pista que a ajudou a compreender a ironia; já no segundo episódio, ela pareceu recorrer a uma convenção socialmente estabelecida quanto aos papéis desempenhados por meninos e meninas, a qual teria respaldado sua compreensão da pergunta de Magali como irônica.

Neste exemplo, a criança atribui ao personagem uma crença: “ele acha mais é que ela é uma “veia” coroca...”, explicando que entendera assim porque a personagem teria mais característica de uma idosa do que uma “mulher chique”. Temos aqui um evidente contraste de descrições físicas (“veia coroca”/ “mulher chique”), que tornariam improvável admitir os enunciados “Uma gata, né Cascão?!”/”Linda e maravilhosa, né Cebolinha?!” como sendo literais, ou como que expressando uma apreciação positiva.

Quanto à função retórica, podemos dizer que a criança parece ter apreendido o objetivo argumentativo da ironia, quando diz que “ele só iria ficar se fosse... se a srta. Biju fosse uma... mulher bonita!” (como pode ser conferido logo abaixo, ao final da transcrição). Ela retoma o argumento apresentado inicialmente por Cebolinha para convencer Cascão a fazer o curso (“a professora é linda”) para justificar a desistência do Cascão, devido à sua insustentabilidade.

[ambas sorriem]

Pq – E aí, o Cascão acha que a senhorita Biju é uma gata? P25 – Não! [responde, sorrindo e balançando a cabeça] Pq – Não?

P25 – Ele acha mais que ela é uma veia coroca!! [diz em tom zombeteiro] Pq – Ahaha! Como é que você sabe disso? Por que é que você acha isso?

P25 – Porque é assim... ela tem mais característica de uma iDOSA do que... sei lá... uma mulher... chique!

Pq - Ah, é? Tá bom... e ele disse, “uma gata, né Cascão?” P25 – Hi, hi, hi! [dá uma risada]

Pq - “linda e maravilhosa, né, Cebolinha?”...

Pq - Ele tava dizendo o que com isso?

P25 – Ele tava dizendo assim que era uma pessoa bonita... chique, charmosa! [faz entonação expressiva]

Pq – Não, o Cascão agora... o que ele falou... cê ouviu o que ele disse,? P25 – Vi! [balança a cabeça, afirmativamente]

Pq - ...“linda e maravilhosa, né, Cebolinha?” [imita o tom de indignação do personagem] ... ele tava querendo dizer isso, que ela era linda e maravilhosa?

P25 – Não, ele tava querendo dizer o oposto, que é feia e horrorosa! [faz um gesto com as mãos juntas]

Pq - Ah... e é? Ah... tá! Tá bom... E o que é que o Cebolinha tinha dito pra ele sobre a senhorita Biju?

P25 – Que era uma gata!

Pq – E o Cascão achou a mesma coisa? P25 – Não! [responde, sorrindo] Pq – Não...

[exibe-se o final do episódio] P25 – [dá uma risada]

Pq – E aí... por que é que o Cascão não quis mais ficar na escola?

P25 – Porque... assim... ele só iria ficar se fosse... se a senhorita Biju fosse uma mulher bonita...

Pq – Ah! E ela...

P25 – E ela, pra ele, ela não era! [responde, balançando a cabeça negativamente] Pq – Pra ele ela não era, né? Tá bom! Ok! É só isso, Rebeca! Obrigada, viu?

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