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A compreensão esvaziada da vida

No documento TANIA TEIXEIRA DA SILVA NUNES (páginas 37-41)

I ENTRE FUSÕES, OLHARES E METAMORFOSES

1.3 A compreensão esvaziada da vida

Mínimos, múltiplos, comuns é uma obra centrada na dualidade profunda: claro/escuro; dia/noite; ausência/excesso; plural/singular. Essas forças afirmam a condição do homem e de sua vida neste mundo, ao mesmo tempo em que permanece necessitando de movência. O que é revelado não é um caminho determinado, mas esse caminho vai se determinando na trajetória desse homem e na ausência de uma retidão traçada.

Um homem que traz seu interior sempre em conflito, caracterizando o homem histórico do mundo barroco – com sentido de vacuidade (o “horror vacui”) – e “a ausência como esvaziamento, lacuna, zerificação do muito e do pleno, existe numa tensão de miragem: ambas no limite dos extremos” (CAMPOS, 1979, p.9).

O “homem vago ” de Noll carrega consigo uma verdade única: sintoniza-se com o interior de si mesmo, transita “naquela esquina ventosa, quase irreal de tão parelha com seu estado submerso, aquém do mundo e de todas as promessas que ele jamais conseguira ocupar...” (MMC, p. 31). Mas traz o olhar sobre as coisas mortificado, pretende com isso captar um pouco do exterior para completar seu vazio interior e a lacuna essencial que carrega, uma grande ferida existencial. Mas é movido a “instantes” raros de lembranças e grandes momentos de apagamento, sequer sabe às vezes quem é e para onde vai.

O trágico é sua experiência de vida esvaziada de sentido com pouco contato com o outro, fechado em seu mundo, desconhecendo-se até a si mesmo. O fato é que não há diálogo entre mundo e homem fechados.

Na sua dubiedade, na sua ambiguidade, ele é vida e morte, dor e prazer, superfície e submerso, luz e escuridão que se excluem ao mesmo tempo em que delas necessitam para continuar a resistir. Na verdade, o que não se pode deixar de dizer que onde há morte, há também vida. Essa duplicidade que também expressa um paradoxo presente na vida deste homem em estado de mudez. Uma realidade que precisa ser aceita como retrato do mundo contemporâneo: um mundo em que “os gatos estão de rabo em pé e miam”, consoante se refere Noll16. O reconhecimento desse paradoxo perfaz, condição essencial para conviver- se com o mundo de hoje, onde tudo é fragmentado, fluido e frágil sem deixar marcas identitárias. Mas aqui há vida, porque “na impertinência do esfarrapado sempre há um resto de vitalidade” (BENJAMIN, 1987, p. 162).

Toda essa trajetória que vive esse homem de ser mínimo, comum e múltiplo ao mesmo tempo é vivida em um palco com inúmeros cenários e máscaras onde é encenada a tragédia da vida no limite da morte, da contravida e do homem sonolento que só tem dentro de si um “suco escuro” a lhe escorrer do interior ou um sono flagelado. Esse homem presentifica no pensamento de Zygmunt Bauman a “ânsia sem fundo” do tempo de agora, escrito sobre uma enorme contradição: fixar-se pela demanda do humano e ao mesmo tempo, aceitar a errância.

A conclusão é de que a essência da compreensão trágica desse homem está na afirmação múltipla e pluralista. A compreensão nefasta do mundo em Mínimos, múltiplos, comuns pode ser definida como a busca da identidade e do reconhecimento sobre a realidade. É, também, a busca do centro em múltiplos instantes, a busca do encontro desse homem com ele mesmo, a busca do centro desse mundo plural. No entanto, é uma busca de entendimento também do grande paradoxo, excesso de tudo e ausência interior, é uma busca que se faz sempre inalcançável e fugidia na medida que renasce uma outra realidade cada vez mais sombria e amarga em cada caminho percorrido. Assim, ausência e excesso permanecem juntos. O narrador de MMC diz:

Olhei lá para dentro e vi a cavidade na terra avermelhada. Minhas imagens não iam até essa inquietação, digamos, no centro nervoso da aparelhagem, mas chegavam perto, e esse perto meio que me cegava. E, incrível: o cara desaparecera. Agora eu via: o sol babava. A mata ardia (MMC, Aparição, p. 145).

16

Estes são os abastados. Os excluídos estão com o rabo entre as pernas, escondidos e silenciados. Eis um exemplo do avesso em Noll, trazido até na linguagem.

Homem perdido de sua natureza e a natureza perdida em suas metamorfoses. “Vi a cavidade na terra avermelhada”. Até a cavidade é vida na verdade que aqui a palavra impulsiona o avesso de que ele cava a vida de imagem em imagem, de olhar a olhar.

Em Mínimos, múltiplos, comuns, o corpo já se diluiu, é também mancha informe, é sombra morna, quer ser pedra, quer ser árvore: “Um filme sem pessoas. Manchas fazem os personagens. Alguns borrões parecem se beijar. Outros, lutar. Pergunta de novo o horário. Sua memória hoje apropria-se sozinha e sovina dos registros. Ele vê que a moça da bilheteria já não passa também de mancha informe [grifo nosso] (MMC, p. 70).

Sobre o corpo, no entanto, são brilhantes algumas falas dos narradores de Noll: “Joguei- me no feno. Nele encontrei a sombra morna que foi extraindo do meu susto o soluço e não só, um outro também dali saía, um homem pronto, muito diferente do que meu corpo poderia supor até ali” (MMC, Sarça ardente, p. 65). Em A Fúria do corpo, a intensidade dessa imagem já transitava na literatura do autor. Eis um trecho em que o corpo já trazia em si um desejo de presentificar o aniquilamento de sua existência :

...sujo meu corpo com um bocado de terra seca para te dizer que é assim que caminho por essas ruas com a mancha da terra no meu peito com marca de que estou insurgido contra a tirania dessas vítimas que andam pelas ruas [grifo nosso] tantas vezes em sorrisos maltrapilhos sem reconhecerem que o algoz, se bem que invisível, se encrava insano na presença do que pretendíamos ser e a enxovalha com mentiras aliciadoras para nos levar a essa ruína de nós mesmos (FC, p. 12) .

Seguem a potente prosa de Noll as palavras de Walter Benjamin, em Rua de Mão Única, ao falar da palavra abalo: “o corpo é o que desperta justamente a dor profunda e pode igualmente despertar o pensamento profundo. Ambos precisam de solidão”. Pensamento e corpo unidos pela solidão. Este crítico fala no excessivo uso da palavra “abalo” na modernidade, sem deixar de mencionar que “o abalo conduz ao desmoronamento” (1987, p. 248). Noll traz em MMC a palavra “resguardo” como se verá mais adiante. O fato é que, no tempo de agora, o corpo é a busca de sentido da vida no sem-sentido. As dificuldades desses indivíduos descentralizados de vencer o olhar estão também transmutadas no grito da escrita tensa e sangrenta de Noll como se encontra na crítica “rasgada” de Benjamin e esperam sempre pela perspectiva de um novo por vir, embora seja este tempo de agora carcomido, vazio e sempre rondado pela morte:

As curvas da estrada eram tantas que agora talvez quisesse uma reta, mesmo que não levasse a nada – ao contrário da via tortuosa, prometendo sempre um destino, vago, mas sem erro [...] Ouviu a criança chorar, a moça ninando. Escutou o motor da geladeira. O cachorro ladrando. E, sem querer... morreu (MMC, Sulino, p. 175).

Figura 3: Paul Klee – Embrace. Fonte: www.galeryiofart.us/Paul-Klee

O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros. (Rousseau, Contrato social, Liv. I, Cap. I, p. 22 ).

Nunca mais sentiria a dor. Por quê? Tinha se curado? Ele fitava o posto à frente; parecia imbuído daquela parcela do dia. Depois faria umas coisas. Tudo ficaria bem. Antigamente chamaria isso de conformismo. Estava envelhecendo? Curar-se, sentir o corpo numa quase precisão inadiável, quase... Coisa de quem já não via os impactos? O certo é que continuaria a percorrer esse grande acolhimento. Era o que tinha [...]

No documento TANIA TEIXEIRA DA SILVA NUNES (páginas 37-41)