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Arcos de Ascese: uma “teologia da aberração”

No documento TANIA TEIXEIRA DA SILVA NUNES (páginas 123-127)

III O MUNDO: ALEGORIA E ABERRAÇÃO

3.2 Arcos de Ascese: uma “teologia da aberração”

Na construção desta obra está o marco da produção de uma escrita alegórica. Um corpo fragmentado e descontínuo escrito com suas feridas que se abre na alegoria de um renascimento. Eis o que aqui será calcado: escrever, a partir da ideia do narrador-escritor o livro que diz estar escrevendo. Este livro será composto a partir do olhar, do vagar e do

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Etimologicamente, a palavra “mandala” tem origem no sânscrito que significa círculo. Um pequeno texto dá o cerne dessa representação: Mandala é círculo mágico; Mandala é ponte para dimensões superiores; Mandala é caminho a percorrer; Mandala nos revela nosso Eu; Mandala nos leva ao nosso centro; Mandala nos leva a nossa Essência; Mandala nos leva a Fonte Divina; Mandala é energia e movimento; Mandala é totalidade, integração e harmonia; Mandala é o percorrer, o fim e o começo; Mandala é morte e renascimento. Domínio: www.mundodasmandalas.com. Acesso em 15.11.2008.

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Palavras proferidas pelo personagem Toni (Guilherme Weber), na minissérie Queridos amigos, de Maria Adelaide Amaral, transmitida pela Rede Globo de Televisão, capítulo televisionado em 28.03.2008.

“diálogo interior” do personagem de MMC. Seu título dado pelo duplo do autor, um outro João: “Arcos de Ascese” foi caracterizado como um livro “sobre surdas dissidências, em apenas sete curtas rondas.” As rondas de um vagabundo iluminado. “Arcos de ascese”, aqui, é o sentido e a conclusão de uma trajetória de leitura.

O subtítulo escolhido para esta leitura “Teologia da aberração” também está citado nas primeiras páginas de O corpo em Mínimos, múltiplo, comuns e caracteriza a essência desse homem, da escrita e do mundo nesta obra. A palavra “teologia” tem o cunho filosófico refere-se à compreensão da natureza divina de forma racional. Benjamin nos ensina que a mística integra a Teoria da alegoria, uma vez que extremo e perfeição perfazem a alegoria. Noll parece buscar no misticismo, no sagrado, uma estratégia ficcional para expressar o conceito geral de sua ideia. É importante relatar que este trabalho não é de erudição bíblica, mas – ressalte-se – ele faz o encontro do literário com a cultura, o encontro de chaves de leitura que passa por esses conhecimentos seculares. Essas palavras podem ser confirmadas na

compreensão recíproca dos séculos e dos milênios, dos povos, das nações e das culturas, [que] assegura a complexa unidade de toda a humanidade, de todas as culturas humanas, assegura a complexa unidade da literatura da humanidade. Todos esses fatos se desvelam tão somente na dimensão da grande temporalidade sendo nela que cada obra deve receber seu sentido e seu valor [grifo nosso]. (BAKHTIN, 1992, p. 410).

Mas também podem – e devem – ser confirmadas no testemunho de um estudioso do sagrado enquanto linguagem literária. Segundo Nortrop Frye,

a abordagem da Bíblia de um ponto de vista literário [e aqui nos apropriamos do mesmo exemplo para o hinduísmo] não é de per si ilegítimo: nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária. Mas a Bíblia era tão obviamente mais do que uma obra literária, seja lá o que esse “mais” signifique, que uma metáfora quantitativa não ajudava muito. No limite como se poderia esperar, a Bíblia ilude todos os critérios literários. Mesmo [William] Blake, que avançou mais do que ninguém em sua época na identificação da religião com a criatividade humana, não chamava a Bíblia de obra literária: ele dizia que ‘o Antigo e o Novo Testamentos são o Grande Código da Arte.” O objetivo acadêmico é o de ver o que algo significa, e não o de aceitá-lo ou rejeitá-lo (FRYE, 2004, p. 19).

A proposta é compreender o sentido que Noll traz para MMC a partir dessa constelação de temas que ilumina o seu avesso e constrói uma nave secular carcomida. Portanto, a ideia de aberração do mundo e desse homem que inclui neste mundo como um desconserto, como o autor a apresenta, revelada olhar a olhar, texto a texto e palavra a palavra é o que se busca entender, uma vez que é recorrente desde as obras germinais de Noll a ideia desse corpo deformado e informe a indicar a forma da escrita.

Mas, para esse corpo do personagem movente, gigante de tamanho e voz, mas imóvel à ampliação das dores do mundo, a ideia de sua própria aberração, bem como a do mundo

que se confronta, pesa, deixa- lhe doente, uma fonte invisível que o desqualifica para o ofício da escrita. Essa é mais uma característica que atinge também outros protagonistas da variada prosa de João Gilberto Noll.

Augusto dos Anjos, poeta brasileiro do mau gosto, tem um poema sob o título de Aberração. Cito as duas últimas estrofes, que coadunam com o sentido de manter esse corpo doente para dar forma à escrita de Noll, em MMC:

Chamo -me Aberração. Minha alma é um misto de anomalias lúgubres. Existo

Como o cancro, a exigir que os sãos enfermem... Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o lodo E nas mudanças do Universo todo

Deixo inscrita a memória do meu gérmen! (1982, p. 56)

Enfim, a seguir, eis o livro Arcos de ascese imaginado por João Gilberto Noll e organizado nesta pesquisa para apresentar a origem da id eia de Mínimos, múltiplos, comuns como uma alegoria de um renascimento, por isso o autor consagra a Deusa da ausência e a mandala (o círculo) como forma escolhida para inserir a origem do mundo construído nesta obra.

Figura 5: Uma mandala da humanidade onde t odos os povos estão dando-se as mãos em

completa harmonia... Desenho de Jô Angel.

“A estátua que me escondia por pouco não se vertia por seu cântaro quebrado”.

“Vencer as horas e com tal melancolia é façanha de arenosa sudorese”.

(MMC, Miragens, p. 44)

No documento TANIA TEIXEIRA DA SILVA NUNES (páginas 123-127)